E os tempos iam passando devagar apesar de, quando menos se esperava, dois anos já tinham ido e a que antes era uma menina – corria pelas ruas abraçada a uma boneca de sabugo de milho - surge com os peitinhos empinados, andar rebolante, e o que era um pirralho de menino, veste calças compridas, voz indecisa, não sabendo a hora certa de ser grave ou aguda e, esperto, deixa escondido sob a mesa da professora um espelhinho para poder ver as suas pernas e, na hora do recreio, contar aos amigos a cor das calcinhas, se branca ou amarela; tudo passa, o tempo, os rios, os homens! Embora - no de agora do dia a dia mesmo - quando se está em uma segunda-feira o sábado demora para chegar e quando chega o sábado se acha que a semana correu depressa. O tempo manda em nós e nas tardes de pensamentos se sabe que agora, em vida, já fizemos uso de um pedaço dele e não sabemos o quanto ainda temos; mas vamos deixar isso para outras horas, para as horas de pensares, mais usuais nas melancólicas tardes com o sol se pondo e a lua escondida querendo sair e cumprir sua função de alumiar: trilhos, estradas, telhados, rios e riachos. Isso tudo de modos que, devagar ou depressa, o que se sabe e se vê, com esses olhos que um dia a terra vai comer é que Venda Nova crescia em progressos; esquecendo – ou mesmo não sabendo, pois quem cuida de dar nomes ao tempo somos nós, os homens - se era segunda-feira ou sábado, ontem ou depois de amanhã, os pedregosos morros de terra vermelha, antes cobertos de ipês, embaúbas, aroeiras das bravas e das mansas, esguios guatambus estão, nos agoras, vestidos de verde pelos cafezais que nos meses de junho e julho, carregados de vermelhas frutas exigindo dos colonos a colheita em tempo certo e estes, a maioria italianos, atarefados, forrando com pano de colher os vãos das ruas, labutando de madrugada até a tardezinha – rasgando com as mãos os galhos repletos dos vermelhos grãos - enchendo os panos encardidos, que serão, depois, colocados a secar, sob o sol frio de julho, nos limpos terreiros de café. E em noites de relâmpagos – São Gerônimo, Santa Bárbara, Virgem - anunciando chuvas, uma trabalheira só: as mulheres queimando palha benta nos quatro cantos da casa, rezando e pedindo proteção dos raios – que Deus e livre e guarde – e os homens, sob o céu escuro como breu - fora a hora dos raios que caiam, relampejantes – ao mesmo tempo em que fazem depressa o sinal da cruz - recolhem, nos balaios, os grãos dos terreiros, e jogam, amontoando, enorme montanha de café, debaixo do telhado das tulhas até o dia seguinte, quando o sol aparece no céu azul, de novo tudo recomeçar - os grãos de café de volta nos terreiros, madrugar nas roças para colher mais café, mãos doloridas, feridas, ardendo no frio das madrugadas esperando o dia esquentar. Novo dia: sonolentos - noite mal dormida pela trabalheira de recolher os grãos na tulha e não por excessos de amores – voltam ao trabalho na roça de café e era pecado rogar a Deus que não chovesse de noite, nem mesmo pensar isso podia, depois de tantas novenas e terços clamando por chuva, de procissões - com cantos e rezas - para colocar flores e molhar, no alto do morro a cruz de madeira com água trazida nas cabaças e nas verdes garrafas de pinga; e chegando no cruzeiro alto do morro, todos cansados rezando rosários, e orapronobis: virgemaria - orapronobis, verbodivino - orapronobis, sãojosé - orapronobis, as mãos dedilhando terços, clamantes para findar a seca brava que queimava o arrozal, os pastos, arruinava as colheitas - Deus sabe o que faz.
