quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: RUA RIO BRANCO




Não morreu, sabe porquê? Porque mentiu. Histórias deles eram inventadas “, in Mia Couto, A varanda do frangipani.


Eram boas, mais que boas mesmo, as horas que passava, à tarde, sentado no banco do jardim, fumando e lendo livros retirados na Biblioteca. Como tinha um intervalo de três horas entre o primeiro e o segundo turno do trabalho acostumei-me a, logo após o almoço, pegar um livro e ir para a pracinha, sentar-me em um banco para fumar e ler.
Os bancos do jardim, na praça, eram daqueles moldados em cimento com minúsculas pedrinhas, sinuosos e gordos e, cada qual, tinha em seu encosto o “anúncio” do seu doador grafado em negro: em um, “Casa do Rádio”, o outro era “Oferta da Família Saad”, em um outro “Netos&Irmãos Exportadores de Café”, e assim por diante. Este último era o meu preferido, talvez por estar sob o pé de ipê amarelo, cuja sombra rala deixava vazar pedacinhos de sol que aquecia partes do corpo, e aí, quando aquelas partes estavam bem quentinhas era hora de mudar de posição para esquentar o outro lado, num jogo gostoso enquanto lia e fumava.
Na cidade havia três loucos: todos “loucos mansos”. Cidade muito pequena e, por isso penso que três loucos era um número significativo, grande, e com certeza teria inspirado Machado de Assis, caso tivesse vivido por lá, a escrever O Alienista. Quero contar do Orosimbo, um deles, talvez o mais “manso” de todos os loucos, em seu terno marrom, camisa aberta no peito peludo, barba já grisalha, cabelos negros apontando um início de calvície, rosto com as maçãs salientes e dentes fortes, muito brancos sob os lábios escuros e salientes.
Orosimbo, nem sempre diga-se de passagem, ao passar por lá e me ver sentado parava frente ao banco e olhava fixa e alternadamente para o livro que eu lia e para o cigarro em minhas mãos ou nos lábios.
- “Quer um cigarro, Orosimbo?”, eu dizia.
Quando aceitava sentava-se ao meu lado e fumava um ou dois cigarros. Tragava forte, levando a fumaça do cigarro ao fundo de sua alma e soltando-a toda pelas narinas repletas de cabelo.
Naquele dia aceitou o cigarro e enquanto fumava não tirava os olhos do Memórias do Subsolo, do Dostoievski.
- “Você gosta de ler Orosimbo?”, pergunta a qual não se dignou responder; continuando, no entanto, a olhar com seus olhos lânguidos o livro em minhas mãos.
Marquei mentalmente o número 109 da página que estava lendo, fechei o livro e tentei:
- “Quer ver?” e apontei o livro em sua direção.
Orosimbo, ainda mudo de palavras, tomou o livro em suas mãos ossudas. Olhou curioso primeiro para a capa cinza do livro, fixou os olhos nas grandes letras do título impressas em negro e passou a percorrê-las com o dedo indicador como que desenhando-as. Continuou ali sentado ao meu lado, mudo,sem nada falar, com o livro fechado em suas mãos agora com os olhos fixos no maço de cigarros Continental que nos separava no banco e, com o olhar implorou outro cigarro. Peguei o maço de Continental, ofereci-lhe , peguei outro no maço e acendi ambos com o mesmo palito de fósforo. Orosimbo tirou então, do bolso de dentro de seu paletó marrom, uma brochura de cinqüenta folhas, com o Duque de Caxias na capa colorida e colocou-a quase em minhas mãos. Feito isso, abriu o livro em uma página qualquer, que não era a primeira me parecendo estar mais interessado em ver o desenho das letras do que interpretar as palavras escritas.
Abri sua brochura. Letra impecável, um pouco tombada para a direita, uniforme, semelhante aos exercícios que fazíamos nos cadernos de caligrafia.
Escrito a lápis, com alguns pequenos e raros sinais de que havia usado a borracha para “deletar’ palavras, letras ou vírgulas.
Iniciei a leitura de sua brochura pela primeira página:

“RUA RIO BRANCO

Melhor agora que aprendi a, logo ao amanhecer, fazer tremer todo o corpo, bater firme mas com delicadeza sete vezes na face esquerda com a mão direita e seis vezes um pouco mais forte com a mão esquerda na face direita, ao mesmo tempo em que sussurro, a meio tom “BRUUUUIIIOOOAAA!”. O lento e demorado sussurro tem que sair bem entre os dentes, fazendo soprar um ventinho morno nos lábios, os quais devem, também, acompanhar o movimento do corpo e tremular com delicadeza, embora de modo consistente e sem interrupções. Antes de aprender este meu novo modo de amanhecer, meu corpo doía por demais e a dor só era extinta às custas das trinta e sete cabeçadas que era obrigado a dar, quinze na parede e dezessete na porta da cozinha, para onde ia bater a cabeça e, assim, evitar evitar que o barulho das batidas na parede não incomodasse e acordasse os meus mais de trinta irmãos e bois que dormiam juntos na varanda que ligava o quarto à rua. Minha mãe não: ela dormia no alto, quase junto ao teto, só, em cama limpa, com lençóis brancos e cobertores de lã de ovelha que ela tecia; assim não passava frio e acordava sempre com seus olhos azuis limpos, com a face corada e fazia café amargo, sem açúcar, cujo odor se espalha por toda a rua, indo até o cemitério, acordando os mortos sem nenhum barulho: só com o cheiro bom, amargo e forte.
Também agora, que não acordo ninguém com minhas cabeçadas na parede da cozinha, posso sair mais cedo à busca de café doce, caminhando ainda no escuro pela Rua Rio Branco. Não gosto e não me acostumo com café amargo, não sou defunto! Só minha mãe e os defuntos do cemitério, mesmo os anjinhos, gostam de café amargo.
Na Rio Branco todos dormem, até mesmo os cachorros que sempre me atacam pensando que vou roubar café de seu dono, o que não é verdade, vou é pedir café doce, porque o que minha mãe faz é amargo.
Ando sempre na calçada da esquerda quando vou e sempre pela direita quando volto: assim não erro o caminho e não me perco. A cada dois passos que dou, tenho que realizar um pequeno movimento circular com o pé direito; as pessoas pensam que é um tipo de dança mas não é: este pequeno movimento que faço com o pé direito, sempre a cada dois passos, tem o poder de afugentar bandidos, põe a correr cachorros e gatos, não deixa se aproximar o demônio que me persegue a noite toda e não me deixa dormir e roncar como minha mãe, meus irmãos e os bois lá de casa.
Por dia tenho que subir dezessete vezes a Rio Branco até a Praça da Igreja e descê-la, sempre pela calçada da direita, passando pela garagem do Eliseu onde o cachorro preto com seus dentes enormes me ameaça, mas ao ver que sempre obedeço a superior ordem de a cada dois passos fazer o movimento circular com o pé direito me deixa sossegado e vai morder o Lázaro e o Nascimento que não acatam meu conselho de, a cada dois passos, fazer o movimento circular com o pé direito. O Lázaro e o Nascimento são os outros loucos daqui, mas são menos espertos, os cachorros os atacam e as pessoas da rua Rio Branco não lhes dão café doce, pois têm medo deles. De mim, não.”.

Um comentário:

Morales disse...

Olá Orlando...Os escritos do Orozimbo reproduzidos em sua história são autênticos? Ou é tudo "inventado"? Escrevia bem esse Orozimbo, um dos "loucos" que perambulam pelas cidades. Por pequenas que sejam sempre têm pelo menos um desses personagens!

abraço