quarta-feira, 8 de maio de 2013

O MORRO CABEÇA DE PADRE: VIII - A LOUCURA INÍCIOS!

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Para melhor entendimento relembro os inícios dos acontecidos. Contei, nos inícios desta narrativa, que moro há muitos e muitos anos neste ponto de ônibus, em cima de um banco de cimento, protegido das chuvas – poucas - e do sol – onipresente, um deus quente – por duas telhas Eternit enegrecidas pelas fuligens e poluição de ônibus e carros: é aqui , neste banco de cimento que durmo, como – almoço e janta –, uso as dunas ao fundo como quintal e banheiro para necessidades mais urgentes e leio: sim, leio , leio e leio. Leio sempre – quieto - acomodado em cima do banco, o corpo gordo teimando em não caber, a alma em ebulição pois eu vivo, sim, vivo o que leio e esta é, segundo os que me visitam, a minha loucura: me consideram um louco manso, gordo, um pouco sujo, barbudo, um bom louco. Alucinações sem drogas e sem álcool: imagens e sonhos captados dos livros que mais vivo que leio: me enfio alma adentro do escritor, discuto, discordo, mudo os escritos e reescrevo do meu jeito, poetizo os concretos e asfalto as poesias: louco mundo, mundo louco! Mais tarde, quando já morto, li de um escritor, também ele defunto, que a coisa mais importante era viajar e ler e que “ao fim das leituras os escritores saíam da alma das pedras, que era onde viviam depois de mortos, e se instalavam na alma dos leitores como numa prisão macia, mas depois essa prisão se ampliava e explodia”, e o nome deste escritor, agora meu amigo, é Bolaño, um chileno bem humorado. Boa gente, ou melhor, boa alma a do Bolaño chileno.

Mas então é assim: uma vida de devaneios, de alucinações, de irreais realidades. E quando foi que começou? O que padeço é de uma loucura mansa, uma doença d’ alma, que começou devagar, calma e mansamente – mas que vagarosamente foi se instalando em meu corpo e na minha alma – e do que lembro teve seus inícios há tempos ou de repente até já nasci assim meio louco manso ou quarta-feira como se usa dizer, sabe-se lá! Os primeiros sintomas e não primeiros acessos de loucura, como gosta de dizer o Doutor Bonafim - médico kardecista especializado em loucuras, demências e outras doenças não carnais - e que quando se vê sozinho comigo diz com sua voz de baixo ou barítono, nunca de tenor: seu corpo tá bom, Juvêncio, você vai morrer de velhice ou do coração se não der um jeito de emagrecer, perder esta barrigona, diminuir esta bunda cabeluda que não cabe mais dentro das calças largas, que não encontra cinto com comprimento suficiente para dar a volta toda para prender as calças na cintura e que deixa você a andar por ai com estas calças caindo mostrando o rego; e eu: acha mesmo que o coração está bom? tem horas - mais nas demanhanzinhas – que concordo, sinto o corpo bom, chego a olhar interessado para as domésticas - magras ou gordas, não importa, morenas em sua maioria, os celulares presos ao ouvido, muitas crentes, eu sei por causa de seus cabelos esticados cobrindo as costas, saias compridas, domésticas perfumadas e rebolantes que tomam ônibus aqui, a maioria bem bonitas; e o kardecista se entusiasma: também acho estas meninas sacudidas de fortes e, Juvêncio, ainda bem que não perdemos o tesão, homem de deus? e aí resolvo me calar e passo a responder só no pensamento: se ele é mesmo médico psiquiatra kardecista, como diz que é, que trate de adivinhar meus pensamentos, conhecer as almas é sua obrigação. Não é o meu caso, pois eu não passo de uma pobre alma, ignorante nos mistérios da vida e da alma – não sou médico, não sou médium e nunca fui a uma seção espírita ver uma alma baixar. Em assunto de almas pouca experiência e conhecimentos: me lembro apenas que nos inicios de minha doença foi que o Tibim me deu uns passes e eu vi o negro tremendo e retorcendo o corpo, bufava, escumava na boca uma baba espumosa e branca parecendo cachorro doido, conversava comigo em línguas africanas, ancestrais e eu não querendo me esforçar para entender o que ele falava, pois eu acho que se o homem quiser ele entende qualquer língua de outro homem, mas tem que querer e eu naquele dia não queria; tomei aqueles passes porque eu estava em retiro dentro da caverna da Cachoeira Mal Assombrada e Tibim aparecia por lá para levar comida, banana da terra e araticuns – que era época de araticum – perfumados e aproveitou e procurou, com suas rezas, me curar; bom demais o negro Tibim, tenho saudades dele, de seu sorriso, de sua flauta e suas doces músicas, do jardim que fez e cuidou para marcar o encontro de amor, na beira da estrada, eu tirando a blusa de Antônia, vendo e beijando seus seios pequenos, ela a segurar meu membro duro, beijando-me, sugando-me os lábios, deitados depois, os dois, no meio ao capim, nus, lua minguante, um pio longe da coruja e Antônia dirigindo a entrada de meu membro duro, babento em seu ventre úmido!

Mas acho que meu misturar completo com a alma dos livros se deu com a leitura de uma história do Alexandre, não o grande, o magno, mas antes o filho de um fazendeiro nordestino que em um determinado dia de sua vida foi mandado pelo pai a procurar uma égua pampa, prenhe, que andava fugidia e lá se foi o Alexandre, caatinga adentro atrás da égua pampa e de noitinha, o sol se escondendo, ele viu um vulto perto de uma cacimba d’água e pelas manchas concluiu que era a égua pampa e foi atrás com seu tordilho e a égua se embrenhou caatinga adentro, se enfurnou meio dos espinheiros e Alexandre atrás até que a égua pampa entrou meio a um espinheiro emaçarocado, cerrado e nosso herói resolveu que o melhor saltar de seu cavalo e montar, em pelo, a égua pampa, e sem muito pensar, pulou em seu dorso, meteu os pés nas virilhas, agarrou pelo pescoço e com tapões no focinho dirigiu a égua de volta para o curral de sua casa onde, aflitos, era esperado pelo pai e pelo seu irmão. Nesta viagem experimentou a velocidade dos ventos e chegou no curral em trapos, o corpo todo doido pelos espinhos, roupas rasgadas e foi dormir. Acordou e percebeu, no clareado do dia, que via tudo pela metade: olhava a figura do pai e via apenas seu lado esquerdo, de seu irmão via apenas o lado direito, tudo pela metade. Cismou: Santa Luzia, protegei-me! Muito medo, foi até o pocinho do córrego que corria no fundo do quintal, perto da plantação de cana, olhou as águas claras e descobriu que estava sem um olho, por isso via o mundo em suas metades; tinha apenas o olho direito firme na cara o esquerdo tinha sumido... Perdi o olho no espinheiro. Sem muito pensar e pouco falar selou o cavalo e foi de volta ao espinheiro atrás do olho perdido, e ficou aturdido ao passar pelo curral e ver que havia montado e trazido não a égua pampa, mas sim em uma onça pintada, grandona, dentes para fora, bafo catingudo de onça brava, olhar de mal. Tô meio cego e louco! Tocou o cavalo! Chegou ao espinheiro e lá encontrou o olho meio às folhas secas de juá bravo, gravetos e espinhos, moscas azuis zunindo sentadas nele: catou depressa o olho, limpou nas calças, tirou as sujeiras e ciscos e meteu de novo na cara. E ficou com os dois olhos na cara: um via tudo os de fora, pela metade, e outro se via por dentro; se viu tudo, completo: viu seu coração batendo acelerado, viu os sangues nas veias, os pulmões inchando e desinchando com a respiração... O que foi? o que aconteceu? então descobriu que havia enfiado o olho ao contrário: a parte que era para ser para fora e ver o mundo ficou enfiado para dentro e via seus interiores molhados, vermelhos, seus órgãos por ninguém nunca antes vistos. Mas vou parar de contar esta história que li, e vivi, em um livro do Graciliano Ramos, escritor já morto, com a alma morando nas pedras à espera de leitores para se instalar e o livro se chama Alexandre e Outros Heróis; livro que ficou instalado em minha alma e que me ensinou a enxergar o meu dentro de mim: sei, com os ouvidos ouvir as batidas do meu coração e com o olho esquerdo, que tiro e enfio de volta ao contrário dentro de minha cara, vejo meu coração bater e acelerar quando penso em Antônia. Louco manso!

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