terça-feira, 16 de setembro de 2014

CAMINHAR E ESCREVER – TRÊS –

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Maldita a hora em que cedi à tentação – (puxa vida, na infância a palavra “tentação” – carregada do sotaque espanhol do Frei Elói - não nos deixai cair em “tentacion” – era, para mim, pura musicalidade e fazia com que eu aguardasse sempre, ansioso, no fim do pai nosso, à época padre nosso que estais no céu...demorando para chega no o pão nosso de cada dia...; pulei para a adolescência, imberbe, amarelas espinhas espalhadas pelo rosto, a musicalidade perdeu espaço e – então - “tentacion” chegava aos ouvidos carregada de erotismo, do carnal pecado, de minhas mãos tocando os delicados ombros da namoradinha na matinê de domingo, ela sentada uma fileira à minha frente, as alças brancas do vestido salientando as magras costas morenas, ossudas e eu não enxergava a tela com o Flash Gordon no Planeta Marte – em preto e branco - assassinando com sua pistola mágica estranhos aborígenes de orelhas enormes, vindos de infinitos planetas, minhas mãos acariciando as costas morenas da namorada e o seriado terminava, abriam a cortina de ensebado veludo vermelho, a luminosidade e o silêncio da rua entrava cinema a dentro e a gente saia timidamente separados, o pai dela era bravo, sonhando com domingo que vem) de, por sugestão do Seu Patrício, me comprometer a escrever as tais crônicas para o jornal. Ando achando desagradável a experiência a de escrever por obrigação: o jornalista Anselmo mandando e-mails – educados – cobrando prazos, reclamando do número de palavras, tantas laudas, você em iniciado frases com letras minúsculas e isso não pode, sugerindo mais objetividade nas narrativas e simplicidade no vocabulário – “nosso público é classe d”, e eu cá com minhas ideias querendo vagar nuvem arriba e a cabeça não obedecendo às mãos que teimam em digitar...

Escrever é um ato solitário que, para mim, tem os seus melhores momentos nas silenciosas madrugadas, a caneca de café amargo ao lado do teclado, um gole leva a uma frase, relembro o livro que ando a ler e digito mais duas frases, livre, intuitivo, sem me perguntar o que ando a escrever, sem me preocupar com a objetividade solicitada pelo sorridente Anselmo, sem racionalizar – besteira pura pensar no porque escrevo - , e foi só agora, com a obrigação de mandar a crônica para o jornal é que surge a dúvida do porque escrevo; penso que – talvez, o escrever – seja para tapear a timidez, a baixa autoestima: ninguém quer saber de ouvir histórias, ainda mais histórias velhas, de velhas cidades, tão pouco fantásticas as histórias, de velhos amores, e percebo, na solidão do pensar o escrever, uma sutil diferença entre escrever uma história e refletir sobre o meu eu; tentando explicar: ao escrever uma história, mesmo me enfiando todo na personagem (Dona Florianette, brava e bonita professora de português explicando o porquê personagem é de duplo gênero: masculino ou feminino), me misturando com ela em seus íntimos momentos, salvaguardo – penso – minha intimidade, minhas covardias, minhas fraquezas, meus orgulhos e minhas desumanidades, ou pelo menos me sinto assim: encoberto, salvo; mas agora, me pergunto?; como posso escrever a desumanidade de uma personagem, uma sua tara, se a personagem, sem o autor, não existe?; quer dizer então que suas taras, suas ingenuidades e suas desumanidades são minhas e o escrever é nada mais do que eu deitar no sofá e me deixar analisar? Melhor parar com isso: o que acho mesmo, de verdade, é que estou parecendo adolescente em véspera de prova: reagia, desordenadamente , à pressão de ter que estudar com sentimentos de fortes dores de cabeça, passava a alisar o rosto me ordenando: melhor fazer logo a barba, esquecia da barba e acariciava o pinto, que prontamente reagia, ficava sexualmente excitado sonhando com abraços e pernas e peitinhos, o estômago roncava e me sentia morto de fome, o meu time perdeu o jogo, que merda, o tempo passando com o livro de latim aberto à sua frente, a terceira declinação: i, orum, is, o jeito era estudar. Então vamos à crônica:

As manhãs têm sido frias, o sol tendo que se esforçar para abrir a espessa cortina da neblina branca, por a cara para for e colorir de vermelho o horizonte, aquecer os ossos e as mãos frias que vão se alternando na tarefa de segurar o cajado – cada hora uma buscando o bolso para se aquecer - , o nariz soltando fumaça branca lembrando o trenzinho do caipira do Villa - piuiii, piuiii – : gosto, muito, de caminhar: o pensamento voa, os sonhos se tornam possíveis, reais sonhos no aqui e no agora.

