sábado, 13 de abril de 2013

O MORRO CABEÇA DO PADRE - VII - NOVA ORDEM NOS PASSAMENTOS!

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Carlos chegou em tempo para a missa do sétimo dia da morte de sua mãe Antônia. Seis meses longe e, para mim, chegou mais bonito, mais crescido, fiapinhos de bigode acima dos lábios finos e delicados. Bom menino, bom filho, pensava, emocionado, ao vê-lo, paramentado, ajudando Frei Agostinho na missa em celebração à alma da mãe: permaneceu - durante a cerimônia - contrito, elegante nos gestos, cerimonioso no olhar triste, com ar de um que de desesperançoso. Respondia - em latim - aos introibus ad altare Dei com segurança, a voz mudando pulando de aguda de menino para grave de rapazinho: vez ou outra lágrimas corriam em seu rosto bonito, os olhos e a boca da mãe, um pouco parecido comigo na testa grandona e nos cabelos negros, ondulados; ao ver suas lágrimas eu chorava quieto, por dentro.

Como havia terminado o primeiro semestre no Seminário teria um mês para ficar em Venda Nova e ai se deu o seguinte: Frei Agostinho resolveu, depois de falar comigo, em oferecer um período de folga para o sacristão Nenê que carecia ir até Cajuru, em São Paulo, visitar sua mãe doente e em seu lugar ficar Carlos como sacristão: ajudar nas missas e nas rezas, abrir a igreja e fazer soar o sino avisando das cerimônias, ajudar nos batizados dos anjinhos – aprendeu a escrever as certidões de batismo, deixando apenas o vazio para a assinatura do Frei Agostinho - e outras coisas a mais, sempre com o consentimento do padre e, quando informado de suas obrigações, sentiu-se importante o menino ou rapaz Carlos, meu filho.

Outra coisa: te contei dos saraus literários que o Doutor André fazia no Bar Central dos quais participava, inicialmente, o Dimas, eu e o Senhor Álvaro. Pois bem: o Seu Álvaro, depois dos acontecidos com sua mulher Esmeralda e frei Marcos, sumiu, virou pó tal qual um urutau; com a doença de Antônia, meu comparecimento ficou prejudicado por dois motivos: primeiro, não julgava certo deixá-la sozinha em casa, doentinha, dá de que podia carecer de minha ajuda e também por sentir uma culpa que me perseguia: eu tão sadio, forte, falando de livros e ela lá caída, cada dia mais fraca, ainda bem que nada lhe doía, ela me dizia: morte das melhores esta que vou morrer; não fale assim não minha mulher, eu respondia, mas enfim, eu mais faltava do que ia aos saraus até que uma noite, no mesmo dia em que fez uma visita a Antônia, o Doutor André chegou em casa com o Dimas: em sua mão uma capanga com três cervejas enroladas em jornal para não perder o gelo. Os saraus passaram a ser no alpendre de casa: deixávamos a porta da sala aberta para que Antônia pudesse ouvir e, muitas vezes, na ponta do pé - silêncio absoluto – eu ia até o quarto onde ela descansava e a via com os olhos atentos, acesos e um brilho de felicidade no rosto magro, branco, sem o vermelho que enfeitava suas faces. Agora morreu!

