domingo, 22 de abril de 2012
AGOSTINHO E EMERENCIANA -VI–CABOCLA !
Agostinho entrou em casa completamente esbaforido: “Escuta Emerenciana: padrinho Juca mandou recado pelo Seu Sebastião, dono do caminhão que busca leite lá no curral dele: convidou a gente para almoçar lá no domingo, dia do aniversário de madrinha Olívia. Vamos? Em a gente indo, quando na volta, você querendo, já de lá da casa deles a gente aproveita e passa na casa de seu pai, pedir benção.”; Agostinho não encontrou na face e nos olhos da mulher o entusiasmo que tinha tomado conta dele. “Será que está arrependida de ter voltado? lamentando de levar aqui em casa, na vila, uma vida menos agitada e divertida da que tava levando como mulher da vida, na cidade grande?” pensava angustiado enquanto procurava resposta para suas dúvidas nos olhos transparentes da mulher. E enquanto aguardava a reposta: Medo, só medo: “Deus do céu: será que logo agora que eu achava que a minha vida tinha voltado para seu normal de felicidade? será que tudo vai acabar tão cedo?”
Emerenciana leu os pensamentos do companheiro, tocou sua face carinhosamente, mãos frias, molhadas d’ água do tanque onde lavava e esfregava as roupas sujas: “Não sei se vai ser bom, meu véio, tenho medo”; que agora Emerenciana deu de me chamar de meu véio, “mas medo do que? vamos de dia, logo cedo e antes do escurecer já estamos aqui de volta: tenha medo não, que não tem perigo nenhum”. E Emerenciana não sabia, naquela hora, se contava seus medos: “medo de ser chamada de puta, medo dos olhares de desprezo que via nos olhos das mulheres da vila: não tinha confiança em suas forças para saber se aguentava tanta dor de humilhações.”
Foram.
No almoço: torresmo, costelinha de porco frita, frango cozido com quiabo, arroz e macarrão vermelho de massa de tomate. Os homens, Agostinho e seu padrinho Juca, beberam um gole de pinga e conversaram animadamente: Agostinho queria comprar vacas leiteiras, um ou dois cavalos, carroça para carregar necessidades: enfim, repor o que havia vendido quando saiu da vila; encher de vida e de barulhos o seu sítio, seu trabalho.
Depois do almoço os homens foram para o curral ver as vacas; Emerenciana e Dona Olívia ficaram na cozinha para lavar os pratos, arear as panelas, passar café no coador e conversar.
Na cozinha:
“............................................................................................................................................................. e foi então, eu já com mais de cinco anos no serviço de mulher da vida, que dona Mercedes resolveu que eu iria ajudar na nova casa que havia instalado: queria eu em novos serviços e obrigações: queria eu agora assim cuidando das meninas para evitar brigas e bebedeiras entre elas, zelar pela apresentação das meninas, que ela queria com vestidos de seda e brocados, cabelos com laquê, colares e brincos, perfumes de farmácia, enfim meninas tal e qual em dia com o ambiente chique da nova casa; queria que fosse eu a primeira a receber e acomodar os homens na sala, ler em seus olhos que tipo de menina seria a melhor para ele, zelar pela limpeza do bar, da sala e dos quartinhos onde as meninas recebiam os homens, um monte de obrigações e tarefas: vez ou outra, só no caso de interesse demasiado, ir para o quartinho com algum cliente, sendo que nestes casos, o tempo do encontro urgia ser pouco e combinado de antes, para evitar brigas e discussões: muitas coisas a fazer. E Dona Mercedes chegou e disse: “Rosaura minha filha: vida de puta acaba logo: a gente se envelhece: então acho melhor você me ajudar a cuidar das meninas na nova casa e ganhar dinheiro de outro modo que não pela boceta”, e Dona Olívia corou seu rosto de vó ao ouvir boceta dito tão alto, falado ali em sua cozinha, pela boca da afilhada Emerenciana, que não teve nem mesmo teve o cuidado de por as mãos nos lábios para solerciar o som da palavra: disse abertamente, dentes a mostra. Mas escute madrinha: o pessoal todo vê e fala “das pingas que eu bebo, mas não sabe dos tombos que eu levo”, como diz o ditado: sofri demais e sofri mais ainda, penso, por saber o tanto que fazia sofrer o meu velho, meu pai, minha mãe: mas tudo foi mais forte que minhas vontades: destino será, madrinha? Castigo de Deus? E é certo os outros sofrerem quando Deus queria castigar a mim? Pode? Ou o castigo de Deus é tão cruel , madrinha, que Ele e Nossa Senhora da Aparecida castiga justamente assim: sofrer por mim, pelo que chorava minha alma e meu coração aumentado pelo sofrimento que causava aos corações dos outros que choravam por culpa dos meus pecados?”
