sábado, 1 de novembro de 2008

CAMINHOS DA FÉ E DA LUZ: MEMÓRIAS, CASOS, DIÁRIO DE BORDO...






São estranhos os nomes das cidades pelos lados dos caminhos da Fé e da Luz: Manhumirim, Manhuaçu,Tocos de Mogi, Carangola, Tombos, Luminosa...

No ônibus, em Manhumirim, de volta para casa do Caminho da Luz, sentei-me ao lado de um mineiro, senhor de seus 65 anos: viúvo, tagarela, só parava de falar ao dormir e vinha para São Paulo visitar um filho. Havia perdido um braço ainda criança e, ao que me parece, não tinha muito controle do toquinho que sobrou, que, quando o dono dormia e relaxava o corpo, me cutucava o tempo todo. E o homem falava, falava e falava, assuntando os mais diferentes ocorridos com o sotaque e a cordialidade dos homens do interior de Minas. Quando resolvia mudar de assunto dizia: “e por falar em água”...e vinha história de chuvas, minas d´agua, raios, colheitas! Bastava ouvir e concordar: AM RAN! UM RUM!!! SIM SENHOR!!! A atenção à conversa às vezes era pouca: me encantava o sotaque e, mais que isso, os diferentes assuntos e a maneira como os casos eram contados, que me levavam – como em um surto de regressão hipnótico – à infância, às casas e aos “causos”, às escolas, às amizades, aos ares e à vida vivida na divisa entre São Paulo e Minas. “Sabor de infância”, como diria Eva, a minha mulher.

E por falar em “sabor de infância” - que lembra comida - vale contar das comidas nestas andanças. Come-se bem nestas caminhadas: comidas simples, quase sempre feitas e cheirando banha de porco. Nos restaurantes daquelas pequenas cidades, há, nos dias de hoje, a tal de “comida caseira”: prato que consiste em arroz, feijão, salada – pouca -, um legume e a “mistura”, que pode ser escolhida entre bife de porco, de galinha ou de vaca. Em Tocos de Mogi, além destas opções, havia a deliciosa lingüiça de porco, a escolhida por mim, claro.

Havia tempos, e bota tempo nisso, em que não ouvia mais a palavra “mistura”, muito comum em minha infância. “Mistura” era a carne, quase sempre muito pouca, o legume – quase sempre o chuchu, ou a abobrinha, ou, mesmo, a abóbora madura - que eram “misturados” ao básico arroz, feijão e farinha.

Li, certa vez, um artigo no qual o autor dissertava a respeito das tradições culinárias da fartura e opulência versus a tradição da divisão, da restrição, da parcimônia. A cultura culinária da parcimônia, do pouco, da “mistura”, é a cultura do frango matado no quintal e que, somado ao quiabo, tinha que ser dividido por toda a família: a coxa grande e carnuda para o pai, o peito para o tio, a moela para o irmão mais velho; sobrava, para os menores, misturar ao arroz e feijão, os pés, a cabeça e o pescoço... Quer saber de um sabor de infância, difícil de ser repetido agora na velhice? No caldo do fundo da panela, onde o frango havia sido cozido, colocava-se bastante cebolinha verde, misturava-se bem, para depois ser jogado sobre uma generosa porção de farinha de mandioca: quer coisa mais “sabor de infância” que isso? Será que o “sabor de infância” é, na verdade, fruto da culinária da parcimônia, da divisão, da “mistura” tão dividida? Tem horas em que acho que sim, que o “sabor de infância” foi roubado pela cozinha da fartura; mas o “sim” da certeza dura pouco: o dia de fazer pamonha era dia de fartura, muita, aliás.
Agora, aproveitando ainda o assunto “sabor de infância” e para assuntar o escrito de que foi a “fartura” que acabou com estes sabores, vale contar dois casos verdadeiros, acontecidos, mesmo. O primeiro, de um sobrinho em uma viagem que fizemos a Santos, com direito a posterior passeio para “pagar promessa” em Aparecida do Norte. Ao saber que, pela primeira vez na vida, comeria em um restaurante, Zezinho foi taxativo: no restaurante, só queria comer um “monte” de coxinhas de frango: nada de arroz, nem feijão, muito menos pescoço e pés; empanturrar-se de coxas de frango era o seu desejo. Outra história de verdade foi a de uma minha cunhada, me lembro bem, que uma vez disse que seu sonho seria, um dia, poder comer maçãs sem se preocupar em dividir: comer, comer e comer maçãs. Eu, já adulto e a trabalho, em São Luiz do Maranhão, fiz o mesmo com camarão: nada de comer camarão como mistura; queria, e o fiz, me empanturrar de camarão; até hoje me lembro o tão bom que foi.