Tanto e tudo café: não mais ouro e diamantes, nem gado: café. Os fazendeiros mais instruídos liam o Estado de São Paulo para entender os altos e baixos de seu valor nas bolsas da Europa. Tudo progressos, tantos, que Venda Nova se tornou comarca: festança grande com fogos e churrasco, comemorações...Juiz de Direito, prefeito, padre, e até delegado, o Dr. Higino, que não era bacharel em estudos mas gostou do título de doutor e assumiu o posto, chefe dos soldados Olírio e José Vicente, revólver cano longo na cintura, coldre quase escondido pela barriga mole que teimava em querer descer até os joelhos: bom homem em seus olhos azuis; e de onde veio o Dr. Higino? Daqui de Venda Nova e de seus arredores é que não foi; também não foi de muito longe - de além-mares - veio o Dr. Higino que, apesar dos olhos claros, não tinha os falares diferentes dos italianos que chegavam em navios para trabalhar nas colônias das fazendas de café. Os italianos - povo falador – costumavam de xingar alto indecentes palavras quando jogavam bocha e gostavam de beber vinho nos domingos quando cantavam e dançavam alegres, corações saudosos de suas cidades, de seus rios e montanhas: aqui tudo tão diferente.
Mas convém contar e atualizar um pouco de mim e de Antônia, agora, há mais de cinco anos morando na cidade, casinha alugada e paga pelo Seu Tó. Mas por quê? Oras, por quê? Simples, eu conto. Seu Tó, fazendeiro de muitos e muitos milhares de pés de café fez sociedade com o turco Nagib e montaram a máquina de beneficiar café de Venda Nova; falando assim, nos simples, parece pouca coisa o que não foi: coisa grande, de importância para beneficiara sacas e sacas de café, milhares, comprar os grãos limpos e despachar pela estrada de ferro para o porto de Santos, e de lá, em navios enormes, era o que o Seu Tó me dizia, despachar os grãos para a Itália, na Europa. A Itália de então mandava seus homens para colher o café na roça, labutar e também comprava os perfumados grãos: penso que os italianos que lá ficaram, os que não vieram cuidar dos cafezais em Venda Nova, deviam ficar, aos domingos, jogando bocha e durante a semana bebendo café na caneca, falando palavrões na língua deles, todos se entendendo e saudosos dos que para cá vieram: mundo doido de entender, este mundo de Deus. Voltando ao que contava: Nagib impôs, na composição da sociedade, que na chefia da máquina de beneficiar café - ele preocupado que estava em montar um banco – representando sua parte no negócio, ficaria o Dimas e o seu Tó exigiu que da parte dele – mais interessado que estava em corretar café em Santos – ficaria eu, homem de sua confiança. Mudamos: casinha pequena na rua de trás da Igreja, luz elétrica, quarto com janela para a rua e até privada patente tinha, não mais carecendo de cumprir as necessidades nos fedidos poços cavados no fundo do quintal. Antônia continuava a ensinar os adultos de noite e as crianças de manhã.
Além do delegado Dr. Higino, outros estranhos chegaram em Venda Nova. Veio o Sr. Joel, mas este se sabia que veio dos lados do Paraná, onde ganhou dinheiro com café e aqui, em Venda Nova, montou um bar com duas mesas de snoker e uma máquina de fazer sorvete; chegou também outro médico, doutor de verdade, formado no Rio de Janeiro, chamado de Dr. André e que gostava de à noite, enquanto uns jogavam sinuca no bar do Sr. Joel, beber cerveja - gelada na água da máquina de fazer sorvetes - e contar dos livros que lia e dos que achava que deveríamos ler: eu, o Dimas e o Seu Álvaro, seu público diário. Foi ele, o Doutor André, que me emprestou o primeiro livro que li: um livro grosso, letras grandes e que contava do Mário, um rapazote que andava pelas matas a caçar, a colher frutas, a pescar nos rios e tão logo terminei a leitura me emprestou A Cabana do Pai Tomás, autor de nome difícil de guardar – Harriet Beecher Stowe, será que falo acertado?