Enfiado na Mantiqueira, no sobe e desce morro e montanhas, em estradinhas de chão cortando os cerrados com suas sofridas e retorcidas árvores – tão bonitas em sua rusticidade - , as montanhas coloridas com enormes triângulos de verdes cafezais e com retângulos de suaves pastos com bois e vacas berrando, seriemas de topete arrepiado cantando alto e agudo o seu que! que! que!, convidando a fêmea para o acasalamento, botar seus ovos meio do pasto, em um ninho encostado no monte do cupim, longe das vistas do teiú que vive de comer ovos crus, e um bando de periquitos tuins em sinfonia querendo acordar o mundo. Meio a tanta distração esqueço das setas de orientação do caminho: acho que estou perdido, ando mais uma meia hora, nada de setas e a experiência de andarilho diz: meia hora sem sinal, você está errado, o melhor é voltar, caminho – indeciso mais um pouco - e do alto de um pequeno morro vejo uma fazenda mais a frente – coisa de vinte minutos, calculo – e decido andar até lá e me informar.

Saio da estrada municipal, atravesso o mata-burro para alcançar a fazenda - casa caiada, grande, janelas azuis – com o curral entupido de vacas brancas com manchas pretas, e conforme vou me aproximando dou umas tossidas e raspo a garganta - sem vontade – anunciando minha chegada; preso por uma corrente ao moirão do curral um cachorro vinagre, forte, dentes enormes, late e uiva ameaçador, defende seu território do inimigo, ainda bem que está preso, ancestral o medo de cachorro; fora o latido do bravo cachorro cor de vinagre, e um muuuu! ou outro das vacas no curral impera o silêncio da Mantiqueira. Me aproximo da cancela do curral e percebo que a ordenha das vacas é feita não pelas mãos humanas dos velhos retireiros agachados com o balde entre as pernas, mas por elétricas mãos de ferro que apertam e desapertam – ritmicamente - as cinco tetas cor de rosa das vacas em fileira, o leite saindo por mangueiras de plástico até o latão... e do meio a imensidão de brancas e gordas vacas de machas negras, que ruminam ordenada e pacientemente o capim, a olhar ao infinito com um negro e brilhante olhar que reflete a total ausência de preocupação com as mazelas do mundo, o leite sendo tirado pelas elétricas e frias mãos de ferro, e, como dizia, do meio da nuvem de obedientes vacas surge, se levanta – demoradamente - um homem alto, gordo, paletó escuro, e tão logo se coloca totalmente de pé caminha a passos lentos em minha , e posso, então, observá-lo melhor : alto, gordo, o paletó preto ensebado cobre uma camisa de flanela surrada, os olhos cheios de remela, as calças teimando em cair – o improvisado cinto feito de corda com um grosso nó, mal feito não segura as calças, o ventre cabeludo à mostra – o rosto com o inchaço vermelho típico do alcoólatra, o olhar se dirigindo a mim e – como as brancas e gordas vacas – não me veem, me atravessam e se dirigem para o infinito. Os dois parados, quietos, um frente ao outro, eu surpreso resolvo tomar a iniciativa: bom dia, estou fazendo o caminho para Aparecida e acho que me perdi; o alto e gordo homem a meio metro de mim, quieto, não me vê, fede a urina e suor quieto, mudo; insisto: a estradinha que passa logo ali embaixo é a que vai para Turvolândia; nada: o gordo homem sozinho com ele mesmo, as vacas ruminando, o cachorro vinagre parou de latir e de saltar para escapar da corrente, ainda bem, e o fedido homem tão próximo, mas em sua loucura não me vê, e eu a imaginar suas possíveis reações – uma vez em um baile na roça enquanto dançava alegremente com a filha do fiscal fui violentamente esbofeteado no rosto por um louco, também alto e gordo, só que sem o inchaço e vermelhidão no rosto e sem exalar a catinga que sai deste gordo homem, com seus quarenta ou cinquenta anos, sei lá -; o cachorro volta a latir e do outro lado do curral surge um vulto, caminha a passos firmes e rápidos, um jovem rapaz de calças jeans apertadas, chapéu de cowboy, botas sujas de negra bosta de vaca: bom dia, estou indo para Aparecida e acho que me perdi...; ‘dia, perdeu não, tá certo; é que não tenho visto o sinal do caminho; logo ali, depois de uma meia légua o senhor vai ver, depois de um mata-burro o sinal do caminho, quer um copo de leite?; obrigado, vou aceitar – curioso para ver se ele ia tirar o leite com as mãos ou ia desatarraxar as mãos de ferro, elétricas e nem um nem outro: catou uma caneca de alumínio e meteu em um galão de leite já cheio e me ofereceu...Bebi o leite que mantinha ainda a quentura do corpo de uma daquelas vacas brancas de manhas negras que continuavam a olhar o infinito, ruminando a total falta de preocupação com o futuro, mansas em sua quietude, suas tetas cor de rosa massageadas por elétricas mãos de ferro e o homem gordo, sujo e fedido foi voltando – quieto - para o meio das vacas, alcançou um cocho à beirada da cerca do curral e lá, devagar – acomodou seu corpo pesado.

Vou indo, obrigado pelo leite; de nada, e que mal lhe pergunte: está caminhando sozinho?; sim, caminho só...; que Deus e Nossa Senhora te acompanhe!; vai acompanhar!

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