segunda-feira, 6 de abril de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - V - CONTA DA IDA DO VAQUEIRO PARA CANUDOS


 

 

Pois o que aconteceu foi isso mesmo que o senhor desconfiou; o senhor está certo: andei dias e mais dias sem vontade alguma de rememorar minha história, meio que enjoado da vida, vivendo tempos de querer não pensar no amanhã, remoendo uma desilusão um tanto besta, sem sentido: minha mãe ficava brava com o pai quando ele dizia que estava desiludido: e posso saber por quê? qual o motivo? não tem comida na despensa? o fogão está sem lenha, sem gravetos, com o fogo apagado, as panelas vazias, sem nada mode cozinhar? tá com alguma doença dolorida, brava? desiludido com o que, posso eu saber? vai pra caatinga, homem de deus, vai cuidar dos bichos que é isso que cura essa besteira de desilusão; sempre me lembro dessa fala da mãe, mãos na cintura, os cabelos negros separados ao meio em duas tranças grossas presas formando um coque no alto, um filho - quase sempre – dependurado no quadril, o menor – raspa do tacho, como ela dizia - com três anos, boca cheia de dentes e teimando em mamar seus peitos secos e é disso que me lembro quando me despedi dela, tinha que cuidar da vida, sair de casa e senti, naquele dia de despedida o áspero de suas mãos calejadas - de socar milho no pilão e plantar aipim e cortar mandacaru para os cabritos - me acarinhando e depois, quando cheguei na porteira de arame que separava o terreiro do pasto de bois, ela na porta da tapera de adobe com a mesma mão me acenando, balançando na altura de seu rosto para lá e para cá, se despedindo lentamente e seus olhos foram se umedecendo, se molharam e soltaram lágrimas que caíram rosto vincado abaixo tanta era a certeza de que a gente não se veria mais, e como será que adivinhou?; mas, como dizia antes, andei, de fato, acabrunhado, vontade pouca de rememorar a vida: esta mesma vida que continua com seus perigos e suas felicidades, suas desavenças e amarguras; acho, no entanto, que é melhor parar de gastar os miolos com isso: minha cabeça nunca foi boa para pensar o dia de amanhã, mais acostumada ao dia a dia das caatingas, os miolos cozidos pelo sol quente querendo sempre escapulir de qualquer pensamento que não fosse as lidas da realidade diária, me fazendo conformar com o que sou, com o destino que deus me enfiou goela abaixo aqui na terra que ele criou e tem hora que penso – deve ser pecado – que criou mas não cuida bem, um deus igual aos seus filhos daqui da terra que por preguiça deixam de varrer caprichosamente o quintal, de catar as sujeiras espalhadas pelos porcos e cachorros e galinhas e não cumpre as tarefas de cuidar da horta, por preguiça de até a cacimba e encher latas d’água para molhar os secos canteiros e não junta, na peneira, os estercos de galinha para adubar e fazer tudo verdejar e crescer: jiló, alho, quiabo, aipim, abóbora...

Relembrando para não perder o sentido do que ando a contar: saí, de jegue, mais o Estevo – ele garboso, montado em cavalo selado – da roça em que trabalhava como vaqueiro, tocando em junto dele as doze cabeças de gado que iriam virar mistura de comida para os acampados de Canudos, e era grande a vontade de encontrar o Conselheiro de frente, ver os crentes e as beatas e mais gentes e mudar a vida sofrida de vaqueiro; a viagem durou dias e dias, mais de semana em lenta viagem: em assim que o sol apontava, mesmo um pouco antes, era quando a gente iniciava a jornada que durava de quatro a cinco horas, pois o gado, fraco pela seca, magro, não conseguia andar mais que isso e então carecia de descansar assim que encontrasse um pé de umbu - o verde meio ao cinza da caatinga –, o umbuzeiro formando boa e escura sombra e ali, debaixo da copa, gozando o frescor de sua sombra, o cavalo, o jegue, os gados e mais eu e o Estevo todos quietos, gastando o tempo até que o sol, caindo no oeste, perdia um pouco sua quentura e era, então, hora de seguir viagem até o dia escurecer de vez e descansar sob o céu enfeitado de estrelas, nenhuma nuvem prometendo chuvas e no outro dia era a mesma coisa: Estevo, eu, o cavalo selado, o jegue e as doze cabeças de gado – solitários, juntos – devagar andando e cansados disputando lugar na sombra de um umbuzeiro.