Voltemos às “misturas”: em Catuné, comemos um palmito refogado, colhido de pouco, e, em Alto Caparaó, comemos uma taioba que dava gosto: mistura com fartura e sabor de infância; já em Estiva, o café da manhã foi à base daquele biscoito de polvilho assado, grandão, meio duro, saborosíssimo.

E já que o assunto é comida: em Borda da Mata, no Caminho da Fé, chegamos ao hotelzinho, no final de uma tarde de domingo. Saímos à procura de um lugar para comer: eu para um lado e o Pablo, meu companheiro de viagem, para outro. Descobri um restaurante que estava fechado e o Pablo descobriu um bar perto da praça principal da cidade, que tinha uma televisão com canal por assinatura e que – logo, logo - iria transmitir um jogo do Corintians. Fomos para lá. O bar virou um estádio: cadeiras colocadas em fileira, muita cerveja, pinga, petiscos e fumaça de cigarro. Comemos frango assado, destes de televisão de cachorro, com pão, até que eu, desatento ao jogo na TV, percebi que havia no balcão pedaços de chouriço fritos, pousados sobre uma manta de farinha de milho: negros, feios, com as manchas transparentes de gordura em seu miolo mole. Não há nada mais “sabor de infância” que chouriço: dá para ouvir os berros aloucados, estridentes e alucinantes do porco sendo morto pela faca de ponta, sentir o clima de festa dos “dia de matar porco”, o cheiro de banha, de torresmo. Foram muitos os sabores, os cheiros e recordações de infância trazidas pelos vários pedaços de chouriço saboreados naquele bar. Além disso, o Corintians estava ganhando o jogo: tem coisa melhor que isso?

Em Faria Lemos, no Caminho da Luz, há um restaurante, penso que o único da cidade, chamado de FEIJÃO SEM BICHO. Marqueteiro, o dono esparramou placas de seu restaurante ao longo da estrada. O Feijão sem Bicho serve moqueca de cascudo, cascudo frito e traíra sem espinha. Dado o cansaço e à chuva que caia torrencialmente, escolhemos o trivial: comida caseira com bife de vaca. Pinga, cerveja, coca light e, para cumprir o ritual de “sabor de infância” que Minas sempre traz, pedimos uma porção de lambaris; e estes vieram fritos, envoltos em fubá de milho, sequinhos, gostosos de comer até a cabeça crocrante: croc, croc, croc!!! Eram tantos os lambaris douradinhos no prato fundo que nem pareciam “mistura”. Tempos modernos, de agora, de cozinha da fartura, de lambaris caçados em rede e não pegos um a um no anzol com isca de minhoca; a cada fisgada, o lambari chicoteando e prateando o ar com suas escamas: uma festa para o coração! Daí era o tempo de, com os dedos, cortar outra minhoca, iscar de novo o anzol e esperar. Tempos de infância, lerdos, preguiçosos, sem pressa e sem depois; tudo agora.

Mudar de assunto para não enjoar. Um pouco de diário de bordo.

Fizemos o Caminho da Fé, em seu percurso por Minas, em toda sua extensão: saímos de Águas da Prata e fomos parar em Campos de Jordão; o Caminho todo tem seu início em Tambaú e seu término em Aparecida do Norte. A parte que percorremos foi feita em duas etapas: a primeira, de Águas à Borda da Mata, nossa primeira experiência em caminhada longa; depois, numa segunda etapa, de Borda da Mata a Campos. Este trecho do Caminho da Fé é simplesmente maravilhoso; inicia-se “ladeando” a Mantiqueira e, depois, principalmente de Tocos de Mogi a Luminosa, penetra-se em seus fundões e a gente se vê cercado de Mantiqueira por todos os lados. Luminosa, por exemplo, uma pequena vila, com mais de mil metros de altitude, é cercada por altas, inalcançáveis, azuis e pedregosas montanhas. Em uma delas, em seu topo, o observatório astronômico de Brasópolis. Tivemos sorte; foram noites estreladas, céu azul, cheiro de ar, corpo cansado caído em cama limpa: depois de um dia de caminhada, um bem inestimável para a alma.

