sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: TATU GALINHA


Muitas chuvas, o frio do final de inverno assim como mudanças súbitas e inesperadas em minha vida fizeram com que eu faltasse semanas e semanas ao delicioso costume de ler e fumar no banco sob o pé do ipê amarelo.
Mas - tem sempre um mas - o corpo e a cabeça se acostumaram às mudanças que ocorriam, ao frio e ao vento cortante e molhado das chuvas que teimavam em não parar. Triste e ensimesmado voltei, em uma quarta-feira, logo após o almoço às minhas leituras no banco do jardim.
Nem acabara de acender o primeiro cigarro quando Orosimbo para em minha frente e, como sempre, insistentemente olha o maço de cigarros. Ofereço, aceita, senta-se ao meu lado e traga gostosamente. A terceira tragada já é dada com seus olhos fixos no “Velório sem Defunto” do Mário Quintana que eu havia levado para ler. Toma o livro nas mãos ossudas e, ao mesmo tempo, me passa sua brochura com o Duque de Caxias na capa.
Inicio a leitura:

TATU GALINHA

Minha vontade de conversar com os mortos só se tornou possível quando aprendi a me transferir para dentro do tatu Galinha. Tinha que ser tatu Galinha porque se eu me transferisse para o corpo de um tatu Peba não daria certo; os mortos têm medo, e com razão, dos tatu pebas que vão até os locais não para conversas e amizades, mas, sim, para abocanhar suas carnes.
Já o tatu Galinha, não: visita os mortos para conversar, dar notícias, levar recados.
De casa ao cemitério, morada dos mortos, era coisa de meia hora. Em noites de chuva, como o terreno mais macio era um pouco mais rápido, mas enlameava todo meu paletó e a umidade resfriava e atacava meus pulmões. Assim preferia ajudar o Galinha a escavar o seu túnel ate o cemitério, em terras duras e pedregosas, em dias de sol ou em noites de muita lua. Melhor espirrar com a poeira do que com a lama fria.
Íamos à noite ou de dia: nos fundões era sempre escuro; era um puro breu de escuridão até os olhinhos negros do Galinha se acostumar. Logo depois da chegada, lágrimas limpavam seus olhinhos da poeira, um clarão ia surgindo e, logo, tudo se enxergava, tudo se via.
O Dr. Netto, médico morto há tempos, com seu túmulo sempre rodeado de flores e velas, era o meu preferido para conversas. Foi ele quem primeiro me explicou, com seu palavreado e linguajar difícil:
- “Aqui Orosimbo, você nos encontra como os probiontes e as moneras da matéria: materiais quanto a nossa natureza, mas imaterial em nosso estado; se não entende e tiver dúvida leia A Montanha Mágica, do Mann, assim ficará mais claro para você!”
Para mim coisa de muito difícil compreensão!
Melhor mudar de assunto, saber e contar novidades.
- “Adivinha quem morreu ontem, Dr. Netto?” e fui continuando: “o Miguel, alfaiate, marido da Dona Cida; mas está morando longe daqui, na área mais dos pobres”.
- “Nossa: morreu? Antes ele do que eu”, disse querendo terminar ali a conversa.
- “Dr. Netto, venho de longe para palestrar e encontro o senhor bravo.”
Fui interrompido:
- “Já te disse que não gosto de aqui onde me puseram fixo, perto de minha mulher de cartório. Queria mais era perto da Marina, sentir seu calor nas noites de chuva, aquecê-la e amá-la, aqui nestes desconhecidos.”
Impossível conversar! De lamúrias, lamentações e reclamações o mundo dos vivos, o meu mundo, estava cheio, lotado.
Vou procurar o Anor e suas histórias.
Quando em vida, o Anor me dizia , em conversas sob o pé de eucalipto, perto da Santa Casa, que em nossa pequena cidade, com seus três loucos e três veados, ele era o mais amaldiçoado.
- “Me conte dos benzimentos e de sua morte Anor?”
