segunda-feira, 1 de setembro de 2014

CAMINHAR E ESCREVER–DOIS -

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E como vai essa vida de escritor?

Certo dia, há tempos, um editor aventou a possibilidade de publicar um livro meu a partir da seleção das histórias que ele conheceu em meu blog; entusiasmei-me, claro, quando ele marcou o dia, a hora e local – uma antiga livraria de São Paulo – para nosso encontro, cheguei uma hora antes do combinado, ansioso, sonhando com o livro pronto, fantasiando uma capa com fortes cores e com a noite do lançamento, eu lá todo importante assinando meu nome depois do abraço, e os minutos não passavam, acho que ele não vem, desistiu, deve ser, mas ainda faltam quinze minutos para as onze horas; peço outro café e tento me concentrar na leitura do Lucas Procópio, pelo menos finjo que leio para a hora que ele chegar – se vier – me pegar de olho em um bom livro, de um autor que ele – com certeza - respeita muito, será que ele já leu Autran Dourado?, claro que leu, pode ser até que o tenha conhecido pessoalmente, editor é sempre letrado; vejo – agora - que lá vem ele agora – pontual – , caminha em minha direção a passos largos, terno escuro, alto e elegante em sua gordura, camisa de linho e gravata italiana, cabelos brancos: e como vai essa vida de escritor?

Gelei! Levantei-me da cadeira, sem saber se falava bom dia, se abraçava, quais são as normas que regem o encontro de um prosador – prosador, sim, viva Cristóvão Tezza! – com um editor?; sentou – o editor - na cadeira ao meu lado, tão a vontade, pedi mais café que chegou logo, quente, fumacento, perfumado e eu sem coragem de tomar o meu: ia derramar, que vexame, as mãos desobedeciam a cabeça, tremiam, se eu resolver tomar o café desta pequena xícara vai ser um desastre, com certeza, vou derramar café na mesa, pior ainda se mancho de preto a branca camisa de linho do editor e aí sim é que o livro – melhor dizendo, o sonho do livro - vai para as cucuias, nada de lançamento, nada de autógrafos. O que que você tem?, não está se sentindo bem?, o que foi que houve?; foi nada não, só um susto (deus do céu, onde já se viu, ele vai adivinhar o motivo do susto, devia ter ficado quieto, em boca calada não entra mosquito); susto? susto do que? tá vendo bruxas?. E chegou mais café pedido pelo editor, que discorreu a respeito das dificuldades de se editar um livro hoje em dia, as editoras não investem em novos autores - o tal do mercado - e estes ficam esquecidos, sem oportunidades, grande prejuízo para a cultura brasileira e eu senti que ia me acalmando, peguei coragem de tomar a xícara de café, bebi, vi que a mão já obedecia a superior ordem de não de tremer, e eu sabendo que falava superficialidades pedia a deus para que o editor com sua bonita gravata italiana e sua camisa branca de linho me perguntasse o que andava eu a ler para então eu poder contar da minha descoberta do Autran Dourado, mineiro bom, escritor premiado, pouco conhecido, será porque em Minas nascem tão bons escritores? serão as montanhas negras, o clima seco, o silêncio quieto exigindo que a vida seja vivida com econômicas prosas, monossilábicos diálogos – ‘dia!; dia!; boom?; boom! - .

E o editor catou o pen-drive com as histórias, me ofereceu um cartão de visitas com telefones, e-mails e nos despedimos e foi esta a primeira vez na vida que alguém me chamou de escritor – como vai essa vida de escritor? – e aquilo – ser chamado de escritor - me causou um susto danado: eu escritor? tá mais é doido o editor, deve ser força do hábito, trejeito de sua profissão, a profissão marca o homem, e como marca – há muito tempo li, em um jornal, uma tira de quadrinhos em que um vendedor dizia à esposa: fui mandado embora; e ela: e do que você está rindo?; e ele, o vendedor: é o maldito sorriso de vendedor que não me larga - , não sou escritor, sou um aposentado que escreve - apenas isso – um dia lendo Clarice Lispector - acho que em Aprendendo a Viver – ela se pergunta se é uma escritora e que não se imagina como tal, diz alguma coisa como “escrevi os livros quando eles espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis” – agora se ela - a grande e bela Clarice - não se vê como escritora, imagine eu aqui, um simples pedagogo aposentado, mas melhor parar porque isso não tem fim, vou me socorrer – mis uma vez – com o professor Cristóvão Tezza: me considero apenas um prosador, um contador de histórias, com isso não estou dizendo que sou um bom prosador, o mais provável é que não, mas um prosador, sim – na prosa onde tudo cabe, menos poesia, como diz o Tezza -; prosador - acho mais simples - cabe mais dentro de mim, com minhas incompetências e infinitas preguiças, menos de andar e de ler.

