A missa era rezada em latim. O Padre, sempre o Frei João, e, algumas vezes, o Frei Elias, de frente para o Santíssimo e de costas para os fiéis. Era assim.
Nós, os coroinhas, éramos em seis ou sete. Tinha o Lúcio, o Roberto, o Gilberto, o José Américo, o Ataliba e outros. Havia, entre os coroinhas, uma hierarquia. Os que sabiam responder toda a missa e os outros, entre eles eu, que capengava em partes como o “sursum corda”, o “confiteor” e na liturgia complexa de algumas cerimônias religiosas especiais.
Para a missa das nove, aos domingos, os melhores eram escalados. Eu era salvo pela minha incompetência. Ajudava na missa das seis e às nove já podia estar jogando ping-pong no salão paroquial, fumando escondido ou participando de um jogo no campinho de futebol perto da Santa Casa.
A missa das nove era dos “ricos” e o sermão que o Frei João pregava era transmitido, por alto-falante, para toda a praça. Ouviam os fiéis de dentro da igreja e os maridos que só iam à igreja para fazer companhia às suas mulheres e ficavam nos bancos da praça central. Hoje, eu penso que, pelo tamanho de Pedra Negra e pela potência dos alto-falantes, não só a praça era beneficiada pelo serviço, mas, sim, toda a cidade. Talvez só não desse para escutar lá na Bela Vista e no bairro das putas - eram duas -, perto do cemitério.
Às vezes, não tinha ping-pong ou um futebolzinho para jogar e ficávamos fumando escondido, nos bancos da praça. Ouvir o sermão do frei João, na praça, era, para mim, um enorme sacrifício. Eu tinha um grande amigo, o Romeu, que era espírita, e o sermão da missa das nove era, quase sempre, um estraçalhar o espiritismo e dizer gatos e sapatos do Allan Kardeck. Quando eu comecei a namorar a Cidinha, filha do Seu Mário, que era o “médium” do centro espírita, a situação era ainda mais constrangedora.
Para ajudar a missa - era assim que se falava -, disputávamos, os coroinhas, a ordem de entrar no altar. Essa ordem, se atrás ou na frente do padre, era que determinava o lado - esquerdo ou direito - em que ficávamos no altar e as conseqüentes tarefas atribuídas a cada lado.
Assim, quem ficava do lado esquerdo segurava a bandeja na hora da comunhão. Segurar a bandeja, enquanto o Frei João distribuía a hóstia santa, me conferia uma autoridade singular. Era a hora em que se podia ver as línguas enormes dos fiéis, amigos ou inimigos, amados ou odiados, parentes ou não. Ficavam todos lá, com a língua de fora e os olhos fechados, à espera da hóstia santa, e eu, ao lado do padre, todo importante, segurando a bandeja para que partes do corpo santo de Cristo não fossem ao chão.
Antes da missa, havia filas para a confissão. Depois que eu fiz a primeira comunhão e já sabia mais dos pecados, ficava horrorizado ao ver algumas pessoas comungando sem se confessar: a mocinha que ontem à noite, no clube, estava no maior agarra-agarra com o namorado e, mesmo, aquela mulher casada, que eu – toda a cidade sabia - havia visto em pouca vergonha com outro homem também casado, que não era o seu marido e que, agora, meu Deus do céu, recebia de olhos fechados a santa hóstia.
O Gilberto, coroinha amigo meu , em conversa supersecreta, falava de sua mãe: havia ouvido sons estranhos e respirações ofegantes, ainda de manhã, no quarto dos pais, e agora, sem se confessar, estava lá sua mãe comungando. “Casada e com o marido pode”, afirmava eu, solenemente e com a mais alta autoridade.
Assombro maior aconteceu comigo um pouco mais tarde. Não me lembro se ainda era coroinha, mas, com certeza, ainda amigo do Frei João. Uma noite, após a reza das sete, ficou claro que minha prima estava em sua casa. Havíamos subido juntos a rua Rio Branco até a igreja. Dali, antes da cerimônia, foi com Frei João para a casa paroquial. Lá, todas as luzes ficaram acesas por algum tempo e padre amigo voltou sozinho para a igreja.
Frei João não se confessou e, na manhã seguinte, todo senhor de si, dizia a santa missa das seis, bebia o sangue ... e o corpo do Senhor. Assisti à missa e fui jogar bola.
Dentro de mim, o orgulho de saber do maior segredo da cidade. Segredo que não me fora não contado por algum amigo, nem mesmo pelo Chupança, que de tudo sabia, mas descoberto por mim mesmo; meio sem querer e sem nenhuma competência de detetive: apenas o acaso e a falta de cuidado dos dois os haviam denunciado.
Prometi a mim mesmo manter segredo e convivi com ele, às duras penas, por um longo e interminável mês. Uma noite, fui dormir na casa de um primo e não agüentei: contei. No meio do relato, secamente, o Maurício disse que já sabia. Aproveitou e me contou também do Frei Elias com a Vera. Esta eu também já sabia, desforrei.
No dia seguinte, fui contar ao Antônio Henrique: também já sabia.
Meu irmão, o André, também já sabia e me falou de outros encontros dos dois.
- “Onde?”
- “Lá na casa da Tia Júlia”.
Parei de contar meu segredo.
Todos já sabiam.
Nós, os coroinhas, éramos em seis ou sete. Tinha o Lúcio, o Roberto, o Gilberto, o José Américo, o Ataliba e outros. Havia, entre os coroinhas, uma hierarquia. Os que sabiam responder toda a missa e os outros, entre eles eu, que capengava em partes como o “sursum corda”, o “confiteor” e na liturgia complexa de algumas cerimônias religiosas especiais.
Para a missa das nove, aos domingos, os melhores eram escalados. Eu era salvo pela minha incompetência. Ajudava na missa das seis e às nove já podia estar jogando ping-pong no salão paroquial, fumando escondido ou participando de um jogo no campinho de futebol perto da Santa Casa.
A missa das nove era dos “ricos” e o sermão que o Frei João pregava era transmitido, por alto-falante, para toda a praça. Ouviam os fiéis de dentro da igreja e os maridos que só iam à igreja para fazer companhia às suas mulheres e ficavam nos bancos da praça central. Hoje, eu penso que, pelo tamanho de Pedra Negra e pela potência dos alto-falantes, não só a praça era beneficiada pelo serviço, mas, sim, toda a cidade. Talvez só não desse para escutar lá na Bela Vista e no bairro das putas - eram duas -, perto do cemitério.
Às vezes, não tinha ping-pong ou um futebolzinho para jogar e ficávamos fumando escondido, nos bancos da praça. Ouvir o sermão do frei João, na praça, era, para mim, um enorme sacrifício. Eu tinha um grande amigo, o Romeu, que era espírita, e o sermão da missa das nove era, quase sempre, um estraçalhar o espiritismo e dizer gatos e sapatos do Allan Kardeck. Quando eu comecei a namorar a Cidinha, filha do Seu Mário, que era o “médium” do centro espírita, a situação era ainda mais constrangedora.
Para ajudar a missa - era assim que se falava -, disputávamos, os coroinhas, a ordem de entrar no altar. Essa ordem, se atrás ou na frente do padre, era que determinava o lado - esquerdo ou direito - em que ficávamos no altar e as conseqüentes tarefas atribuídas a cada lado.
Assim, quem ficava do lado esquerdo segurava a bandeja na hora da comunhão. Segurar a bandeja, enquanto o Frei João distribuía a hóstia santa, me conferia uma autoridade singular. Era a hora em que se podia ver as línguas enormes dos fiéis, amigos ou inimigos, amados ou odiados, parentes ou não. Ficavam todos lá, com a língua de fora e os olhos fechados, à espera da hóstia santa, e eu, ao lado do padre, todo importante, segurando a bandeja para que partes do corpo santo de Cristo não fossem ao chão.
Antes da missa, havia filas para a confissão. Depois que eu fiz a primeira comunhão e já sabia mais dos pecados, ficava horrorizado ao ver algumas pessoas comungando sem se confessar: a mocinha que ontem à noite, no clube, estava no maior agarra-agarra com o namorado e, mesmo, aquela mulher casada, que eu – toda a cidade sabia - havia visto em pouca vergonha com outro homem também casado, que não era o seu marido e que, agora, meu Deus do céu, recebia de olhos fechados a santa hóstia.
O Gilberto, coroinha amigo meu , em conversa supersecreta, falava de sua mãe: havia ouvido sons estranhos e respirações ofegantes, ainda de manhã, no quarto dos pais, e agora, sem se confessar, estava lá sua mãe comungando. “Casada e com o marido pode”, afirmava eu, solenemente e com a mais alta autoridade.
