sábado, 6 de abril de 2013

O MORRO CABEÇA DO PADRE: VI - O POR DO SOL NO CHAPADÃO!

DSC04710

Frei Agostinho: minúsculo em sua fortaleza, os olhos grandes - indecisos entre cinza e azul claro, variando, tal qual um camaleão, conforme a claridade - , cabelos lisos, rala barba – sempre bem feita –, a boca delicada, os lábios finos e os dentes perfeitos calcados no rosto de pele clara, quase transparente, davam ao padre um que de inocência e firmeza, doçura e amargura, delicadeza e segurança, mas acima de tudo o rosto inspirava bondade e mansidão. Quando quieto, lendo seu breviário, lembrava um pouco um boi manso no pasto, ruminando pensamentos, os olhos perdidos na imensidão do mundo, alheios às dificuldades que a vida de padre exigia do moço de trinta e poucos anos. Quando no púlpito a fala mansa querendo mais dizer do menino de Jesus protegido no colo da mãe Maria do que do Jesus pregado na cruz, sangrento, chagásico. Venda Nova adotou o pequeno padre como filho. Tanto assim que depressinha, pouco tempo depois de sua chegada, já não mais se falava nas esquinas e nos bancos do jardim da praça - voz baixa, olhos e ouvidos atentos vigiando se ninguém escutava - dos sins e dos nãos da saída apressada do Frei Marcos. Nem mais se lembram. Para onde foi? Verdade mesmo que voltou para sua terra, na Espanha da Europa?

Seu Álvaro deixou de morar em sua casa na cidade; mudou-se para sua fazenda, isolou-se. Pouco aparecia em Venda Nova e quando vinha, ficava às sombras, semelhante a um urutau, passarinho difícil de se ver, de enxergar; se trancava no escritório do banco em tratativas de negócio com o turco Nagib, assinava e recebia promissórias, duplicatas, dinheiro muito; saia do banco e passava na máquina de beneficiar café e ali, depois do copo d´água que pegava na bilha, regateava, choramingava prejuízos até conseguir o que queria que era negociar a safra completa, vender os grãos no pé, calculando as sacas por alqueire plantado pois era assim que se sentia garantido; nada a perder caso geasse forte e queimasse as frutas e além do mais a colheita, a secagem, o ensacamento e o transporte dos grãos deixava de ficar por sua conta e responsabilidade. Hábil, calmo, educado, todos concordavam: Seu Álvaro continuava a negociar bem o café produzido nos morros pedregosos de suas propriedades. E Esmeralda, sua esposa? Sumiu de vez: nem mesmo para a missa do galo comparecia; se dizia que os dois dormiam em camas e em quartos separados, os corpos longemente desunidos, não perdoada pelos pecados cometidos, o marido mudo e calado, ensimesmado, triste; a única pessoa com quem lhe era permitido conversar era com a preta Luzia: cozinheira, lavadeira, de boa alma e boca fechada! E por isso mesmo, pela boca fechada de Luzia, mais se supunha e devaneava do que se sabia, mesmo, dos fatos que aconteciam na fazenda.

E o tempo continuava a correr devagar em Venda Nova. Poucas novidades, obrigando as pessoas a buscar devaneios, a inventar o disse que disse, a olhar desconfiado, ouvidos atentos aos passos lentos nas calçadas. Nosso filho, Carlos, coroinha, rezava a missa em latim – afirmava que entendia o que recitava – tirou o diploma de grupo e, orientado por Dom Agostinho, foi para o seminário em Guaxupé: estudar para ser padre.

Antônia, no primeiro fim de semana sem o filho em casa, quis ir até a Cachoeira Mal Assombrada. Passamos na casa do Tibim que ofereceu almoço: galinha de cabidela e taioba: música em sua flauta alegrando os corações e Antônia cantou bastante, já fugindo da saudade futura do filho.

Nossa vida? Assim: Antônia dando aula de manhã para as crianças e em duas tardes ia para a igreja onde, com Frei Agostinho ao harmonium, ensaiava o Te Deum com o coro das filhas de Maria. Meu trabalho no escritório da máquina de beneficiar café bem aprendido, dava para fazer rápido: tratava os negócios de dinheiro no banco do Nagib, fazia o livro caixa, as cobranças, as duplicatas e as promissórias: sobrava tempo, muito mesmo, para ler. Lia o Estado de São Paulo – recortava e montava uma pasta com a cotação do café na Europa e em Nova Iorque para conhecimento do seu Tó – os livros emprestados pelo Doutor André e também comprava os livros da coleção Clube do Livro. O Clube do Livro era uma edição popular de clássicos da literatura e que tinha na contracapa, dentro de um pequeno mapa do Brasil, o versinho de Castro Alves: “Oh bendito quem semeia, livros, livros á mão cheia, o livro caindo n’alma...” não me lembro bem, mas continuava: “é germe que faz a palma, é chuva que faz o mar”, não sei, agora, se era assim mesmo, o vero que vinha dentro de um mapa do Brasil, bonito aquilo!