Mas acho que é hora de deixar de lado tanta prosa e cumprir a crônica prometida ao jornalista Anselmo.

Primeiro dia de Caminhada!

“Por forma que o dia era parado de poste.

Os homens passavam as horas sentados na

porta da Venda

de Seo Mané Quinhentos Réis

que tinha esse nome porque todas as coisas

que vendia

custavam o seu preço e mais quinhentos réis”

Manoel de Barros, Poemas Rupestres

Apesar da idade e uma boa experiência em solitárias andanças, sempre, no primeiro dia que inicio a caminhada me sinto ansioso, com uma injustificada urgência de sair estrada a fora que faz com que eu engula o café sem prazer, sem assoprar o suficiente e ele – por pirraça, penso - desce queimando goela abaixo, escovo os dentes mal e apressadamente, faço tudo correndo, atabalhoado, sem pensar ...E quando, enfim, meto a mochila às costas me vejo a – semelhante a um peru velho - dando voltas em torno de mim mesmo, batendo com a mão na bunda verificando o bolso traseiro, me perguntando: será que não estou esquecendo alguma coisa?; não, esqueci nada não, tá tudo aqui; paro e rememoro: os remédios enfiei na nécessaire no fundo da mochila, mas, mesmo assim melhor conferir e desafivelo a barrigueira da mochila, tiro das costas e jogo sobre a cama, abro cada uma de suas infinitas divisões para ir conferindo: estão lá os remédios de uso contínuo, a bolsinha com o remédios para eventuais dores, picadas, a agulha para furar as bolhas do pé, a fralda do neto que será a toalha nestes dias, cueca, outro par de meia, o chinelo, duas garrafinhas com água nos bolsos, as frutas secas...e como é que cabe tanta coisa nesta mochila que volta às costas comigo ainda descrente da vistoria realizada, ainda a dar voltas em torno de mim mesmo, a bater na bunda para checar os bolsos traseiros; a solução? é a velha e salvadora liturgia do sinal da cruz: em nome do pai: mãos à testa, sim estou de óculos; do filho e bato no centro do peito: sim, a máquina fotográfica está pendurada no pescoço , do espírito: mão ombro esquerdo: sim, os documentos no bolso da camisa; santo, e bato a mão no ombro direito: sim, a blusa de frio no bolso direito da mochila, e em voz alta grito amém, “amém nois tudo”, agora é só enfiar o chapéu na cabeça para proteger a careca, catar o cajado na cama, agora sim, tudo pronto ... mas, tem sempre um mas: mas, mesmo com a mochila às costas me agacho desequilibrado pelo peso da mochila e reolho embaixo da cama para ver se não esqueci nada, aproveito que estou agachado para checar se os cadarços das botas estão bem amarrados, e então – confiante? - saio porta a fora, alcanço a rua e inicio a andança ainda com uma ponta de dúvida se está – realmente - tudo na mochila (deus do céu: em casa ando da sala até o banheiro para encontrar a escova e a pasta, busco no outro quarto a toalha de banho, o chinelo está ...e agora, tudo, tudo, por quinze dias aqui dentro desta mochila, às minhas costas?; deve ser essa a causa da ansiedade, das inúmeras voltas que dou em torno de mim mesmo, dos tapas na bunda, de olhar sempre mais uma vez embaixo da cama da pousada para conferir que não esqueci nada...)