Na máquina de café o propósito inicial do Seu Tó e do Nagib era eu ficar na máquina mesmo e o Dimas no escritório, que tinha uma máquina de escrever e uma de somar e assim ele, Dimas, cuidaria das contas e dos dinheiros e eu da maquinaria e dos trabalhadores. E tudo foi se invertendo: a qualquer encrenca – pane, como Dimas gostava de dizer - nas correias, nas rodas dentadas, nas engrenagens ou nos motores elétricos que faziam girar a, para mim incompreensível, máquina de beneficiar café era o Dimas que, feliz, pude depois assegurar, deixava lá suas contas e a máquina de escrever cartas para o Porto de Santos e atendia ao meu pedido de socorro e depressa resolvia, adivinhando depressa onde estava o defeito, sujava as mãos de graxa e punha a máquina, um conjunto infinito de rodas e engrenagens e correias, a funcionar. Ainda no primeiro ano de trabalho trocamos, autorizados pelos dois proprietários, nossas funções e foi quando eu percebi da minha total incapacidade de lidar com máquinas, eletricidades: não permitem sonhos, devaneios: quebrou tem que consertar, por para andar dizia, um pouco criticando Antônia e eu me defendia: não é preguiça, é que não consigo entender as máquinas, onde falham e ela não disse que é preguiça: disse que lá é pau pau pedra pedra, tem que enfrentar a realidade tal qual ela se apresenta, e eu: a mecânica não entra em minha cabeça e o jeito era, para terminar a discussão, tomar Antônia nos braços e dizer que a amava, o que era a maior das verdades, me juntar ao seu corpo quente, às suas carnes duras, sorver seus beijos úmidos, beber seus lábios molhados. Carlos, nosso filho, já com cinco anos!
Naquela noite, no bar do Seu Joel, durante o “sarau” literário - era como o Dr. André gostava de chamar nossa reunião - o Seu Álvaro tentou mas não conseguiu esconder que alguma coisa errada estava acontecendo com ele. Homem alto, rosto claro, olhos pequenos indefinidos entre o azul e o cinza, cabelos negros - prateados pela idade - era uma cortesia em pessoa; delicado, diferente das rudezas dos homens de Venda Nova, quando montava a cavalo não usava esporas e atiçava o passo de seu bonito Mossoró, cutucando-o com os calcanhares nas ilhargas, nada de ferir o animal com as esporas cortantes. Nunca antes tinha visto em sua cintura o volume do revólver e olhe que naqueles tempos, em Venda Nova, todos andavam armados, por qualquer coisa pipocava balas rua afora, mais ainda depois dos conhaques e pingas que os homens bebiam na casa das putas no bairro de Boa Vista. Seu Álvaro era docemente calmo, nos saraus e nos diários da vida gostava mais de ouvir, o rosto embalsamando, escondendo os sentimentos – parece que ele tinha enfiado sua alma bem no fundo de seu ser – pouco falante, desculpando-se, nos saraus, como sendo iletrado e pouco instruído para palestrar com o Dr. André. E os saraus tinham seu começar com Doutor André molhando a garganta com os primeiros goles de cerveja gelada – copo orvalhando por fora de tanto de tanto frio – e o Seu Álvaro a fazer seu cigarro de palha ritualisticamente, cerimoniosamente: compenetrado umedecia a palha de boa qualidade nos lábios, e só depois de bem úmida, lisinha, era dobrada e enfiada e presa entre o dedo maior da mão esquerda, o indicador e o vizinho do minguinho, deixando assim a palma da mão, em concha, livre para receber o fumo goiano que picava com seu canivete afiado, lâmina brilhante, cortante, até quando achava que o fumo picado era o suficiente e então, guardava o canivete no porta-canivete de couro preso ao cinto e iniciava a seção de macerar o fumo, girando com o dedão da mão direita até sentir, pelo tato, que estava liso, uniforme e só então, depois de lamber novamente a palha, umedecendo-a o suficiente, enrolar o cigarro - bem feito, no capricho - e então colocava entre os dentes, boca fechada, tirava a binga bronzeada do bolso da calça, riscava a sua binga de fuzil, acendia o pito e tirava gostosas e profundas tragadas, esparramando fumaça por todo o bar, fazendo fugir pernilongos, muriçocas e pequenos mosquitos. Ele, o Seu Álvaro, tinha o Mossoró, um cavalo tordilho, que era o que mais usava para ir até sua fazenda de café, mas tinha também, raridade naqueles tempos, um Ford azul marinho escuro, lustroso, que comprou dos Biazoli que tinham comprado a máquina novinha em Ribeirão Preto e pouco uso fez: o Ford não os obedecia tal como seus cavalos e burros e depois de várias e inconsequentes barbeiragens acabaram por desistir de choferar a máquina. Já o Seu Álvaro aprendeu logo: muito bom chofer em sua calma e na inteligência de saber separar o diferente modo de obedecer da máquina da maneira de obedecer dos cavalos: nada de chicotes, esporas e psiusss: era pé no breque, no acelerador, engrenar as marchas e rodar. Ficou viúvo de dona Bebém logo depois que a filha havia se casado e mudado para Santos e, mesmo viúvo, manteve seu compromisso com a moral que o orientava: era, na cidade, um dos poucos homens – fora o padre, claro – que nunca havia sido visto na Casa do Ponto, frequentando as mulheres da vida que tinha por lá. Sério, sisudo, educado. Tornou-se a casar, agora com Esmeralda, moça pouco mais velha que sua filha, em casamento simples, sem muita festa, mas tudo nos acertos: casou na igreja e no cartório, não queria dar o que falar, nada de amigações.