Ainda um pouco mais de diário de bordo. O Caminho da Fé tem sua origem em caminhadas de peregrinos à Aparecida do Norte para cumprir promessas por graças alcançadas ou para buscá-las; é isso, talvez, que leva o pessoal da região a respeitar, e muito, os caminhantes que fazem o Caminho hoje; há um certo clima místico envolvendo os peregrinos que, em sua grande maioria, faz o percurso motivado por questões religiosas. É um caminho bem sinalizado e que, no geral, permite sempre que se faça diariamente, em pousadas ou bares, as duas refeições tradicionais: almoço e jantar; assim, como os pernoites são em hotéis, pousadas ou casas de família cadastradas, não há necessidade de “matulas” nas mochilas. O Caminho da Luz exige um maior preparo físico porque as distâncias diárias a serem percorridas são, em média, maiores e há dias em que o almoço tem que ser levado na mochila; não é tão bem sinalizado, mas há, quando comparado com o Caminho da Fé, uma abundância maior de frutas nas estradas e maior facilidade de acesso a cachoeiras, riachos, corredeiras.

Contar um pouco do que as pessoas perguntam nas voltas destas caminhadas, ou mesmo durante as mesmas; responder perguntas e não ficar falando o que dá vontade. Por preguiça, é melhor resumir: não se passa fome, não se dorme em barracas no meio do mato, a maior parte do percurso é feito em estradas vicinais e não em trilhas e as pousadas são agradáveis, limpas e a custos muito razoáveis: em média, uma pousada com “janta”, cama e café da manhã fica em torno de vinte reais. Resposta à outra curiosidade muito perguntada: marcha-se, em média, de seis a sete horas por dia, sendo que, no Caminho da Luz, esta média cai para cinco ou seis horas, fazendo-se, em média, 20 a 24 quilômetros por dia. A segurança é absoluta: você caminha seis, sete dias e não há nenhum estresse, apenas cansaço físico. No geral, as cidades do Caminho da Fé são mais bonitas que as do Caminho da Luz: neste caminho sobressaem Tombos e Espera Feliz.

Caminhar é uma resposta ao prazer de falar consigo mesmo. Fica-se muito quieto, fala-se muito, bebe-se água destas em garrafinhas de plástico e nas bicas da beira da estrada; descansa-se à sombra de uma árvore ou à beira de um riacho para tomar fôlego ou só para descansar mesmo; cansa-se nas subidas e enche-se os olhos e ouvidos com tanta beleza do em volta: às vezes um mar de montanhas, às vezes o barulho rouco da cachoeira invisível, tão desejada; outra hora é o agudo som do canto dos galos e, vez ou outra, de ariscas de seriemas; e o dia se passa assim, devagar, muito devagar, sem pressa, pouco se importando de chegar e isso é o melhor! Chega-se sempre cansado ao fim do dia; aí então, é um dedo de prosa na pousada, na praça da cidade, no bar da esquina. O banho quente é o aperitivo para mais uma “janta” silenciosa, restauradora das forças e do ânimo. Deita-se cedo e aproveita-se para recordar os acontecidos: muitos.

Luminosa é um pequeno distrito no município de Brasópolis. Pertenceu a São Paulo e desgarrou-se deste estado para se amasiar com Minas Gerais, na revolução de 32. Tem mais cara de cidade mineira mesmo. Pouco depois de se passar pelo povoado de Canta Galo, município de Paraisópolis, vê-se do alto de uma vertente da Mantiqueira, lá embaixo, a pequena Luminosa, com seus mil e poucos metros de altitude: cara e jeito de uma cidade medieval européia. “Só que de gentios desrespeitosos deixaram do lado de fora os seus mortos”, pensei, ao ver, separado da cidade e fora dos muros inexistentes, o cemitério. No mais era só inventar com o pensamento o muro de pedra e lá estaria a medieval Luminosa. Era dia de festa religiosa. Cidade cheia de gente e de misturas improváveis nos dias de hoje: encontrava-se lá, na ruazinha única da cidade, estacionadas ao lado dos cavalos e das mulas, potentes motos “off road”; caipiras com suas calças justas, canivete atado ao cinto, chapéu de aba larga ao lado de fortes e ruidosos rapazes em suas indumentárias coloridas de percorrer velozmente trilhas com suas motos; por ser dia de festa, muitos bêbados nas ruas: alguns tentavam, em seus cavalos, acrobacias e peripécias para fazer bonito para as mocinhas, mas seus cavalos, obedientes e dóceis, mesmo cutucados pelas esporas afiadas e cortantes, reconhecendo o estado de seu dono, teimavam em andar a passos curtos e seguros, o cavaleiro cambaleando - com o sorriso de bêbado - todo torto em seu dorso. Na calçada, carros estacionados, com o volume do som o mais alto possível, tocando forrós acompanhados por bandos de jovens alegres e barulhentos. Perto da igreja, em um galpão improvisado, havia leilão para “arranjar fundos” para reformar a bela igrejinha de frente à praça. E jovens namorados se beijando na boca com muita sensualidade, pouco se importando com o mundo lá fora: puro prazer. Tinha de tudo em Luminosa.

A “janta” e o café da manhã estavam inclusos nos vinte reais a serem pagos na pousada de Luminosa. Muito simples e limpa, fica no andar de cima do bar do casal; naquele dia, o movimento aumenta e dona Neuza vai ajudar o marido: fritar frango e batata para acompanhar a cerveja dos motoqueiros e cavaleiros daquele domingo de alegria na pequena vila; “tem que se aproveitar o dia”, dizia; da janela da pousada se vê o difícil caminho do dia seguinte: serão por volta de quatorze quilômetros de subida forte. Hora da “janta”, que é servida na cozinha da família. Por causa da festa e para ajudar no bar, estava lá a mãe da Dona Neuza, que é intimada: “Mãe, janta com os moços para fazer companhia para eles.”

O cheiro de fogão de lenha e banha de porco, ser chamado de “moço” e a companhia da velha e comilona senhora aumentou o apetite. Uma repentina folga no bar deixou livre Dona Neuza, que, esperta, fez logo seu prato e, como minha mãe o fazia, comeu em pé, ao lado do fogão. Comida da “janta”: arroz, feijão, farinha de mandioca, salada de alface com tomates, chuchu, mandioca frita, bife de vaca e pedaços de leitão assado, arrematado no leilão da igreja por vinte reais - deliciosos.

Como, no dia seguinte, a caminhada prometia ser árdua, o recurso era sair cedo: foi o que dissemos à Dona Neuza, e tivemos a mais inusitada das respostas: “Meu quarto é este aqui. É só baterem na porta, me acordarem que faço o café rapidinho; vou deixar tudo arranjado.”
Na manhã seguinte, pela primeira vez em minha vida, estou eu lá batendo na porta do quarto para acordar e não ser acordado pelo dono do hotel; sono leve, Dona Neuza acordou rápido e mais rápido ainda fez o solicitado café sem açúcar, ou, em seu dizer, “café margoso”: palavra que há anos não ouvia.
Como disse um pouco antes, para chegar a Luminosa, passa-se por Canta Galo: um amontoado de quatro ou cinco casas em volta de uma igrejinha, a mais ou menos doze quilômetro de Luminosa. Canta Galo fica no estado de São Paulo, município de Campos de Jordão. O povoado é anunciado por um caudaloso ribeirão e uma placa “peixe frito” colada ao poste de energia elétrica. No povoado, dois “bares” com pequenas mesas de sinuca; em um, uma turminha de rapazes jogava e bebia, no outro, uns três ou quatro senhores bebiam e conversavam.

“Peixe frito hoje não tem, mas tem lingüiça”. E lá se vai um bom papo, regado a lingüiça: fininha, apimentada, feita com a tripa de porco. Papo vem, papo vai: de onde somos, porque fazemos a caminhada, quando saímos? Penso que, mais pela idade, somos focos de muita curiosidade e admiração.