Uns dois dias em antes de alcançarmos Canudos, a gente percorria as caatingas e os sertões ali pelos lados de Queimadas, beirando o rio Itapicuru, e era um início de tarde quando o Estevo ordenou que eu permanecesse embaixo da sombra do juazeiro cuidando do gado, porque era melhor que ele chegasse sozinho até aquela casa grande, branca, janelas azuis, coberta por telhas de barro, que se enxergava bem lá longe, no pé da serra do Aracati e que ali era a sede da fazenda do Major Santana, homem de muitas posses, fazendas tantas, uma se juntando com a outra, passando as linhas dos horizontes, pulando e atravessando serras e rios e desobedecendo divisas de municípios, lestes e oestes, total grandeza, brancos e chifrudos gados marcados nas ancas com o MS juntos, marca de ferro queimado nas ancas, capangas e jagunços fazendo segurança, armados, bravos, vestidos com roupas de couro: pelo Major Santana, matamos e morremos, foi o que me disse – adespois - o Jesuíno, falando grosso do alto de sua magreza, desdentado, cabelos lisos caindo no pescoço, o rosto e o peito marcados com grossos mandarovás de facadas recebidas e os outros colegas capangas, menos chefe que Jesuíno, falavam que ele tinha o corpo fechado: mas peço silêncio, que o que falo aqui fique só entre nós, conto mais em respeito a sua amizade que quero possuir, pois se o homem desconfia que te contei é capaz de querer castigar, exigir que eu prove, e como é que se pode provar que alguém fez contrato com o belzebu? para poder provar só, mesmo, enfiando uma faca para ver se o homem tem – de verdade - o corpo fechado, e para isso me falta coragem e não vejo necessidade, então que fique o dito só entre nós dois, melhor assim o dito pelo não dito, o contado e não escutado; mas foi mais de um que segredou que Jesuíno tinha o corpo fechado, que não morria de arma branca, tinha trato com o demo, deus me livre; e por volta de duas horas passadas, sol ainda no alto do céu, foi que voltou o Estevo e mais dois outros cavaleiros, o Estevo falando firme e grosso: tudo na paz de deus, é aqui que vamos pernoitar, Major permitiu que a gente amarre nossas redes em seu curral e ordenou que se fizesse comida para a gente se fartar, cobrir o estômago vazio e chegamos na casa branca da fazenda do Major Santana: ele paramentado em terno completo de cor caqui, chapéu de couro, corrente de ouro no peito prendendo relógio roskofpatente que vez ou outra ele consultava, acho que era mais para ter consciência do tempo que lhe sobrava para tanto poder; na manhã seguinte boas novidades: o Major chamou Estevo e contou que tinha resolvido que para a gente deixar em sua fazenda as magras doze cabeças de gado e que em troca, deferência ao seu respeito e à sua amizade com o Conselheiro, a gente ia poder levar quatorze cabeças de novilhas e ainda de sobra cinco cabritos que era para presentear e alegrar e ver se , assim, dar mais força ao Conselheiro, que andava preocupado, triste, colocando toda a fé em suas rezas e nas ladainhas e nos terços e nos rosários declamados em procissões com as beatas e o mundão de gente que tinha se juntado na vila de Canudos, todos ajoelhados, mãos nos peitos, os olhos fechados, a fé clamando pela vitória contra as forças da república, mendigando garantias aos santos da igreja na luta contra os macacos armados de rifles e de canhões, que vinham para destruir e fazer sucumbir Canudos abaixo de um dilúvio de balas e tiros o reino do senhor que Conselheiro construía nas misérias do sertão de Canudos: viva deus nosso senhor, viva a santa igreja!

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