Mas...mas as mentes fantasiosas, ou realistas, andavam a dizer que aproveitando sua constante e rotineira presença no “sarau” literário do Dr. André, Frei Marcos visitava sua casa se suprindo de amores com Esmeralda: moça nova, sedenta e ele, seu Álvaro, marido de papel passado e tudo, já passado dos sessenta e tanto. Uns mais corajosos em suas mentes diziam que de tudo ele sabia e que sua ida aos saraus era para facilitar as coisas; outros se indignavam, diziam que não, que era homem de honra e que, caso fosse verdade os fuxicos, se Seu Álvaro descobrisse as coisas não ficariam boas para o padre. Nos reais, deixando de lado as fantasias, o que ocorria era que que Frei Marcos, cumpria suas obrigações rezando as missas, batizando criancinhas, encomendando corpos e também confessando os pecadores e aí, diziam, residia os problemas do padre: no confessionário, protegido pela cortininha negra, Frei Marcos ouvia tudo quanto era pecado, de tudo e de todos sabia: desejos, insatisfações, traições e ele, espanhol forte, dentes brancos, nos seus cinquenta anos mas ainda sem usar óculos, e com o corpo desobedecendo a mente, não conseguia se esquecer das mulheres, dos ternos e carnais amores. Seu antigo amor, Tarsila, sacudida filha do seu Quito, que na semana santa, voz de contralto, fazia a Madalena, tão logo foi pedida em casamento por Edmundo - um confeiteiro contratado pelos Damasceno para fazer doces e pães na padaria da cidade - , aceitou, achando melhor trocar os vespertinos encontros semanais com o padre para noites inteiras com seu, agora, marido Edmundo com quem casou vestida de tailleur de linho no cartório e depois toda de branco na Igreja matriz repleta de hortênsias azuis, lírios da paz brancos e palmas de santa Rita de todas as cores: Frei Marcos foi quem abençoou o casal quarentão.
Isso tudo pode ser invenção, sonhos: nada de fatos para alimentar e movimentar os sonhos das mentes preguiçosas, mas muito ativas, das gentes de Venda Nova, carentes de notícias, ansiosos por novidades. Mas naquela noite Seu Álvaro saiu antes das nove horas, hora terminava o sarau literário, quando Seu Joel fechava o bar; assim que o sino da igreja deu uma pancada, eram oito e meia da noite, ainda fumando seu cigarro de palha disse até amanha e saiu. Não olhou para trás. Caminhou com passos firmes, mas lentos, silenciosos, se ouvindo baixinho o crec crec do solado de sua botina nas pedrinhas da rua sem asfalto. Na cintura o revólver, um Schimdt 38, cano curto. Era bom de galeio e tiro, apostava, brincando, de acertar o talinho logo acima da manga, nas mangueiras de sua fazenda, com o pretinho Alcebíades embaixo, com uma peneira, acolhendo - suave - a fruta, para não machucar. Caminhou pensante o Seu Álvaro no que faria se encontrasse em sua casa o que não queria encontrar: não seria falatório de quem não tem o que fazer, inveja pura pela beleza de Esmeralda? Dava um ou dois passos e decidia: mato os dois, padre filho da puta, comendo mulher casada, falta de respeito com os homens e de fé com Deus. A cada passo uma certeza e uma dúvida! Chegando na casa onde morava resolveu dar a volta, passar pelo portão que dava acesso ao pequeno alpendre e à sala de visitas, arrodeou a casa de esquina, ouvidos abertos na procura de escutar sons no quarto onde Esmeralda dormia. Nada: silêncio! Bom: tudo mentira, falação! Entrou pelos fundos do quintal e encontrou a porta da cozinha encostada – isso não era bom, não era normal - pois tanto ele