No curral:
“................................................................................................................................................e foi então, que um dia, enquanto eu lidava em meu trabalho na Refinaria, que o Tito chegou, Tito, eu explico para o senhor, era o encarregado de todos nós na refinaria, tipo de um fiscal aqui nas roças, mandão e bravo; e Tito me disse que o pessoal do escritório queria falar comigo e que eu me dirigisse no dia de amanhã no escritório em vez de comparecer na refinaria para o trabalho. E eu fui: o escritório era bonito, os telefones tocavam sempre, tinha a dona Zuleide, que era a secretária do Engenheiro Doutor Mancini, que me olhava com olhos de desejo, eu sei que me desejava, mas eu não sei se desejava ela ou não, acho que sim, mas nunca quis saber de intimidades: não queria saber de enrosco com mulher casada, fazer sofrer os outros: meus pecados eu mesmo pago, mas devo dizer, padrinho: era bonita a dona Zuleide, sabe daquelas mulheres de peitos grandes quase fugindo da blusa apertada, a saia justa, preta, dando forma na bunda grande e redonda; mas estou mudando de assunto: no escritório o Engenheiro Doutor Mancini me disse que queria que eu fosse para Belém operar uma moto niveladora nova, comprada agora do exterior, necessária para construir uma barragem. Aceitei: e eu ia viajar de avio, nas alturas até Belém. De noite, no dormitório dos peões eu contei com muito cuidado para Oberaldo que eu iria para Belém: contei com cuidado de pena: logo eu que não lia a Bíblia tinha sido escolhido para ir trabalhar em Belém e não ele, o Oberaldo, crente, que, com certeza trabalharia com mais gosto nas terras onde nasceu Cristo, ou morreu Cristo, não sei, mas Oberaldo sabe se Cristo nasceu em Belém o morreu em Belém, e não seria ele que ia poder ver o localzinho onde José fez o bercinho do Menino, forrou com capins, e a Virgem com os olhos meio tristes, ao lado, olhos no Filho: mãe nunca desvia os olhos dos filhos, eu sei disso, é assim que eu vi nos presépios em tempos de Natal, que é quando o Menino nasceu. “
Na cozinha:
“Ariar as panelas é um serviço que gosto: esfregar forte a bucha com bastante sabão e areia fina deixando as panelas e os caldeirões limpos, brilhantes, até fazer doer nos olhos o brilho deles quando bate o sol. Mas, Madrinha, tenho que falar, tenho que contar: uma felicidade grande enche todo meu corpo quando vejo seus olhos: parece que seus olhos não me enxergam como puta, é isso mesmo? “É, assim é: você é puta agora?”, “não: agora não sou puta”, “e então: meu olhos enxergam você no que você é: Emerenciana”. E aquelas palavras encheram todo o meu ser, o ser Emerenciana, de felicidade. Vi que podia então, novamente, ser enxergada como Emerenciana. Sabe madrinha eu até que me acostumei em me erguer dos tombos para levantar das caídas: e isso exige uma força muito grande que se tem que ter e que cansa tudo: corpo e coração, causa um cansaço muitas vezes maior que o cansaço de capinar café, mais cansaço até, posso dizer a senhora, que é minha madrinha, que o cansaço de tirar as roupas e, pelada, e abrir as pernas para os homens a troco de ganhar dinheiros. Mas, agora, neste momento exato, enquanto lavo aqui estas colheres e estes garfos, o que importa é que sinto agora, ao ser enxergada pelos seus olhos como Emerenciana: é uma felicidade muito grande, madrinha; o que estou sentindo, felicidade tanta, que enche meus olhos de lágrimas, aquelas lágrimas boas de se derramar, deixar rolar rosto abaixo até dar para recolher e beber: quentes lágrimas molhando as securas da alma.”