Uma tarde, estava no escritório da máquina de beneficiar café quando ouvi o dém...dém, dém do sino da igreja: aquela batida do sino com um dém – e um segundo de espaço silencioso entre os outros dois dém-dém pertinho, encostados um no outro era toque de passamento: alguém tinha morrido e o cortejo fúnebre iria correr a cidade até o cemitério que ficava logo atrás do campo de futebol, perto de uma das casas das putas da cidade. Ao ouvir aquele toque de sino as mulheres já se preparavam para fechar as janelas da casa quando o caixão passasse e os homens para tirar o chapéu da cabeça e colocá-lo atrás do corpo, colado na bunda, escondendo o cigarro que não queriam apagar mas que era pecado fumar quando o defunto passava. Quem morreu? Não fui eu. Mas quem foi que morreu? Se fosse defunto com posses teria caixão envernizado, enfeitado com debruns dourados; agora se o passamento fosse de anjinho aí o caixão era todo branquinho e se fosse indigente, morto na Santa Casa, o corpo era enrolado em uma toalha branca e, meio torto, enfiado na carroça da prefeitura, arriada ao burro preto, que de manha carrega o lixo da cidade e leva para perto do ponteleão onde o lixeiro joga tudo, faz uma fogueira, joga gasolina e mete fogo, queima tudo; agora se o passante fosse pobre, sem recursos, o corpo vinha meio emborcado, duro e curvado, em uma rede improvisada de lençol ou pano de colher café, este melhor por ser mais forte e resistente, aguenta defuntos mais pesados, apesar de que a maioria dos defuntos serem de pouco peso, mais ossos e peles, o pano preso em uma vara de guatambu, um homem segurando a vara na frente, apoiado no ombro e outro segurando atrás: e o corpo do defunto obedecendo ao ritmo dos carregadores, chacoalhando para cima e para baixo, devagar ou depressa, sempre ritmado aos passos lentos dos contritos e orgulhosos carregadores, quando um cansa, passa a vara de guatambu para outro e se este é o da frente muda um pouco o ritmo, mais depressa o mais devagar, varia de acordo com a pressa ou não de quem carrega o corpo, porque quem segue tem que ir atrás e pronto, velho ou doente tem que apressar ou não o passo, se bestar fica para trás e o corpo enrolado no lençol chega antes no cemitério e lá , quando o coveiro vê que o morto é carente de recursos, faz logo a cova, enterra rápido, sem tempo de jogar flor no corpo do morto, e as pazadas de terra enterram depressa o defunto, tempo só para um sinal da cruz , sem tempo para ave-marias ou pai nossos rezados pela a alma do passante.

O sino aquele dia: dém...dém, dém, sob o sol ardente, a praça e as ruas vazias de gente, todo mundo escondido dentro de casa fugindo do quentume do sol. Quem morreu? Eu não fui, quem será então?

Seu Tinoco sabia: quem morreu foi puta Joviana: de tuberculose, doença sem cura; os tuberculosos ricos iam para Campos de Jordão, passavam frios e voltavam para morrer aqui em Venda Nova, onde era mais quente e mais perto da família; se usava queimar tudo o que pertencia ao morto de tuberculose: as roupas, o colchão e os pratos e garfos e canecas que o doente usava para comer e beber separadamente dos da família eram jogados na fogueira: todo mundo morto de medo da tuberculose. Bacilo de Koch bandido dizia o doutor André: pega fácil e mata mesmo!

E foi a puta Joviana que morreu de tuberculose e meu filho Carlos tocando o sino? Corri para a igreja. Puta defunta não passa pela igreja; foi assim com as outras putas que morreram – a Dasdores e a Iracema - e era assim, assim era; e a puta Joviana viria enrolada no colchão, as pontas amarradas na vara de guatambu, Santista segurando a vara na frente e Chicuta atrás e a defunta Joviana pequena, magrinha de nascença e pela doença, pesando quase nada, fácil de carregar e o sino dém...dém-dém e eu correndo para mandar Carlos parar de tocar o sino, corpo de puta não passa pela igreja, não tem perdão, igual a quem que suicida: direto pro fogo do inferno, pecado mortal. Corri e corri os sete quarteirões que separavam o escritório da igreja. Cheguei esbaforido para mandar Carlos parar de bater o sino, fechar a porta da igreja, ir para casa – foi puta que morreu , meu filho, e então, por a morta ser puta, não tem o corpo benzido na igreja, não te ensinaram isso no seminário ainda? pare de tocar o sino, feche a porta da igreja e depois peça desculpas a dom Agostinho.

Cheguei à praça: a porta da igreja com suas duas folhas azuis abertas, deixando o sol entrar iluminando tudo: o altar mor, os bancos de madeira escura, o São José e seu burrinho com Maria e o Menino; tudo, tudo recebendo a claridade e o calor do sol que inundava Venda Nova naquela tarde de julho. O céu de um azul infinito, claro, sem uma nuvem, aqui e ali um pontinho negro que era um urubu voando longe. Entrei igreja e a dentro, sem tempo de fazer o sinal da cruz, e vi meio ao corredor a mesa de metal, rodeada de quatro velas enormes derramando cera nos candelabros de prata; os quatro candelabros de prata, rococós, aritmeticamente colocados em cada canto da mesa, e Carlos, paramentado com uma batina preta, ajeitava a toalha branca sobre a mesa de metal e Frei Agostinho, paramentado de roxo, breviário à mão, olhos fechados, orando, naqueles momentos em que parecia um boi no pasto: quieto, buscando o infinito, ruminando as desgraças do mundo. Entrei falando alto: Foi a puta Joviana que morreu; Joviana foi ao encontro de Deus, seu Pai, respondeu Frei Agostinho e vi os olhos de Carlos brilhar um brilho de felicidade, de contentamento!