Aí fala seu Alfredo, o dono do bar, um senhor gordo, ágil, forte e de um otimismo contagiante para os seus setenta e tantos anos: “Comercial hoje não tem porque a mulher foi para Luminosa rezar; estou eu e a filha só; se quiserem um prato feito, tem.” Quizemos. O seu Alfredo some lá para os fundos e se sente logo o cheiro de alho e banha de porco. Pouco depois, lá vem ele - gordo, balançando a barriga - segurando dois enormes pratos fundos, cheios e altos como as montanhas de Minas. No topo da “montanha”, uma omelete de um amarelo ouro, manchado com o verde escuro da cebolinha. Para segurar os pesados pratos, os dedos do seu Alfredo se enfiavam adentro da deliciosa comida: feijão, arroz, macarrão e o omelete delicioso - três reais. Enquanto comíamos, seu Alfredo contava de seus planos: abrir uma pousada, para receber os peregrinos do Caminho da Fé.

Você leu Cidades Mortas do Monteiro Lobato? Se leu, vale a pena ir a Consolação, há uns vinte e poucos quilômetros de Tocos de Mogi, para reverenciar o talento do velho Monteiro ao descrever as cidades mortas do Vale do Paraíba. Se não leu, vale a pena ir do mesmo jeito: sentir nos ossos e na alma o que sentiu o escritor. A cidade é o silêncio total: um silêncio que incomoda, que não descansa, silêncio de velório. Mesmo na principal rua da cidade, perto da igreja, há casas abandonadas, trincadas, cheias de musgos. Nada se escuta, não há barulho até que, de repente, o alto falante da igreja anuncia, para as quatro horas da tarde, a missa da padroeira. Volta o silêncio, o ninguém nas ruas, os cachorros na praça...

À tarde, sentado na praça frente à igreja, somos abordados por um morador que tem consigo um livro com a história de Consolação. Uma publicação simples, em “of set”, feita pela Câmara Municipal, com nome e foto de todos os prefeitos, presidentes da câmara e dos párocos – que hoje não tem mais – da cidade e mais um amontoado de dados: hoje, a cidade tem por volta de mil habitantes; no final do século dezenove, chegou a ter mais de cinco mil e a realizar, em um ano apenas, mais de duzentos batizados de cristãos e “ingênuos.”

Choveu bastante durante a tarde; o quarto onde dormimos era úmido e o clima de “fim de festa” da cidade contagiou-me: baixou uma tristeza melancólica e uma vontade de não falar e de ficar quieto até no pensamento.

Em Consolação, e também em Luminosa, é ansiosamente aguardada a volta de seus aposentados que, quando moços, de lá saíram para ganhar a vida em outros campos: casas serão reformadas, o jogo de damas e cartas na praça ganhará mais um parceiro e as “rezas” da tarde mais uma “puxadeira” de terço.

Em casa, mais tarde, vejo no Aurélio: “ingênuos” são os filhos de escravas beneficiados pela lei do Ventre Livre.

Ao silêncio triste de Consolação se opõe o barulho de Estiva e Paraisópolis...Burburinho na praça cheia de crianças correndo e brincando, de casais de namorados, de velhos de terno, passando apressados para não perder a hora da missa, pessoas nos bancos conversando, ouvindo o barulho...Fechava os olhos e ouvia o burburinho de vozes e sons e, apesar de ser um amante do silêncio, aquele mormaço de vozes, de berros e gritos, do som do alto-falante me fazia bem; me sentia como na pracinha de Pedregulho, aos domingos, logo depois da missa das nove. Muito bom. Caminhar é isso também.

Por falar em barulho, vou contar das sonoras gargalhadas dadas em Faria Lemos. Não sei se já disse antes, mas chovia adoidado no fim de tarde e início de noite, naquele dia. A pousada que ficamos era sobre um pequeno supermercado: mesmo dono. Roupas lavadas, banho tomado, a noite começa a aparecer e a fome vem junto com a escuridão. O restaurante indicado pelo pessoal da pousada era o único da cidade: o FEIJÃO SEM BICHO. Chovia torrencialmente. Uma sugestão do dono da pousada: pedir a comida por telefone. “Delivery”, sim senhor, serviço do Feijão sem Bicho, basta telefonar e logo, logo chega a “quentinha”: só que aí não teria a pinguinha, a cerveja, o papo, o cheiro de restaurante...Resolvemos ver se a chuva esmaecia um pouco: demos a São Pedro um prazo de meia hora.

