sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Histórias do Ribeira: casamento fugido!
Então foi assim: no primeiro ano, dei aulas lá no Bairro da Lagoa Nova; no segundo ano, fui para o Bairro de Votupoca, no município de Sete Barras, e, no terceiro ano, na cidadezinha de Sete Barras. Em Votupoca, havia um antigo projeto de Grupo Escolar Rural e, naquele ano, trabalhamos, lá, em quatro professores: a Mineko, a Eloina, o Luís e eu.
Em minha classe, a maioria dos alunos era do segundo ano e havia, também, uns sete ou oito do quarto ano primário. Entre meus alunos do quarto ano, havia um, o Valter, que era um assombro de inteligente.
Na época, havia um exame para ingressar no antigo ginásio e, desde o meu tempo de estudante, lá em Pedregulho, havia cursos preparatórios para o exame de admissão ao Ginásio. Resolvi, por conta própria e sem ônus para os alunos, dar as tais aulas de admissão, à tarde. Vieram, inicialmente, o Gilson e o Walter, ambos com condições de, se aprovados, freqüentarem o ginásio estadual em Sete Barras. O Gilson desistiu do curso preparatório e ficou o Walter. Foi aprovado em segundo lugar no exame de admissão.
Por isso e por outros, fui “pegando” fama de bom professor, daqueles que o prefeito exige da diretora que seu filho freqüente sua classe. Resumindo, a diretora do Grupo Escolar de Sete Barras me convidou para assumir uma classe do quarto ano e o compromisso do diretor do Ginásio para eu assumir a docência do curso preparatório para o exame de admissão. Era tudo o que eu, na época, queria.
Assim, fui parar em Sete Barras, trabalhando, de manhã, no Grupo e, à tarde, no Ginásio.
Quando ainda estava em Votupoca, veio de Ribeirão, para trabalhar na região, um professor de Ribeirão Preto, o Samuel. Sujeito engraçado o Samuel. Alto, com mais de um metro e oitenta, magérrimo, pesava lá seus sessenta e cinco quilos. Lembrava muito o Caetano Veloso de alguns anos depois. Tocava, mal, violão e era realmente um tipo. Um dia chegou e me disse: “Orlando, comprei uma égua”. “Mas Samuel, retruquei, onde você vai deixar a égua quando você deixar esta escola?” “É linda, marchadeira e paguei um bom preço...” No fim do ano, em busca de uma escola melhor, teve que vender a bendita égua pela metade do que havia pago. Em outra vez, vínhamos de Ribeirão e, na Rodoviária, em São Paulo, enrabichou com uma loira oxigenadíssima e trocou de ônibus. Em vez de Registro, foi para Curitiba. Dia seguinte, meio desconsolado, estava lá o Samuel falando de seu novo e não correspondido amor. A oxigenadíssima era casada e o marido, um mulato de quase dois metros, estava a esperá-la na rodoviária de Curitiba. Samuel tomou o rumo de volta e encontrei-o na pensão onde morava, lastimando e recolhendo suas malas que havia deixado para eu trazer.
Em outra vez, resolveu comprar uma winchester. Só ele - e creio que nem ele - sabia para que. Nas férias ou em um feriado prolongado, não me lembro, levou a winchester para Ribeirão, também não se sabe para que. A nossa volta de Ribeirão para Sete Barras coincidiu, nada nada, com uma enorme e desbaratada reunião de estudantes, em Ibiúna. Esta reunião, embora organizadíssima como todo o movimento estudantil da época, foi descoberta pela polícia e entre os presos, se me lembro bem, estavam entre outros o José Dirceu, o Travassos e um grande amigo meu lá de Pedregulho, o Pedro Ferreira.
E o Samuel com a tal winchester na, naqueles dias, vigiadíssima rodoviária de São Paulo.
Brincou com fogo: “São flores secas”, respondeu ao policial civil que nos abordou. “Vamos ver, então.” E lá fomos nós para a polícia civil, na Rodoviária de São Paulo.