como Esmeralda sempre traziam esta porta trancada por dentro com as tramelas de madeira grossa impedindo que a porta fosse aberta por fora. Entrou quieto, devagar: tirou a botina, para silenciar os passos no assoalho da sala, na cozinha era de tijolos macios e a botina não fazia barulho. Atravessou a cozinha – na escuridão da noite sem lua a atravessar o telhado e baixar seus brilhos nos úmidos tijolos, no fogão a lenha, na mesa de comer - e chegou a sala de visitas que dava acesso ao seu quarto. Silêncio, tudo apagado: igual imaginei, tudo falação deste povo desmiolado, sem vergonha – bom - e teve até vontade de entrar no quarto, acordar Esmeralda que deveria dormir profundamente e possuí-la, amá-la nervosamente, brutalmente, achou que daria conta disso. No meio da sala escura ouve gemidos e rangeres no colchão – ruim, ruim por demais - coração subindo a goela, apressado, querendo sair do corpo. Tirou o revólver na cintura e abriu bruscamente a porta do quarto. E o que não queria ver, viu: viu a bunda branca do padre, grande, gorda, sacolejando para cima e para baixo, tremulando, ouviu o que não queria: gemidos guturais saindo parece que do estômago, gozosos e viu Esmeralda, pernas abertas, olhos fechados, cabelos desalinhados, dentes cerrados de prazer. A luz da lamparina alumiou o rosto e o susto dos dois quando viram o homem e o revólver, o cano brilhante, prateado, e sentiram o dedo firme no gatilho, cano apontado: não faça loucura, disse o padre, e Seu Álvaro: ponha a roupa mulher do capeta, filha de uma égua e você não padre desgraçado, fique ai pelado, bunda de fora que eu vou pipocar seus dois culhões, seu desgraçado. Silêncio. Esmeralda, enquanto apressada, trêmula pegava sua roupa estendida em cima da cadeira e se vestia, se pôs a chorar e a rezar: perdão meu marido, tenha pena, prometo nunca mais ...e o padre pelado: sacrilégio ferir um servo de Deus, o fogo do inferno te espera se bolir comigo, e ele: não vou bolir, já disse, o que vou é pipocar dois tiros, um em cada culhão, para te fazer menos homem, seu merda de espanha. Segundos pareciam minutos, que pareciam horas, que pareciam dias: o tempo não passava e os dedos firmes de Seu Álvaro no gatilho do Schimdt, sem nenhum tremor: cano apontado agora para o meio das pernas do padre: pênis molengo, arriado, o saco descendo abaixo, puro medo.
Ainda apontando a arma, agora para o peito: Ponha a roupa seu padre de merda e vá para casa, mas antes escute o que vou te dizer: hoje é terça feira, na quinta te levo para Guaxupé onde quero, com sua presença, uma audiência com o bispo, e o padre - enfiando nervoso o montão de roupas: cueca, calças, camisas tudo por baixo da batina preta - pensa que é assim, que se arruma audiência de um dia para o outro, audiência com o bispo demora meses, e seu Álvaro: então eu pipoco seus culhões, agora, e o padre: não pelo amor de Deus, vou ver o que consigo, e ele: tem telégrafo, use. na quinta de madrugada te pego em sua casa e rumamos você e eu – e o Schimdt aqui – para a gente ir beijar o anel do bispo, e agora suma daqui, posso me arrepender do que estou decidido. Filho de uma puta, saia!
E seu Álvaro foi deitar no quartinho do fundo, acordado e só, ruminando pensamentos: o melhor não teria sido pipocado o saco do desgraçado? Será que agi bem? Ouviu o andar de Esmeralda atravessando a sal em direção ao quartinho onde estava: Suma de minha frente, puta desgraçada! Me deixe em paz com meus chifres sua vaca. Te mato!