Às tardes de sábado - livres sempre - íamos, Antônia e eu, apreciar o por do sol no Chapadão. Do alto se via montanhas e montanhas lá embaixo, o rio parecendo uma placa retorcida e espelhosa ao meio as pedras negras e do arvoredo verde imenso; a branca torre da igreja e os telhados da cidade se enegrecendo, às nossas costas, o sol se escondendo. Logo acima das montanhas que marcavam a linha do horizonte nuvens formavam desenhos os mais variados e a gente brincava de adivinhar qual era o bicho – ou anjo - formado pelas nuvens: olha aquela ali: um cachorro? É mesmo, veja os seus os olhos ali, a boca – tem até os dentes, veja - , a cauda, e o tempo passando; a aura prateada que se formava atrás das nuvens como a aura de Nossa Senhora e do Menino Jesus que tinha na igreja – ia perdendo a claridade, a sua intensidade e o sol, enorme bola vermelha ia devagar se escondendo enfiando-se no meio do morro da Onça, onde tinha a cachoeira dos Francos, com seu poço bom de peixe – bagres e mandis - e de nadar. Quando escurecia e a gente voltava para casa, mãos dadas - o povo falando daquela mania besta de andar de mãos dadas, coisa de grã-fino, de paulista da capital, e a gente gostando tanto e tanto do calor da mão um do outro, do suorzinho que escorria de mão em mão, e às vezes eu não aguentava levava aos lábios e ela ria bonito - , quietos ou falando das formas das nuvens, das saudades, eu contava de livros e ela de canções: amores.

A primeira queda de Antônia - o joelho direito dobrado, sem força - se deu na frente da igreja, em uma tarde quando ia ensaiar o coro com as Filhas de Maria. Ninguém, nem mesmo ela, deu importância: joelho mole, caiu, levantou, limpou a roupa e foi para o harmonium ensaiar o Tantum Ergum a duas vozes. Semana depois caiu duas vezes: na escola, dando aula, e em casa, de noite indo para o quarto. Normal? Sim: acho que é a idade que chega e dobra meus joelhos, dizia e eu aceitava. Mas as quedas se tornaram constantes: seis meses depois veio a necessidade de usar muletas, feitas caprichosamente - sob medida para o corpo pequeno de Antônia – pelo marceneiro italiano Francisconi.

Procuramos consulta com o Dr. André: examinou, apalpou, pensativo fez mil perguntas e por fim: não dá para ter certeza, mas pode ser uma doença neurológica; vou estudar melhor, consultar outros médicos e assim que eu tiver alguma noticia eu chamo de volta. Acha que é grave, Dr. André? perguntei ansioso e ele: não posso afirmar antes de estudar melhor, vamos aguardar um pouco. Força, minha filha, não há de ser nada, vamos cuidar muito bem disso, falou finalmente à porta, despedindo-se de Antônia.

Na semana da consulta, no sábado, logo de manhã, Antônia resolveu que iríamos passar o dia na Cachoeira Mal Assombrada. Ajeitei a charrete e fomos. Como sempre passamos pela tapera do Tibim, que convidou para o almoço: galinha de cabidela e mandioca é o suficiente? Claro que sim, respondemos. Não houve flauta nem cantorias naquele dia: Tibim jogou os búzios para ler o futuro. Abriu a pequena janela de sua cabana, se concentrou – iyalorixá -, saudou respeitoso, os orixás, fez um círculo com os guias sobre uma toalha branca, acendeu uma vela e colocou ao lado um copo com água limpa da cachoeira; os búzios tinham passado a noite no sereno tomando a força da lua. Cerrou os olhos e concentrou-se para dar início às consultas com as divindades fazendo perguntas - queria saber o que os médicos não conseguiam definir. “Mal dos nervos!”. “Com cura ou sem cura?, perguntou o iyalorixá, “Sem cura”, responderam os orixás aos dezesseis búzios jogados sobre a toalha imaculadamente branca. Um pesado clima dominou a tapera de Tibim lembrando os momentos que precedem as grandes tempestades – chuvas de São José – devastadoras, carregadas de raios, matando vacas e gentes, carregando nas enxurradas paus velhos, árvores, bichos, bezerros, carneiros: corpos e ouvidos tensos aguardando o raio, as enxurradas, o vento cortante.