Assombro maior aconteceu comigo um pouco mais tarde. Não me lembro se ainda era coroinha, mas, com certeza, ainda amigo do Frei João. Uma noite, após a reza das sete, ficou claro que minha prima estava em sua casa. Havíamos subido juntos a rua Rio Branco até a igreja. Dali, antes da cerimônia, foi com Frei João para a casa paroquial. Lá, todas as luzes ficaram acesas por algum tempo e padre amigo voltou sozinho para a igreja.
Frei João não se confessou e, na manhã seguinte, todo senhor de si, dizia a santa missa das seis, bebia o sangue ... e o corpo do Senhor. Assisti à missa e fui jogar bola.
Dentro de mim, o orgulho de saber do maior segredo da cidade. Segredo que não me fora não contado por algum amigo, nem mesmo pelo Chupança, que de tudo sabia, mas descoberto por mim mesmo; meio sem querer e sem nenhuma competência de detetive: apenas o acaso e a falta de cuidado dos dois os haviam denunciado.
Prometi a mim mesmo manter segredo e convivi com ele, às duras penas, por um longo e interminável mês. Uma noite, fui dormir na casa de um primo e não agüentei: contei. No meio do relato, secamente, o Maurício disse que já sabia. Aproveitou e me contou também do Frei Elias com a Vera. Esta eu também já sabia, desforrei.
No dia seguinte, fui contar ao Antônio Henrique: também já sabia.
Meu irmão, o André, também já sabia e me falou de outros encontros dos dois.
- “Onde?”
- “Lá na casa da Tia Júlia”.
Parei de contar meu segredo.
Todos já sabiam.
3 comentários:
Orlando...pelo que sei você nasceu e cresceu em uma pequena cidade. Eu em uma menor ainda!
Tão menor que nem tinha padre. Mas claro, tinha igreja e praça para as quermesses e o famoso "footing" onde as moças passeavam em volta do jardim e nós rapazes ficávamos parados "mexendo" e flertando com elas, sempre na tentativa, nem sempre bem sucedida,de arranjar uma namoradinha.
Estou tergiversando...meu comentário é sobre suas peripécias "religiosas" e sobre as minhas. Nunca fui coroinha, mas frequentava a igreja sempre que o padre visitante vinha rezar a missa.
Mais por empenho de minha mãe, filha de espanhóis muito católicos e tradicionais. Tudo foi bem até a Primeira Comunhão que fiz com direito a "certificado" e foto.
Eu já não acreditava muito naquelas histórias que nos contavam no Catecismo, muitas para nos intimidar, como por exemplo aquela que dizia que se mordessemos a hóstia escorreria sangue de nossa boca.
Um dia, aos 12 anos, disse para meus coleguinhas: Hoje vou morder a hóstia(corajoso eu, não?). Vocês vão ver, não vai sair sanque coisa nenhuma!
Todos tentaram me dissuadir, com argumentos que iam do pecado mortal à surra que eu ia tomar. Nada me convenceu. Na missa daquele dia cumpri o prometido: mordi a hóstia e em atitude de desafio fui mastigando com a boca aberta e olhando para meus horrorizados colegas.
A surra não veio. O outro castigo - causado pelo pecado mortal - não sei. Dizem que só sabemos após a morte!
De qualquer modo foi assim que se iniciou meu rompimento com as coisas religiosas!
Bom dia Tonhão!
Eu nasci no município de Pedregulho, norte do Estado de São Paulo, cidade ainda pequena, bonitinha, muito limpa e que já conta com dois inúteis semáforos - ou melhor faróis - em sua rua principal. Ao contrário de você eu acreditava em todas as histórias que me contavam no catecismo! Me sentia culpado, às vezes, por entre minha mãe e Deus, a quem "se devia amar sobre todas as coisas" eu amar mais a carinhosa e presente mãe. Morder a hóstia santa? Nem pensar.
Como você deve saber nasci e cresci em Trabiju-SP uma pequeníssima cidade no centro geográfico do Estado de São Paulo. Virou município mas continua muito pequena: uns 2 mil habitantes!
Meu relato sobre o episódio de mastigar a hóstia não passou devidamente o meu temor, grande medo mesmo, em praticar tal ousadia, pois como todo menino da época, estava imerso nesse universo ao mesmo tempo sagrado e mágico da crença. Não se tratava de uma heresia, mas de uma bravata de moleque!
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