Aproveitando o prazo de meia hora dado a São Pedro, tenho que abrir um parênteses, que é o seguinte: quando estive fazendo um curso no Japão, um dia qualquer por lá, resolvi comprar uma capa de chuva, que estava em promoção, para oferecer à minha mulher, quando de lá retornasse. Até hoje, a bendita capa não foi usada: ela lembra um pouco os ponchos mexicanos, feita de tecido a prova d´água, com capuz e tudo o mais: branca, cheia de bolinhas pretas. Pois bem: em minhas caminhadas, pelo pouco peso e pelo pouco espaço que ocupa, levo a tal da capa. Fecham-se os parênteses. Afinal, passaram-se vinte e cinco minutos, a chuva continuava e resolvemos ir ao Feijão sem Bicho, mesmo sob a forte chuva. Ponho, então, minha capa. À porta do supermercado, clientes e proprietários comentam a chuva e indicam a localização do restaurante: coisa de cinco ou dez minutos, dizem. Percebo que o Pablo mantém sempre uma distância de mim; não entendo o porque? Andados uns cinqüenta metros, vem lá o amigo espanhol com a pergunta:
“Não tinha uma capa menos “maricon”? Esta é demais, ainda com estas florzinhas...Não percebeu que fiquei longe de você? Era para mostrar que não tenho nada a ver com isso”

Gargalhada geral: um riso forte, incontido, saía do fundo do estômago faminto, atravessava todo o corpo e, quando chegava na boca, soltava um som que era o barulho de todo um corpo que gargalhava gostoso.

Chegamos os três no Feijão sem Bicho: Pablo, eu e minha capa de “maricon”. O dono do restaurante, que, naquele dia de semana e com aquela chuva toda, não esperava cliente nenhum, nos olhou desconfiado. Fui arranjar um local para pendurar minha capa. O estranhamento, disse ao Pablo, foi que, ao nos ver entrar, imaginou logo um casal de velhinhos e ficou intrigado ao ver que a “velhinha”, ao tirar a capa, era um velhinho; será que passou debaixo do arco íris? Mais um parênteses: não sei se vocês sabem, modernos leitores, mas quem passa debaixo do arco-íris troca de sexo: se for homem vira mulher e se é mulher vira homem; bom mesmo, quando se trata de arco-íris, é encontrar e alcançar seu começo: ele sempre sai de um pote cheio de ouro, por isso é colorido e tão bonito; fecha-se o parêntese. Era a senha para continuar a gargalhada de corpo inteiro. Rimos muito e jantamos bem. Da comida deste restaurante já contei, aquela do prato cheio de lambaris. Não choveu mais durante toda a caminhada.

Escrever, como caminhar, é também um jeito de conversar consigo mesmo: sonha-se, pensa-se, e o pensamento voa...Mas tem uma hora em que se tem que parar, e esta hora chegou, porque fim não tem mesmo.

8 comentários:

Morales disse...

Essa história do arco-iris...sabia da lenda do pote de ouro, mas essa de trocar de sexo é nova para mim, apesar de minha DNA(Data de Nascimento Antiga). Já pensou se uma parada gay passa inteira embaixo de um arco-iris?

Anônimo disse...

Tonhão,
Boa tarde!
Pois é, já pensou?
De verdade eu morria de medo de "passar debaixo" do arco-iris, para não virar mulher e de apontar estrelas cadentes para não nascer verrugas...
Orlando.

Anônimo disse...

Descobri, somente hoje consegui ler seus "causos", de onde vem a "boa prosa" do Orlando. Lindas e emocionantes as histórias! Também não pude conter o riso, imaginando a cena: o amigo, a capa de bolinha, a cara do dono do bar, e mais, fiquei com vontade de comer lambaris douradinhos.

Orlando disse...

Lu, minha querida!
Que visita mais importante!
Este "maricon" da história é um espanhol, gente finíssima, muito amigo meu.
Vontade de comer lambaris? Onde será que se consegue isso aqui em Sampa, meu Deus? Sei não.
Abraço forte,
Orlando.

Berenice disse...

