sábado, 27 de junho de 2015
A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - X - FOI QUANDO NENZÃO VESTIU A FARDA DO SOLDADO MORTO!
sexta-feira, 19 de junho de 2015
A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - IX - A VIOLENTA LUTA CONTRA OS MACACOS DA REPÚBLICA!
segunda-feira, 11 de maio de 2015
A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - VIII - E SE CONTA DOS DIAS EM QUE NENZÃO VIVEU EM CANUDOS!
terça-feira, 5 de maio de 2015
A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - VII - FOI QUANDO JOÃO DA MATA CONTOU DA COBRA BUIUNA
domingo, 12 de abril de 2015
A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - VI - FOI QUANDO NENZÃO CHEGOU EM CANUDOS E VIU O CONSELHEIRO!
segunda-feira, 6 de abril de 2015
A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - V - CONTA DA IDA DO VAQUEIRO PARA CANUDOS
sábado, 21 de fevereiro de 2015
A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO – IV – FOI QUANDO NENZÃO RESOLVEU DEIXAR A VIDA DE VAQUEIRO E FOI JUNTO A ESTEVO PARA CANUDOS!
E foi passada aquela manhã com a gente – Estevo e eu - comendo a carne da onça suçuarana com farinha e rapadura e bebendo cachaça: quando se findou uma garrafa, Estevo catou nas mãos a verde garrafa vazia, olhou para o céu e atirou com força para onde estava a morta cabeça e os fedidos intestinos da onça, um urubu já rondando em baixo voo o que restava de comida, a cabeça morta da onça agora negra, preta de vespas, marimbondos assustando os calangos com tanto zunir, e Estevo atirou forte a garrafa vazia para junto da cabeça da onça – Oxenti, vida mais dura de boa – e catou no bornal outra garrafa verde, cachaça, arrancou a tampa com os dentes e o cheiro da pinga invadiu o sertão, enfiou miolos adentro, inundou o corpo, a língua inchou, ficou molengona para falar, contar histórias, cresceu dentro da boca: mais um gole?; só mais um, estou tonto de bêbado; as pernas bambeando, o sol queimava os olhos, um torpor de preguiça tomou conta do corpo, melhor deitar, esticar o corpo no girau, barriga cheia... Dormi e acordei quase no fim do dia: a boca ressecada, uma sede dos infernos, o Estevo – esticado - roncava no outro girau, perto da janela da tapera, e o que me deu, quando acordei, foi vergonha de mim mesmo, onde já se viu homem com minha idade ficar bebendo cachaça em dia que não é dia de feira, de vaquejada nem de domingo, isso é coisa de vagabundos e sou vaqueiro, honrado vaqueiro, mas vou deixar a vida, já decidi e não é por causa da força da pinga na minha cabeça, não é por causa da tontura da cachaça, em antes de ficar bêbado já havia decidido e continuo firme: deixo, e logo, a vida de vaqueiro, vida com tanto isolamento que a língua acaba se esquecendo de como é que se fala, tanto desuso, ninguém com quem parlamentar e reclamar do sol quente, das vacas que estão a morrer de sede e de fome, contar os de bom e os de ruim e ter alguém para assistir – junto, dividindo a tristeza - no pasto as vacas e bois e borregos carregando suas peles em riba dos ossos da cacunda caatinga afora, bichos, filhos de deus, sem força para viver, quero isso mais não, decidi.
E a noite chegou com o céu estrelava devagar, nuvem alguma para agradar a esperança de chuva; nada de chuva, pura secura: uma semana em antes tinha feito – a noitinha, logo ao fim do dia - a simpatia e a reza das sete pedras de sal; conhece, não?; explico a simpatia das pedras de sal, é assim tal como procedi: tão logo o sol se escondeu no horizonte, fiz o nome do pai e escolhi sete pedras de sal grosso para esparramar no quintal, a alma com esperança, fé e muito cuidado com a simpatia, que eu queria por demais que desse certo, e orando, olhos no céu estrelado, esparramei as sete pedrinhas de sal, porque era sete o número de meses que faltavam para chegar a dezembro, deixei as pedras rodeando em volta da imagem de Santa Luzia no quintal e fui dormir esperançoso da resposta da santa e mesmo depois de deitado no girau, dormindo, continuei – toda vez que acordava de noite - pedindo a Santa que encharcasse – com suas lágrimas - as pedras de sal para eu descobrir – vendo as pedras molhadas, derretidas com as lágrimas da santa - os meses em que o sertão teria chuvas e a Santa atendeu a meu chamado, apareceu no meu quintal e chorou um choro triste, mas um choro sem lágrimas, incapaz de encharcar nem mesmo uma pedra de sal, o mês que seria de chuva, nada, todas as pedras de sal secas, secas, esturricadas, vai ter chuva este ano não, nenhuma esperança, e se iniciou ali minha decisão: vou m'imbora!