Em nova consulta com o Doutor André sugeriu que fôssemos – ele, eu e Antônia – até a Escola de Medicina de Ribeirão onde ele tinha um professor amigo e que, respondendo a sua carta, se dispôs a, junto comigo e mais dois colegas, examinar Antônia. Pouca coisa não é, pensei. Seu Álvaro emprestou o carro e fomos logo na semana seguinte e os médicos concluíram Antônia padecia de uma doença neurológica chamada ELA – esclerose lateral amiotrófica – , doença que faz com que o doente perca os movimentos, a capacidade de deglutir e de respirar, mantendo, no entanto, a lucidez enquanto vai perdendo progressivamente a força muscular. Doutor André resolveu ficar em Ribeirão e voltamos Antônia e eu choferando o Ford azul do Seu Álvaro e aquela necessidade de estar atento às marchas do carro, às curvas da estrada impediram conversas, sentimentos, solidariedades: quietos, calados, o carro pela estrada de chão, a nuvem de poeira inundando o céu azul de julho, frio cortante, janelas do carro fechadas, diminuindo o ronco do motor. Chegamos já noite: deitamos e não dormimos: ainda escuro levantei, passei um café no coador e levei o bule cheio para o nosso quarto. Tomamos devagar. O café reanimou: Será uma boa morte, sem dor, mas sem caduquice, disse Antônia. Estou aqui, junto de você, meu amor, respondi e nos abraçamos forte, calorosos e choramos.

Constança, gorda e doce negra benzedeira, além de ajudar na casa de manhã fazia o almoço e à noite puxava os rosários das novenas para a cura de Antônia. Junto à imagem de São Lázaro, o copo com água e azeite a luzinha tremulava, pedindo socorros, ajudas alumiando o quarto escuro: na cama, Antônia a tudo olhava, os olhos interrogativos, respondia às ave-marias cheia de graça com as santa-marias mãe da misericórdia, mas já não mais cantava para fora nos intervalos do rosário: ave, ave, ave maria...Tibim nos visitava, sempre, aos sábados. Em um final de sábado, resolvemos - Antônia me respondeu com o olhar – voltar ao chapadão para ver o por do sol, o fim do dia. Preparei o cavalo, montei e encostei o cavalo perto da pedra do alpendre, Tibim pegou Antônia no colo e me ajudou a ajeitá-la à minha frente no arreio; com um lençol amarrou o corpo magro de Antônia ao meu corpo, unindo-nos com o branco lençol: pegou o cavalo pela rédea e puxou até o chapadão. Lá ajudou na descida de Antônia e, respeitosamente, nos deixou: antes de escurecer eu volto. Sentei e ajeitei Antônia entre minhas pernas, suas costas apoiadas em meu peito, sua cabeça junto a esse osso que a gente tem e que junta as costelas e ficamos a ver o sol se esconder. As nuvens formavam figuras de anjos, tinha um que tocava - bochecha inchada – uma corneta e o som da música invadiu o céu, o chapadão. O vento agitava as nuvens e o anjo obedecia ao vento e a corneta solfejava novos acordes e era o Te Deum que invadia o mundo. Senti, no osso externo, a cabeça leve de Antônia ir ganhando força, pesando mais, querendo se enfiar dentro de mim, fria agora: minha mão direita procurou seu peito esquerdo: seu coração não mais batia.

Tibim voltou à cidade e junto com Dom Agostinha trouxe uma improvida maca de madeira: forramos a maca com o lençol, cobrindo a fria madeira com o quente do branco lençol e carregamos Antônia, já fria, para casa. Rezas, choros, clamores: Antônia pequenina, olhos cerrados, dentes um pouco a mostra, parecia querendo sorrir, o cheiro das velas queimando e das rosas que cobriam o caixão se misturavam ao perfume do café que Constança passava no coador e os visitantes, quietos, calados - alguns com os olhos marejados - tomavam e acompanhavam – rezando - o terço que, agora, era puxado por Dom Agostinho. Pai nosso que estais no céu ...findado o rosário e seus mistérios gozosos – era dia de sábado - Dom Agostinho abriu seu breviário, dia 22 de julho, dia de Maria Madalena e leu em bonita voz:

“Durante a noite, no meu leito

busquei o meu amado;

procurei-o sem encontra-lo.

Vou levantar-me e percorrer a cidade

as ruas e as praças

em busca daquele que meu coração ama

procurei-o sem encontra-lo.

Os guardas encontraram-me

quando faziam a sua ronda na cidade.

“Viste acaso aquele que meu coração ama?”

Mal passara por eles

encontrei aquele que meu coração ama.

Segurei-o e não o largarei

antes que o tenha introduzido na casa de minha mãe,

no quarto daquela que me concebeu.

Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém

Pelas gazelas e corças do campo,

não desperteis nem perturbeis o amor...até que ele o queira”

Nenhum comentário: