quarta-feira, 24 de setembro de 2014

CAMINHAR E ESCREVER – 4 -

DSC06371

 

Li, há tempos, uma carta da Clarice Lispector a Fernando Sabino na qual ela confidencia ao amigo sua insatisfação frente ao silêncio do jornal a uma sua crônica: será que a crônica que mandei virou um bolo de papel amassado e está na cesta do lixo? foi mais ou menos assim o que ela escreveu; no meu caso, e nada de querer me comparar – não sou nem sombra dela, para usar um ditado antigo – penso que deletaram o arquivo com os escritos da caminhada que fiz no sul de Minas; (por falar em deletar: lembrei-me do início do instigante romance – O cerco de Lisboa – do velho Saramago) mas, enfim, o educado e sorridente jornalista Anselmo não manda notícias, será que perdeu meu endereço de e-mail? E decidi - emburrado aqui em minha caipirice turrona – a não procurá-lo: que delete meus rabiscos, tudo bem, mas a boa educação – que esperava dele – era que me comunicasse a decisão do jornal em não publicar, eu acreditaria – melhor dizendo -, fingiria acreditar em sua desculpa de que foi o editor que implicou com a crônica, que a mesma não está de acordo com a política editorial do jornal e estaria tudo resolvido, baixaria essa minha ansiedade, copiada da grande Clarice.

Abro a caixa de e-mails e encontro: “sua crônica será publicada, no jornal de domingo, caderno da cidade. O jornal vai, a partir dessa publicação, avaliar a aceitação pelos leitores. Boa sorte e abraços, Anselmo” e eu fiquei radiante, tolamente orgulhoso, querendo que a sexta-feira já fosse sábado e que o sábado já fosse logo domingo para eu acordar logo cedinho, e no escuro ainda ir para a banca de jornal do seu Ângelo e comprar dois exemplares, no mínimo, do jornal, mas o Anselmo me disse que quando publicassem que mandaria um exemplar para minha casa, e eu poderia então – de pijama, ver e rever a crônica publicada - mas pode ser que ele esqueça, acabe a gasolina da moto do entregador, tanta coisa pode ocorrer então vou me prevenir e comprar três exemplares, ou quatro, dá de a seleção ganhar o jogo no sábado e ai esgota mais que depressa a edição do jornal...

No antigo Grupo Escolar, hoje primeira a quarta série, exercitávamos três tipos de escrevinhação: descrição, narração e composição; não consigo lembrar a diferença entre composição e narração, a descrição, sim, me lembro bem, tinha que ser objetiva, restringir-se a comentar o solicitado no título – minhas férias de julho, por exemplo – ou quando a descrição era frente ao surrado quadro de gravuras contar direitinho quantos pintinhos rodeava a mãe galinha, suas cores, não esquecer do cachorro que dorme sob o pé de manga, nada de escrever dos possíveis sons, da magia de uma mãe galinha ciscar o chão à cata de minhoquinhas para os pintinhos amarelos... Eu escrevia narrações, composições e descrições. Foi na quarta série do ginásio – hoje corresponde à oitava série – quando chegou para dar aulas de português Dona Tarsila, bonita professora, baixa, um pouco gorda – sensualíssima aos meus olhos de pré- adolescente -em suas justas saias escuras, moldando as ancas redondas, blusas claras, os peitos querendo sair mundo afora e foi ela que leu – em voz alta, para a classe - uma narração – ou composição - que eu havia escrito e ao término da leitura pediu atenção ao seu final, quando para esconder uma forte emoção face a situação criada encerro a narração com um seco “por favor, me empreste a gilete para eu apontar meu lápis” e Dona Tarsila comentou do efeito psicológico daquele final, eu envergonhado e orgulhoso, ou melhor: meio envergonhado e inteiro orgulhoso, mas o que quero contar aqui – agora – é que, à época, não cabia dentro de mim uma possível habilidade na arte de escrever: era como jogar bola: jogava e pronto –; e mesmo mais tarde, adulto, confundia esta possível habilidade com o domínio de conteúdo e assim menos que a habilidade em escrever o que prevalecia – em minhas redações, narrações, descrições e composições - eram meus parcos conhecimentos – livrescos – de um assunto e era este conhecimento do conteúdo que tornaram minha “redação” digna de ser avaliada como boa ou ruim. Chega, por agora, outra hora conto mais.