Ola Orlando! Li seu texto sobre o Caminho da Fé e, como moradora de Luminosa, tenho que admitir, fiquei bem decepcionada com seus comentários. Você zombou do nosso cimitério sem saber da sua importância pra região. Riu da nossa pousada, da nossa comida, sendo que nós o acolhemos e alimentamos. Você reduziu nosso bairro a 1 rua e achou graça de como nosso povo se diverte e se locomove.
Me desculpe mas você não sabe o que são aquelas motos e nem de onde vem; você não conhece nossa cultura, nem tão pouco nosso trabalho. Não reduza um bairro com tanta história e tatna beleza a comentários tão pobres.
Volte e passe mais que uma noite aqui. Procure conhecer nossa história e você verá beleza em tudo que antes era apenas um motivo de piada.

Bia disse...

OLA ORLANDO, SOU BEATRIZ E VI SEU COMENTARIO SOBRE LUMINOSA. NASCI LA, INFELIZMENTE TIVE QUE DEIXA-LA, POR MOTIVOS DE ESTUDO, TRABALHO, VC SABE, ...MAS, GOSTARIA DE FAZER UM BREVE COMENTARIO SOBRE SUA CITACAO E INFELIZ OPINIAO SOBRE LUMINOSA. LA, AS PESSOAS SAO SIM CAIPIRAS, COMO FOI CITADO POR VC, POREM, SAO PESSOAS TRABALHADORAS, ESFORCADAS, QUE VIVEM DE SEU SUOR NA LAVOURA, FAZENDO PLANTACOES, COISA QUE VC NAO DEVE TER OBSERVADO, POIS ESTAVA MUITO PREOCUPADO COM O ESTERIOTICO DAS PESSOAS, NAO COM A BONDADE, SEU INTERIOR, A PAISAGEM QUE LUMINOSA TINHA PRA TE OFERECER. VC MESMO MENCIONOU QUE NASCEU EM UMA FAMILIA GRANDE, FOI O UNICO QUE ESTUDOU, MAS PELO VISTO, NAO VALEU MUITO SEUS CONHECIMENTOS, NAO E? SERA QUE SE VC TIVESSE FEITO O CAMINHO DE SANTIAGO, OS COMENTARIOS SERIAM OS MESMOS? LUMINOSA, E UM LUGAR COM VARSEAS LOTADAS DE PLANTACOES, UM ARTESANATO MUITO RICO, PROFISSIONAIS NAS ESCOLAS QUALIFICADOS, LA TEM O "RECANTO DOS NAMORADOS", LUGAR LINDISSIMO, INCLUSIVE FOI LA MINHA FESTA DE CASAMENTO, CACHOEIRAS MUITO BELAS, ARTISTAS, UM ALAMBIQUE FAMOSO, DENTRE OUTRAS. VC POR UM ACASO VIU A PEDRA DO TATU? UMA SERRA NO QUAL, HA FESTA TODOS OS ANOS E VARIAS PESSOAS DE VARIOS LUGARES VAO PRA FESTEJAR. VC NAO DEIXOU DE MENCIONAR TB SOBRE O CEMITERIO, ELE SO ESTA COLOCADO LA, PORQUE A PRACA, NOS DEIXAMOS PARA AS CRIANCAS BRINCAREM, OS NAMORADOS SE BEIJAREM LOUCAMENTE, COMO VC MESMO CITOU, OS MORTOS, NAO LIGAM DE FEDEREM LA LONGE...LUMINOSA TEM VARIAS RUAS, MAS A PRINCIPAL E SO AQUELA NA QUAL VC PASSOU. LUMINOSA TEM UMA POUSADA SOMENTE, ONDE VC SE HOSPEDOU E A DONA, A "DITINHA", E NAO DONA NEUZA, COMO VC DISSE, E MUITO HOSPITALEIRA,EDUCADA, DEIXOU ATE A MAE DELA, A "VELHA COMILONA" PRA TE ACOMPANHAR NA "JANTA", PORQUE PRA ELA, VC NAO ERA CONSIDERADO SOMENTE UM HOSPEDE, MAS SIM, ALGUEM QUE FAZIA O CAMINHO DA FE, ALGUEM QUE PROCURAVA ALGO DE ESPECIAL, ALGO ILUMINADO, PRECIOSO, QUE DEUS TINHA QUE TE MOSTRAR E ABRIR SSEU CORACAO. INFELIZMENTE VEJO QUE DESSA VEZ ISSO NAO ACONTECEU, MAS CREIO QUE VC AINDA IRA VOLTAR E DESCOBRIRA AS RIQUEZAS DA NATUREZA, AS MARAVILHOSAS SERRAS, POIS NO BRASIL," NAO EXITE MONTANHA", SOMENTE SERRAS.ESPERO DE CORACAO QUE VC REFACA O CAMINHO E NAO PRESTE SOMENTE ATENCAO NAS PESSOAS, NA COMIDA, NA HOSPEDAGEM, MAS SIM, QUE VC ESCUTE O QUE DEUS TEM PRA TE DIZER TB