Um tempão por lá. Acredito que foi minha juventude, ingenuidade e persistência, aliadas a uma dose de sorte, que nos livrou da enrascada. Deixamos lá na polícia da Rodoviária nosso endereço de trabalho e o compromisso, não cumprido, de telefonar assim que chegássemos ao nosso destino.
Aí o Samuel foi dar aula no Bairro da Formosa. Lá havia duas classes e a maioria dos alunos eram descendentes de japoneses. O Bairro da Formosa era um centro receptor de imigrantes japoneses, que visava a adaptação dos mesmos ao país para posterior encaminhamento para outras regiões.
Um parênteses em relação ao bairro da Formosa: ficaram famosas as brigas entre os “baianos” brasileiros que trabalhavam nas plantações de chá e laranja ponkan e os japoneses. Havia na comunidade um campo que uns – os “baianos” - o queriam de futebol e outros – os japoneses - de basebol. Assim, aos domingos de manhã, os japoneses, escondidos e silenciosamente, tiravam as traves do campo de futebol e iniciavam seu joguinho de basebol. Logo, logo eram ameaçados pelos “baianos”, que, ruidosamente e sem nenhuma cerimônia, julgando-se eles os donos, recolocavam as traves no local e iniciavam suas peladas meio a fugitivos e silenciosos japoneses. A coisa chegou a tal ponto que houve necessidade da intervenção do delegado da cidade, Sr. Higino, que, na verdade, era açougueiro e sitiante de profissão; um barrigudo lutador de “sumo”, muito cordial e querido.
Voltando ao nosso amigo Samuel, que, agora, tinha lá como colega, na outra classe, uma bela nissei: a Helena. Convidou-me para ir vê-lo num domingo. Insistiu tanto no convite que lá fui eu. O que consegui do amigo foi um curto “Bom dia”, logo me falou de sua paixão – segundo ele, correspondida – pela Helena e só. Me deixou lá no meio do laranjal e foi namorar. Completamente ignorado, voltei embora antes do pensado.
Mas o namoro se firmou e a família da Helena não aceitava. Japoneses tradicionais não admitiam namoro e casamento que não fosse com descendentes. Helena, no entanto, teimava. Assim, o Samuel estava certo: desta vez, seu amor era correspondido.
Solução da família: mandaram a moça para São Paulo, interna em um colégio de moças, no bairro da Liberdade. E lá se fica uma das escolas do bairro da Formosa sem a professora, que, agora, segundo o Samuel, vivia sofrendo de saudades de seu amor e aprendendo a modelar argila e a fazer ikebana.
Houve um feriado prolongado e Helena veio ver a família em Sete Barras; e o Samuel, estranhamente, foi para Registro. Houve jogo de futebol, no Domingo, e eu não saí: precisava jogar.
À noite, cansado do jogo e da surra que havíamos tomado de um bom time de Itapetininga, estava quieto lá na pensão, quando o seu José me chama: “oh.. Ribeirão, telefone para você”. Naqueles tempos, telefone e telegrama eram, normalmente, para más notícias: mortes e doenças. Corri atender, assustado.
Do outro lado, o Samuel.
- “Então... eu estou aqui em Ribeirão com a Helena e vamos nos casar daqui a alguns dias. Queria que você fosse até a casa dela e avisasse lá seu pai, o Odissam.”
- “Mas, Samuel, como é que é isso? Vocês fugiram?”
- “Não, não fala que fugimos. Fala que estamos aqui em casa, que minha mãe está preparando o vestido de casamento e, outra coisa, queria que você fosse padrinho”.
A família de Helena era constituída por, além de seus pais, já idosos, pela Dona Alice, secretária do Ginásio, mais uma professora, a Nobu, e por um seu irmão, o mais velho da família, o Shinzo. O Shinzo tinha uma fábrica de esteiras de junco e toda noite descia até o bar da pensão onde eu morava para beber até se embriagar. Aí, diária e repetidamente, contava de seus tempos de exército, falava mal do prefeito e, como ninguém lhe dava ouvidos, cochilava um pouco, resmungava sozinho, tomava a última e, cambaleando, pegava sua Kombi; e, graças ao “intenso” trânsito de Sete Barras, chegava são e salvo em sua casa. No dia seguinte, a história se repetia.