Dia seguinte, os que passavam frente a estação de trem, viam o aflito Frei Marcos dedilhando nervoso o telégrafo. Na quinta, madrugada, antes mesmo de ouvir o ronco do Ford já estava na porta de sua casa esperando seu Álvaro, que ainda escuro, estrelas no céu, apareceu na esquina da rua choferando seu Ford azul escuro, que encostou na beira da rua, estacionou e – carrancudo, não querendo tais e quais – ordenou que o padre entrasse. E vou logo dizendo antes que me faça perguntas bobas: o Schimdt está aqui, ao meu lado, fácil de pegar e não quero conversa, nem perguntas: só falo com o bispo, dono das porcadas, com porco não quero palestra, nem confiança. Frei Marcos, branco, lábios apertados entre os dentes ajeitou a batina entre as pernas, segurou firme na porta e se puxou baixinho um terço, olhando a estrada escondida pela nuvem de poeira e o tempo passando e ele rezando, dedilhando - entre os dedos - as contas negras do terço.
O palácio do bispo era bonito, rendilhado de cortinas brancas, quadros de santos, coloridos retratos dos papas. Sala enorme, solene: beijou a mão do bispo e disse: Vou ser rápido senhor bispo, seu tempo é precioso, foi o que me disse frei Marcos: vim trazer aqui este seu filho, ou melhor, trago aqui para o senhor resolver este filho de uma puta de padre que peguei em minha casa, pelado, em cima de minha mulher. E sem tomar fôlego, falando depressa: podemos ter uma solução mais pacífica que é a que espero do senhor, que é a gente já voltar para Venda Nova com o nome e a data em para outro padre ficar no lugar deste desgraçado, comedor de mulheres, sim, porque antes da minha ele vivia em cima da Tarsila, que na sexta feira santa cantava como Madalena, na procissão do senhor morto. E me diga Senhor Bispo, isso não é pecado não? E se sim, se é pecado, ele, por ser padre, pode comungar sem confessar seus pecados para ser perdoado depois de rezar as ave marias e salve rainhas? Padre não confessa? Ou recebe o corpo do Senhor cheio de pecados sujos, alma imunda? O senhor Bispo é que decide o que proponho: agora, senhor bispo, outra situação é o senhor recusar e ele permanece como pároco de Venda Nova e então, sendo esta a decisão eu mesmo me encarrego de mandar ele para os braços do capeta com dois tiros no saco e outro no coração. Resolva homem de Deus, rogo! O coração, novamente querendo sair goela afora, pular fora do corpo e cair nos tapetes coloridos que cobriam a sala do bispo!
Seu Álvaro foi o primeiro homem de Venda Nova a ver, ainda no palácio do bispo, Frei Agostinho, que seria, semana depois destes acontecidos, o novo pároco da cidade. Mas, antes deste acontecimento, da chegada de Frei Agostinho em Venda Nova, teve a exigência de Seu Álvaro de trazer de volta frei Marcos, prometendo ao bispo que nada de mal aconteceria ao assustado e calado padre.
E ...
Em Venda Nova - talvez em todas as cidades tenha alguém assim - tinha um preto baixinho, meio surdo, que andava de sítio em sítio, não se firmando em local algum, preguiçoso, diziam uns, aventureiro, diziam outros. Neguim do Brechó, como era conhecido, tinha fama de, pequeno e teimoso como um jumento, possuir como este animal, um enorme órgão meio das pernas. Carregava também a fama de, apesar da idade, ter um vigor sexual acima dos normais limites. Se conta que nas tardes que Neguim aparecia na cidade, muitas vezes, se juntava ao seu Tonico e ao seu Alfredo Marangoni que levavam o preto para a casa das putas e pagava para que ele usasse e se deliciasse com os serviços e corpo de dona Mercedes, uma puta velha que por causa da idade, das peles e peitos caídos tinha poucos fregueses, e se sujeitava – paga pelo seu Tonico e pelo seu Alfredo - a servir ao Neguim do Brechó; e assim, enquanto os dois se entendiam no quartinho, os dois pagantes da orgia de ficavam na sala da casa das putas bebendo cerveja e contanto quantas vezes, em meia hora, o Neguim chegava aos maiores prazeres, gemendo como um jumento enquanto Dona Mercedes reclamava aos berros: logo, logo, vamos logo homem de Deus: jumento do inferno, está me matando. Se falava, também, que como não era sempre nem rotineiramente que o homem tinha suas vontades satisfeitas por dona Mercedes, graças aos senhores Tonico e Marangoni, que Neguim do Brechó se satisfazia, nos campos, com mulas e éguas.