No curral:
“E quando contei, com todo cuidado, já disse, para Oberaldo de minha ida para Belém ele leu lá na Bíblia dele algumas coisas que contavam de Agar, concubina de Abraão, mãe de Ismael. Dia seguinte, obedecendo às ordens do Engenheiro Doutor Mancini , peguei dois ônibus e fui parar na Avenida Ana Costa, em Santos, para os exames que teria que fazer no Instituto de Saúde do Trabalhador: lá tiraram sangue do meu dedo e o médico gordo, rosto de criança, olhos azuis e fala mansa, depois dos exames realizados, me disse: “o exame de Machado Guerreiro deu positivo”, eu não sabia o que era Machado Guerreiro, e ele me perguntou onde eu havia nascido e eu respondi e ele perguntou se eu tinha morado em casa de pau a pique e eu falei que sim e ele me disse que o barbeiro havia me picado. “Doença de Chagas: o coração cresce, fica grande, enorme e preguiçoso de trabalhar o seu trabalho de esparramar sangue em todo o corpo”, e que não tem remédio para a doença de Chagas, causada pela picada do barbeiro. “Morre logo da doença?”e ele disse que não: que tinha medido meu coração, suas batidas, que eu estava bem, mas que tinha a doença e que ele não ia poder assinar o meu Atestado de Saúde, que o governo exigia da empreiteira para fazer os serviços da barragem de Belém, e que o governo faz isso pensando na saúde do trabalhador, para o bem do trabalhador e que o barbeiro havia me picado. No escritório, depois, dona Zuleide chorou: o médico do Instituto da Saúde do Trabalhador, aquele dos olhos azuis dentro de um rosto gordo, telefonou e contou dos resultados e ela recebeu ordens e orientações do Doutor Engenheiro Mancini: me despedir do emprego. Dona Zuleide chorava baixinho, me deu um pouco de raiva daquele choro, mas fiquei quieto e assinei um monte de papéis e recebi o envelope com os dinheiros da minha conta: o envelope pardo, com a marca da empresa, estava gordo, inchado de dinheiros: dinheiro do mês de agora, partes dos dinheiros do décimo terceiro salário, indenizações...muitas contas e dinheiros: tudo muito bem contabilizado nos escrito a máquina que Dona Zuleide sabia bater tão bem e rápido. Peguei minhas roupas no alojamento, meu radinho de pilha novo que havia comprado e fui para a Zona em Piassaguera: antes passei na obra e falei para o Oberaldo que por causa de uma picada do barbeiro eu não ia mais para Belém e que ele deveria falar logo com o Tito e se oferecer para ir em meu lugar e que lá em Belém ele ia poder ler a sua Bíblia nos lugares por onde Cristo tinha vivido. E fui para a Zona em Piassaguera. E foi lá na putaria de Piassaguera, na casa de dona Marta, que de noite veio cantar uma dupla e eu arrisquei de pedir: queria cantar Cabocla e o da viola aceitou e me perguntou o tom e eu disse que queria o mais diminuto dos tons e ele se assustou, e perguntou se era medo do alcance da voz e eu respondi que não: alcançar eu alcançava mesmo em Sol, mas eu queria melancolia! E cantei: “Cabocla , como é triste o meu viver, sem esquecer, um só momento seu amor, tu me deixaste por um outro da cidade e a maior infelicidade é o desprezo a quem quer bem”. Cantei e chorei! Passado o cantar de Cabocla vi as putas chorando de me ver chorar e Alfredo, que era o que tocava violão e era o dono da dupla, me ofereceu lugar de cantor.”