A manhã está fria - geou de madrugada - e o sol aponta – tímido - no horizonte, a lua toda prata esqueceu de se esconder, quer conferir se o sol vai mesmo aparecer; caminho a passos firmes, no meu ritmo lento, e o barulho dos caminhões e o cheiro de óleo diesel vão se desfazendo, a cidade – pequena – vai, lentamente, ficando para trás, o silêncio invadindo e impregnando meu corpo, tomando conta do meu ser; à frente uma porteira com o mata burro ao seu lado, a estrada de chão, o corpo se acostumou com o peso da mochila. Paro e me encosto no moirão da porteira, bebo um gole d’água, olho para trás e vejo lá longe, meio a neblina, a torre da igrejinha, ainda dá para ouvir longe, longe o sino do relógio bater e conto as batidas com a ajuda dos dedos: uma, duas....sete: são sete horas...

Guardo com muito zelo as memórias de minha meninice - na verdade nunca sei se são memórias ou invencionices, tão misturadas me apresentam - e me enfiar pelas montanhas de Minas Gerais a dentro, cortar os cerrados, atravessar – com cuidado - os mata-burros, ouvir o canto do galo, o muuuuhh da vaca oferecendo as tetas ao bezerrinho, sentir o cheiro de café passando no coador, ver a fumacinha branca saindo pela chaminé, tudo isso, mais, claro, tudo o que ainda virá nos dias e dias de solitária caminhada que tenho pela frente, me levam à infância, não um retorno puro e simples à infância – ridículo aos setenta se sentir com sete ou oito – mas retorno ao que vivi sob o crivo – ou sob o prisma – da idade que tenho, da vida que vivi. Um dia, não me lembro nem quando nem com quem andava a conversar – mais provável que comigo mesmo – disse que Minas com suas montanhas, suas vilas e riachos, seu quieto povo e o seu pão de queijo e o seu toicinho frito e o biscoito de polvilho me comove e gostei muito mesmo de ter dito que me comove, e me lembro ainda, que na tal conversa procurei me justificar: fico a vontade por não ser mineiro: Minas me comove; penso que o que me comove é esta volta às memórias da infância que o lento caminhar me permite.

No alto de um enorme e imponente pé de sucupira o urubu me observa quieto, olhos negros, cabeça pelada, bico catando piolhos nos pés; enquanto tento fotografar me lembro do casal de urubus - Dito e Luzia – meus amigos das dunas que andam sumido e, o que é pior, tenho visto um enorme gavião na mangabeira sob a qual Dito e Luzia fizeram seu ninho e andavam a chocar os ovos, será que o gavião deu fim no ninho do Dito e da Luzia, quando voltar vou verificar, e aqui no alto da sucupira o urubu – garboso - posa para a foto, quieto; será que no hemisfério norte, acima do equador, não tem urubu? por quê? porque os homenageados são sempre os corvos: um filme muito sensível e antigo japonês – O Corvo Amarelo – depois o belo Cria Corvos do espanhol Saura e o meu urubu , aqui do pé de sucupira, fotografado, abre as longas asas e inicia o voo silencioso: os urubus são silenciosos em seu voo, em seus ninhos, em seu acasalamento – cultivam o silêncio e talvez por isso – pelo silêncio que caracteriza essa negra ave, que me lembrei do poema O corvo, do Poe: o solitário corvo, ave feia, escura, pousa sobre um busto de Palas e arguido responde: “nunca mais”...melhor mudar de assunto, o galo canta o seu coocoricooocooh, passo frente a uma pequena casa caiada de azul, o jardim protegido com delicada cerca de bambu, os cães me observam em silêncio, não latem, deve ser o frio. Olho para o céu de um azul infinito, enorme, sem nada de nuvem, nem mesmo um fiapinho, lindo céu, com o sol livre para projetar a sombra do corpo no barranco da estrada, uma sombra grande, com as pernas compridas, mas sei que vai ir sumindo, devagarzinho sumindo, até ela se enfiar toda dentro de mim, se misturar comigo, isso quando for lá pelo meio dia e então, cansado, escuto - meio longe - o ruído calmo do pequeno riacho, que corre forte sobre negras pedras, passa sobre a pequena ponte: hora de – calmo – retirar a mochila das costas, tirar o chapéu, lavar os óculos e as mãos na correnteza do riozinho, provar – com as mãos em concha - a branca e fria água, ajeitar a bunda na moita de capim barba de bode, catar a matula e almoçar.

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