- “Morri por causa de amor e medos, morto a tiros, por balas de fuzis dos mineiros da Revolução de 32. Já te contei tantas vezes. Não te enjoa ouvir sempre a mesma história?”
- “Enjoa não, gosto.”
- “De contar eu também gosto. Ajuda passar o infinito tempo daqui... Foi assim:
Me juntei com Didi, faceiro filho de fazendeiros da cidade, contra a vontade de sua família e, penso que por isso jogaram praga e pegou. Moço bonito, rico e estudado gostar de um velho veado que só sabia benzer não era costume muito aceito. Esperavam dele casamento com mulher, filhos, tudo no normal. Mas, nos juntamos!
E o Didi com sua mania de política, aprendia em seus livros e em conversas que teria que lutar para fazer valer a Constituição da República e estas coisas... Em uma noite clara de lua Didi me disse que a revolução estava chegando e que iria à luta. Tentei e tentei mudar suas idéias, mas nada. Nem seu amor por mim, me disse, faria mudar sua posição. Acreditava que venceria e que continuaríamos nossa vida juntos, protegidos pela sombra de uma Constituição.
Você, Orosimbo, me diz que muitas vezes me procura porque não entende o linguajar do Dr. Netto; pois o mesmo se sucedia comigo. Ouvia o Didi e não entendia, mas tinha muito medo de sua morte e, também, da minha. Ele se alistou. Eu lhe disse, na estação de trem, garboso e lindo em sua fantasia de soldado com armas às costas: te espero aqui em nosso quartinho, mas se a tal da Revolução chegar fujo: tenho medo. Se ela chegar aqui por perto vou me embrenhar pelos lados do córrego do Bom Jesus e nada me acha, nem Deus. Te espero!
Lá se foi o Didi lutar para a revolução da Constituição e fiquei só, muito só.
Parece que até as pessoas que me procuravam para benzimentos de quebrantos e espinhela caída haviam sumido, indo atrás ou fugindo de medo da revolução.
Resolvio ir pescar no Bom Jesus, córrego pedregoso de águas limpas, transparentes e frias, cheia de mandis, gambevas, bagres e lambaris. E foi lá no Bom Jesus, só, muito sozinho, que ouvi passos e conversas: eram os soldados mineiros, armados com seus fuzis às costas, à caça do Didi e dos paulistas...
Fugi com minha vara de pescar. Pensava em me embrenhar pelas profundezas do Bom Jesus, ir vivendo de vento, de água limpa e de bagres até a volta de Didi e da vitória da Constituição.
Mas os mineiros armados eram rápidos, muito rápidos. Pertinho da cachoeira e de seu poço fundo fui cercado, molestado, maltratado e morto: uma bala foi entrando cabeça adentro, e eu, naquela hora, aliviado de tanto sofrer, não senti dor e dormi. Meu corpo foi ficando por lá, esticado e duro, por demais de morto, sem mais poder ouvir o barulho da cachoeira ali tão perto. Vieram os urubus e começaram a me beliscar até que foram tocados, espantados pelos berros e pedradas atiradas pelo seu Eduardo, pai do Didi. Seu Eduardo ali ficou, ao meu lado, me vigiando dos urubus até chegar mais gente para ajudá-lo a me embrulhar em um pano de catar café. Me levaram para a cidade, passaram na igreja mas o padre não quis benzer meu corpo!
Me enterraram aqui.
Foi assim, Orosimbo.”

Um comentário:

Mariana disse...

Olá Orlando.
Fazendo algumas pesquisas na net encontrei seu blog.
Meu nome é Mariana, sou também uma "contadora de histórias", e venho colhendo material para algo que estou escrevendo. Acho que talvez você possa me ajudar com algumas informações sobre a cidade de São Paulo no final da década de 60. Ficaria muito grata se pudesse entrar em contato comigo, para que eu explique exatamente do que se trata. Prometo não lhe tomar muito tempo.
Segue meu e mail de contato : marimgarcia@hotmail.com
Agradeço a atenção e desejo sucessos em seu tão fluente ofício!