Na igreja, com o sol entrando pela porta aberta, estávamos os três quando Joviana chegou enrolada em um lençol branco, encardido, com uns retalhos costurados para tampar buracos e puídos, lençol velho, com certeza; Frei Agostinho orientou Santista e Chicuta para que fossem delicados e colocassem o corpo de Joviana com a cabeça voltada pro lado do altar mor, ajeitava a toalha branca que cobria a mesa de metal, veio um ventinho que entrava pela porta aberta da igreja que balançava o lume das velas- mas sem força para apagar - e as velas, brilhando o que podiam, sabendo do impossível que era aluminar corredor e a mesa e o corpo de Joviana de tanto que já estavam alumiados pelo sol. O corpo, pequeno, magro, escuro, meio torto, emborcado foi ajeitado em cima da mesa, Frei Agostinho querendo ajeitar as mãos da defunta sobre o peito, mas as mãos e os braços duros não obedeciam ao padre e ele desistiu e colocou um terço sobre o peito de Joviana e iniciou as rezas de encomendação do corpo. Enquanto rezava surge do nada, do vazio uma mosca verde, varejeira, e zunia suas asas, voava e voava e ora pousava no rosto, no nariz ou mesmo na boca da defunta e Carlos espantava com as mãos, desgraçada de mosca, eu pensava, não respeita defunto pobre, mas no enterro do pai do prefeito ela também zunia em cima do caixão com debruns de ouro, mas não conseguia pousar no rosto do defunto porque tinha um tule que protegia...E o cheiro de defunto se misturava ao cheiro das velas queimando e só faltava misturar com o cheiro das rosas que tinham no caixão do pai do prefeito e aqui, agora, no passamento de Joviana flor nenhuma. Pela porta aberta da igreja entraram, para ver a cerimônia, o Seu Tonico e a Cidona: E foi então, depois das rezas de encomendar o corpo que Frei Agostinho untou com óleo o rosto e as mãos da defunta e ordenou a Carlos que subisse ao coro para tocar o sino. Todos fizemos o sinal da cruz, Santista e Chicuta pegaram a vara de guatambu, engataram as pontas do lençol e saíram – cerimoniosos, passos lentos, ouvindo um réquiem que o vento tocava – carregando o pequeno e magro corpo da defunta puta Joviana.

E depois foi a maior falação na cidade: uns contra, outros a favor! Puta agora, quando morre, passa pela Igreja? Acho errado, o certo era com Frei Marcos. E a falação piorou e te conto porque, e foi pelo seguinte: Frei Agostinho, não contente apenas em benzer o corpo das eternas pecadoras, na missa de domingo, quando subiu ao púlpito se esqueceu um pouco de falar sobre o pequeno menino de Jesus no colo de sua Mãe, acariciado, rostinho rosado e falou que Joviana teve, durante toda sua vida o seu corpo desrespeitado pelos homens e que em sua morte, pelo menos, merecia respeito, e todos ficaram quietos, até porque na Igreja, hora da missa, não se pode falar, e também por ser muita novidade o que ouviam - necessário de pensar muito antes de concluir – de Frei Agostinho em sua prédica naquele domingo, tanto na missa das seis - mais dos pobres – quanto na missa das nove – mais frequentada pelos ricos, mulheres com tailleurs, homens em seus ternos de linho, ou de casimira inglesa, porque julho é mês de frio. E antes de descer do púlpito, como para que dizer que não era apenas um desejo seu, mas antes ensinamento da Igreja, abriu a Bíblia com capa de couro preta e leu:

“Meu filho, derrama lágrimas sobre um morto

e chora como um homem que sofreu cruelmente.

Sepulta o seu corpo segundo o costume,

e não descuides de sua sepultura.

Chora-o amargamente durante um dia, por causa da opinião pública

e depois consola-te de tua tristeza,

toma luto segundo o merecimento da pessoa,

um dia ou dois, para evitar as más palavras.”

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