Foi nessa caminhada de agora pelo sul de Minas que estreei o prazer de caminhar com o da leitura; explicando: nas caminhadas anteriores – por questão de peso e espaço na mochila – não carreguei nenhum livro: se era pequeno eu iria sofrer por acabar a leitura no primeiro ou segundo dia, e fazer o resto da caminhada sem ter o que ler, agora se o livro fosse taludo, grosso, iria me incomodar pelo seu peso, não ira caber na mochila e então, eu não havia, até então, tido o prazer de uma leitura à tarde, sentado no banco de uma praça da pequena cidade, ou da leitura – deitado - na escura e silenciosa madrugada – esperando o dia amanhecer -; mas nessa caminhada de agora não: em pequeno e leve e-reader nada menos que dois livros novos e – mera coincidência – em um deles - Lucas Procópio, do Autran Dourado - trata da longa viagem do louco Lucas de Diamantina para Alfenas sonhando – como um Dom Quixote – em reverter a realidade à custa de poesias: sim, o louco Lucas, delirava em sua loucura com o retorno das Minas de seus sonhos à força de belas poesias declamadas em coretos das pequenas vilas por onde passava, mas vou parar de contar a aventura do louco Lucas Procópio e muito menos contar o seu final. Mas, como dizia antes, o louco Lucas Procópio caminhava de Diamantina para Alfenas, de onde iniciei minha caminhada: Alfenas, com sua praça repleta de coqueiros, os coqueiros repletos de maritacas, papagaios e tuins, cantando desafinados, desarmonicamente – uma algazarra profunda de sons competindo com o toque do relógio da igreja matriz, os bancos do jardim sob a sombra de ipês e quaresmeiras, os ipês floridos, o chão amarelo de suas flores caídas e eu tentando decifrar em minha memória a diferença entre maritacas e papagaios: os tuins são pequenos, lembro bem, mas e aqueles maiores ali: qual é o papagaio e quais são as maritacas, ou são todos papagaios, ou todos maritacas e eu sabia disso tão bem, tinha os nomes e as cores em minha mente: a verde e amarela Maracanã, a Tiriba, os Tuins menores que os também verdes Periquitos, reconhecia – no ar - o penoso e sofrido voo da Maritaca, parecendo que ia cair de cansada, as asas sacolejando apressadas abaixo do corpo, reconhecia o Cuiú pelo topete vermelho na cabeça e agora – a velhice e a distância rotineira com a natureza – fico a sofrer aqui na praça de Alfenas para identificar a maritaca, o periquito... logo logo, penso, não vou saber a diferença entre galinha e vaca tão acostumado de comprar e comer congeladas carnes nos supermercado, e deu vontade de copiar aqui uma frase inteira do A vida no céu, do Agualusa: “- ... Sabes o que cheirava a savana após a chuva?! Sabes o que é correr livremente, sem nunca tropeçar em paredes? Podes dizer-me a que sabe uma manga colhida dos ramos mais altos de uma mangueira? Sabes sequer o que é uma mangueira?” ; e continuo: sabes o que é cair de mangueira abaixo e chupar a manga colhida com as costas doidas do tombo, a camisa suja do amarelo caldo da manga e do preto da bosta de vaca que amaciou o tombo, tanta coisa!

No quarto dia de caminhada , salvo engano, tem-se que percorrer vinte e oito quilômetros e não há no meio do caminho ponto de apoio para a compra de lanche, mas há, sim, o Recanto dos Amigos, um restaurante caseiro, isolado ao meio do cerrado, beira da estrada. Seu Gerônimo e Dona Rosa, seus donos: um casal mais para sessentão que para cinquentão, ele falante, ela quieta, olhar brilhante: quer um suco de melancia?; obrigado, o que quero mesmo é almoçar, a senhora tem?; vou preparar: come bife de porco?; sim, como; e dona Rosa se enfia cozinha a dentro e fico com seu Gerônimo: cigarro de palha à boca – fumo de corda dos bons: goiano, diz ele enquanto solta a fumaça azul pela boca e pelo nariz, tosse vez ou outra e vai contando: eu, quando moço, trabalhei muito tempo de vaqueiro para um fazendeiro paulista que tinha terras aqui por Minas e lá pelos lados do pantanal no Mato Grosso, e era eu – vaqueiro – que levava o gado magro daqui de Minas e trazia gado gordo lá do pantanal, mais de mil cabeças por viagem, comitiva com três berranteiros, musicais berrantes de longos chifres, dos bons, duas treinadas vacas madrinhas para guiar o rebanho, cavaleiros ajudantes, o cozinheiro, dormindo em redes sob o céu...tempo bom, de gente moça, agora não dou mais conta. E, ali, meio do serrado, a Mantiqueira azul ao fundo, grande, majestosa, o pensamento voa até o conto de Guimarães Rosa – Entremeios com o vaqueiro Mariano – e copio as perguntas do escritor ao vaqueiro Mariano: e seu Gerônimo, tem mesmo boi que toma ódio das pessoas?; se tem, por demais...E seu Gerônimo enrola outro cigarro e vai contando, carregando o seu sotaque mineiro, o olhar saudoso dos tempos que se foram, do som dos berrantes, das noites nas casas das tias em pequenas vilas – a gente ia molhar o ganso, diz sorrindo, coisas de rapaz novo e contou da vaca branca que deu cria em plena estrada e se recusou a seguir caminho, e quando de volta do Pantanal, seis meses depois, lá estava ela e seu bezerro – já grandinho – e se juntou ao gado gordo que trazia para Minas, mode o patrão vender para fazer dinheiro e era assim a vida, ano após ano, tempo bom, de rapaz solteiro.

Dona Rosa cobre a mesa com um pano de prato branco e trás o almoço: feijão grosso, arroz, couve, dois ovos fritos e bife de porco; depois do almoço café de coador, perfumado; o sol se esconde por detrás de uma nuvem grossa: será que chove, seu Gerônimo?; pra esta semana, não, talvez na que vem chove um pouco; o vento do sudoeste não trás chuva, seu Gerônimo?, trás não: vento de chuva é o noroeste. Mesmo assim o melhor é espantar a preguiça, colocar a mochila às costas e caminhar até o pé da Mantiqueira: mais uns doze quilômetros e chego ....

4 comentários:

Anônimo disse...


Vida!!!

Amei, Orlando! Texto gostoso de ler, denso e cheio de vida!
Parabéns, amigo. Abraço grande.

Natalia

Natalia Rodrigo disse...


Vida!!!

Amei, Orlando! Texto gostoso de ler, denso e cheio de vida!
Parabéns, amigo. Abraço grande.

Natalia

Orlando disse...

Obrigado, Natália. Muito obrigado, mesmo!

Orlando disse...

Obrigado, Natália. Muito obrigado, mesmo!