Kátya disse...

Kátya
Caminho da Fé! Feito ao longo da serra da mantiqueira proporciona paisagens lindíssimas, onde podemos entrar em contato com a natureza! Ao longo do caminho encontramos pessoas diferentes umas das outras, cada uma com sua cultura, mas todos respeitam-se mutualmente e que acolhem os peregrinos de uma forma hospitaleira sem igual!Uma experiência unica! Mas infelizmente o seu Orlando ficou tão preocupado em fazer comentários infelizes e depreciativos sobre o local, q não foi capaz de ver as belezas! Sabe seu Orlando, devemos aprender a respeitar as pessoas! Vc poderia ter escrito suas esperiência sem defamar ninguém! Mas o problema é que qando somos vazios por dentro, qando não aprendemos a cultivar amor e respeito a tudo e a todos, o resultado são esses textos ricos em palavras, mas pobres em significado real! Pois eles apenas demonstram a sua incapacidade de perceber as maravilhas divinas! Quem fez VERDADEIRAMENTE o caminho da fé, qem o buscou a fim de se reencontrar e o fez de coração, sabe q seus relatos são extremamente distorcidos. Quem sabe se o senhor voltar a fazer o caminho, com um pouco mais de maturidade para entender e vivenciar o NOVO, o desconhecido por você, vc não consiga enchergar e entender o que o caminho da Fé representa realmente!
Gostaria de pedir a todos que já fizeram o caminho e que leram essas páginas , possam escrever suas proprias experiências a fim de comprovar o quão mentirosas são essas palavras !

Lumah disse...

Orlando, a simplicidade das palavras, sentimentos e atitudes é a forma mais rica de viver e, principalmente, conviver no mundo. É preciso ter cuidado ao expressar nossas ideias; elas revelam o que somos!
O bom escritor observa, analisa e relata fatos reais ou fictícios, mas sempre levando o leitor à interpretação mágica( sem deturpar a realidade )e, infelizmente, nem todos conseguem esta arte. Somente pessoas vividas, realmente, o que chamo de especiais é que reconhecem os especiais. Aprendi isso na simplicidade e ao conviver/morar em outras cidades. Quanto mais andamos pelo mundo, mais aprendemos a respeitar as diferenças e culturas. E sinto que isso vocÊ não aprendeu. Quanto mais simples somos, mais puros também de coração. E, você? Por que este coração duro, frio?
Você citou em sua passagem um leilão, perto da igreja, num " galpão improvisado "aos seus olhos.Este é o Salão Paroquial da nossa Igreja de Nossa Senhora das Candeias, construído com doações de nossa comunidade. Quer generosidade maior que esta? Você já ajudou a sua cidade de origem a construir algo, por mais simples que fosse? É essencial trabalhar a nossa espiritualidade. Pense nisso e comece a partir de hoje!
O nome estranho da medieval Luminosa tem origem da padroeira N. Sra. das Candeias ou da Luz. Décadas atrás,era Candelária, no estado de São Paulo e, hoje, Distrito de Luminosa, Minas Gerais. Por sermos do interior, tratamos a todos como se fossem da família. Esta forma hospitaleira, nem sempre é compreendida por pessoas que se dizem cultas e até conhecedores de outros países.
Sou professora e minha família é de Luminosa,por isso a defendo e te convido voltar e rever a nossa " bela igrejinha " pintada recentemente e que está ainda mais linda bem como outras de nossas maravilhas!
Abraços.