O Samuel havia me alertado para ter cuidado ao dar a notícia ao pai de Helena: o velho Odissam, coitado, era cardíaco. Eu cá não sabia como dar a notícia ao velho cardíaco com sutileza tal que não afetasse seu coração doente, na medida em que ele não entendia nada de português e eu não falava nada de japonês.
Saí rumo à casa do Shinzo, encabulado em como cumprir minha missão casamenteira. Penso, repenso. Paro em frente à casa, sigo em frente como não se quer nada e volto. Uma eternidade. Poderia ir duas ruas abaixo e falar com a Dona Alice, talvez fosse melhor. Mas ela já é casada e seu marido não se dá com o Shinzo. Falar com a Nobu não! Era choradeira certa! E se eu falo e o velho morre na minha frente, pensava. Eu devia era matar o Samuel. Então, melhor, em vez de assassinar o amigo, é voltar e telefonar para ele: o Samuel que ligue para o Shinzo. Correto, penso, e tomo o caminho da pensão.
Mas...
Bato palmas e sai de dentro o Shinzo, mais para lá do que para cá, embriagado.
- “E aí professor? Que foi?”
- “Bem, vem aqui fora que preciso te falar”
- “Aí fora? Então vou pegar meu revólver. Tá escuro”
- “Shinzo, sou eu, o professor. Deixa de besteira de revólver e vem aqui fora. Tá ficando louco? Mania de revólver. E ainda fica falando mal de baiano. Merda”.
Ele veio.
- “Então, Shinzo, o Samuel me ligou e disse que a Helena está em sua casa, com sua família e que eles vão casar logo. A mãe do Samuel está fazendo o vestido e ele disse que gostaria que vocês fossem....”
Falei, falei, falei e o Shinzo cambaleava em minha frente.
Finalmente, resolveu dar o ar de sua graça e com a voz embargada pelo álcool e pela notícia:
- “Vou lá buscar minha irmã. Onde eles moram?”
- “Shinzo, não adianta. Ribeirão é longe, você não pode guiar porque bebeu e acho melhor você entrar, contar para seus pais, pensar melhor...”
Indignado por eu ter dito que ele não podia dirigir, Shinzo fez um embolado e confuso discurso, durante quase meia hora. Sua excitação melhorou seu estado geral. Eu lá parado, ouvindo, e ele que queria porque queria saber o endereço do Samuel para buscar a irmã. “Tudo menos casar fugida”, resmungava nervoso, misturando português com japonês em sua fala embriagada.
- “Fugiu não”, eu dizia. “Estão lá se preparando para casar. Quando foge, o ato se consuma antes do casamento e não é este o caso”. Nestas alturas, tirei o pai do Samuel da cama de casal e lá coloquei a Helena junto com Dona Esperança, mãe do casadoiro.
A conversa não tinha fim. Não convencia o Shinzo a entrar em casa e comunicar aos seus a festança que se aproximava.
- “Bom, Shinzo, tchau, até.”
Voltei pensativo. Será que ele vai buscar a irmã? Irá armado? E se ele for mesmo, como aviso o Samuel?
Deitei e dormi.
Duas semanas depois, com o amigo Nobuioshi, fui para Ribeirão. O casamento foi na Catedral, quem os casou foi um grande amigo, o Cônego Arnaldo, e lá estavam, sãos e salvos, os pais da noiva, dona Alice, a Nobu e o Shinzo. Voltaram todos, inclusive o Samuel e a Helena, na Kombi do Shinzo. Em Sete Barras, o seu José os levou de volta a Formosa.
Aproveitei para ficar mais um dia em Ribeirão, com minha família, e, à noite, como o amigo Nobuioshi, fomos beber e farrear na Zona.
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Um comentário:
Orlando...Esse Samuel era mesmo uma figura. Disse era, mas fiquei curioso: a figura ainda vive? O que aconteceu com os personagens dessa história?
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