Deitei no girau pensando naquela falta de esperança, esmiolando as misérias da seca e da fome e da impossibilidade de sonhar melhor futuro, e acho que dormi assim, um sono de muita tristeza até me acordar com o Estevo que, madrugada escura, se levantou estalando os paus do girau, fazendo barulho, abrindo a boca com dois enormes dentes de ouro: AIIIIIIIIHHHIIAA e UHHHHHHHS, sentou na beira do girau, se benzeu com o sinal da cruz, levantou de vez e saiu tapera afora para desaguar; levantei-me e ficamos os dois – no terreiro da tapera – amigos, desaguando mijo de urina em cima da esturricada terra, o céu negro cheio de estrelas, uma estrela caiu, fiz figa com os dedos da mão direita: ‘dia, Nenzão!; ‘dia Estevo, pensa em ir hoje mesmo embora?; ah, sim, careço, e o compadre tá igual a eu com a cabeça doendo tanta pinga?; não gostei de ser recordado da bebedeira, queria esquecer aquilo, me envergonhava e Estevo: voum'bora hoje ou amanhã meu compadre, fico no aguardo do sal e do sol curtir o couro da suçuarana para mode fazer um colete; e Estevo continuou a parlamentar, mais sozinho do que comigo, não conferindo pedidos, consultas mas contando de decisão já tomada: levo daqui, das rezes que o compadre toma conta, o tanto que a gente achar que consegue andar viva por mais uns dez dias, vou devagar, em marcha lenta do cavalo, aproveitando as madrugadas e as tardinhas, senão o gado não aguenta e morre antes de chegar para matar a fome do pessoal de Canudos, careço de chegar o quanto antes; pensei, memoriei um pouco e disse: assim, nessas condições, do jeito que o amigo quer, acho que vai encontrar umas doze ou treze, melhor doze porque treze dá azar; e o resto?; o que sobra por aqui?, pura espelunca, vai morrer tudo, sozinhas...
No quintal da tapera, esticado com firmes troncos de berimba, banhado de sal, o couro da suçuarana secava, sem feder carniça, esticado, lembrando uma bandeira do divino colorida de amarelo com olhos negros, aqueles olhos tudo olhando, vigiando, nenhum vento, o sol dominando o mundo, abrasador, um ou outro calango com coragem de caçar suas comidas e a sombra do umbuzeiro servindo de descanso para tanto desconforto de calor; Estevo quebrou o silêncio, com sua voz grossa: carece de a gente acertar a viagem de ida para Canudos; respondi mais com pensamentos, tantas palavras necessárias: por causa de mim, tem que se mudar o roteiro, necessito de escrever e deixar bilhete no papel, escrito, para o patrão informando minha decisão de deixar a vida de vaqueiro, contar no bilhete de quantas vacas e quantos bois tinham ficado sozinhos aqui neste fim de mundo, que estava indo embora levando as vacas marcadas com o FJ e as que aqui ficaram logo morreriam, seca nunca vista igual, acabou o mandacaru, não sobrou palma, pura secura amarelada, e que eu agradecia sua confiança e que não queria mais viver a vida de vaqueiro e terminava o bilhete com bonitas palavras, tipo assim cordialmente vaqueiro Nenzão; e partimos, com doze rezes, Estevo em cavalo selado com arreio ornado de douradas estrelas, garrucha de dois canos no ombro, bornal de couro de cabrito e eu montado em uma jumenta, a pelo, nas costas – pendurado – trouxa de duas camisas, uma alpercata comprada na feira de Mocambo, as pernas apertando a barriga da jumenta, enormes orelhas: s’imbora conhecer novas gentes, religiosas pessoas, rezadeiras, enxergar o Conselheiro com estes olhos que um dia a terra irá comer... dentro de mim: esperança!