E seu Álvaro ordenou a seu capataz que encontrasse Neguim do Brechó e que o trouxesse para a cidade o quanto antes: para ontem é melhor ainda, disse. Estaria mudado o patrão? será que o tão sério Seu Álvaro vai agora entrar no time do Tonico Damasceno e do Alfredo Marangoni e pagar puta para o Neguim, era o que pensava, enquanto procurava pelo homem, o capataz Dionísio. No dia seguinte, obediente, chegou com Neguim na casa do Seu Álvaro que mandou o preto entrar e tomar assento deixando Neguim meio assustado - desacostumado de cortesias – e ordenou para que Esmeralda coasse café forte, fervesse uma rabinha de leite, assasse pão de queijo e broas de milho o suficiente para saciar a fome do pobre homem, que nervoso e assustado, negro em sua cor de origem, sem nada entender, tinha as faces esbranquiçadas, os olhos perguntadores, o sovaco suando, fedendo, esperando sentado na sala de visitas.
Comeu bem? Está c’ua barriga cheia? Sim, comi demais da conta, não tenho costume de comer assim de manha, respondeu o negro e seu Álvaro, então agora, de barriga cheia, vamos rezar e pedir perdão pelos seus pecados, Frei Marcos quer te ver na casa dele, vamos! E lá se foram os dois rumo a casa do padre. Seu Álvaro bateu palmas, gritou oi de dentro, viu a porta aberta e foi logo entrando, arrastando o negro assustado, olhos acesos, brilhosos. Na sala Frei Marcos, sentado, lia o breviário de capa preta: puxa vida Seu Álvaro, a quem devo a graça de sua visita, sente-se, e ele: não, não quero sentar, onde é o quarto em que o senhor dorme? É aquele ali, com a porta aberta, no corredor, e Seu Álvaro: tire a roupa, se ajeite de bruços e deite. Como assim? O que o senhor quer de mim, seu Álvaro? Não quero nada, ordeno que fique pelado, com a bunda para cima, na cama; quem quer mesmo, ou vai querer é o Neguim do Brechó. E disse ao negro: vamos Neguim, melhor que mula ou égua deve ser.
E com o padre se desnudando de todas as roupas ainda na sala, o revólver apontado: os dois para o quarto; e com a voz baixa, som sumido na garganta: estou aqui te esperando Neguim e fique sabendo que se não der três em meia hora, o que vou é contar pra todo mundo que Brechó envelheceu, que não é de mais nada, não dá mais fogo, que ficou velho de pinto mole e saco grande, vamos.
Seu Álvaro procurou a cadeira onde Frei Marcos lia o seu breviário e nela sentou-se. Sentiu-se cansado como nunca havia sentido: o corpo dolorido parecendo que havia ficado uma semana no lombo de cavalo bravo, a cacunda reclamando como quando capinava o dia todo, curvado, emborcado com o peso da enxada, as mãos – sempre firmes quando segurava o cano curto – tremiam e naquele segundo ele se lembrou que já há dias segurava o Schimdt apontado não para as mangas do seu quintal, em apostas de pontaria, mas para um homem, para os culhões e para o peito de um homem - frei Marcos - e se cansou ainda mais e sentiu uma tristeza grande de estar vivo, e também, ali na sala, sozinho, pensava em um homem estourado nas partes de baixo e no coração por três balas, o sangue derramando, esquentando a sala, o berro ao ter o saco atingido pela primeira bala: Aiiiiii! Aiiii! Ai! Deus do céu! Foi o grito do padre no quarto? Eram os berros e urros de dor do padre que juntados aos gemidos gozosos do negro Brechó que enchiam a sala com uma música, com uma sinfonia tão dolorosa, nunca antes ouvida, torturante aos ouvidos, à alma?
E cansado, exaurido, sentindo o corpo seco de alma, resolveu sair, tomar vento fresco no silêncio da praça, lá fora, longe dos barulhos, da vida.
Um comentário:
Gostei da narrativa. Me lembrou um pouco Josue Guimarães. E também me lembrou a Vila de Major Prado, na zona rural de Araçatuba, onde nasci.E a opção do traído foi inteligente. Ele pode saborear sua vingança. Parabéns Orlando. Escrever é a melhor das terapias,acho eu.
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