O café passava no coador: a água fervendo de quente soltava uma fumacinha de cheiro perfumoso e forte, amargo e doce, se pode ser assim amargo e doce ao mesmo tempo; e aquela fumacinha de cheiro inundou de perfume primeiro a cozinha, não se contentou e chegou no quintal e logo depois fugiu e chegou no curral atiçando as vontades de beber café em Agostinho e seu Juca. Da cozinha Dona Olívia gritou: “café passado, vem beber que senão acaba, vem logo”. E, todos, cada um segurando sua canequinha de alumínio, foram para a varanda e arrodearam a mesinha onde estava a bandeja, coberta com a toalhinha branca, bordada e o bule fumegante de café. Momento por demais hierático, pensou Emerenciana , que brincou de passar esse seu pensamento que estava no seu coração, pelo ar, e o ar carregou aquele santo pensamento que chegou nos corações de Agostinho e de Seu Juca e de Dona Olívia: e tudo se transformou em um momento sagrado de silêncio, de ventos quietos que balançavam tão devagarzinho, sem barulho, as folhagens do coqueiro de buriti e as folhas do pé de abacate, até o cachorro quieto, sem latir, tudo e todos a respeitar aquela cerimônia sem padre que acontecia tão musicalmente na varanda e parecia querer fugir dali e se esparramar por toda a fazenda, por todo o mundo e chegar em Belém.
Na varanda:
“Continuando: eu fiquei contente com o trabalho de cantor nas casas das putas; Alfredo queria viajar mais, conhecer lugares, cidades, novas ruas de putarias e só bastava eu cantar: comprei em uma banca de jornal em Santos um livrinho com os sucessos do Waldique Soriano e decorei todas aquelas letras e Alfredo me ensinava outras...minhas mãos foram perdendo os calos, ficando lisinhas, parecendo mão de mulher rica, mão de professor: agora eu era cantor” . “E eu seguia minha vida de cuidar das meninas, dar ordem na casa, em sua limpeza, não deixar brigas, escolher a melhor menina para cada homem que chegava a procura de serviços de amor. Luzia estudava e estudava bem: ia para o Ginásio: mocinha já, bonita; lia histórias para mim e dizia saber o porquê eu não podia ajudar ela nas lições de casa: matérias difíceis demais para mim: até francês ela estudava, imagine!” “E sabe padrinho, que Luzia riu e riu de mim quando disse que por modi da mordida do barbeiro que fazia meu oração crescer, eu tinha sido proibido de ir para Belém trabalhar e que por isso não tinha conhecido o lugar onde Cristo nasceu e ela disse: “Pai o mundo tem cinco continentes, eu aprendi em Geografia, e o Belém do Nosso Senhor Jesus Cristo não fica aqui no continente americano, mas no continente asiático” e eu não entendi bem nada daquilo, mas ela também me disse que contou para todas as amigas que no dia seguinte eu iria buscá-la na saída do Ginásio, ela não diz buscar ela que é errado, e que todas iriam poder comprovar o que sempre dizia: que o seu pai era o mais bonito de todos; e então e eu vesti meu terno de linho para ir buscar Luzia no ginásio e ela me abraçou e falava alto para as outras meninas, todas vestidas com saia azul e blusa branca, algumas com boina na cabeça, todas lindas como Luzia: “não falei que ele é bonito: parece artista de rádio de tão bonito, ele canta” e eu chorei lágrimas secas e pensava que era melhor mesmo foi o barbeiro ter me picado e o meu coração, ficar crescendo e crescendo, grandão de tamanho e que ia se encher de tanto amor.” “E, numa noite, eu estava me arrumando em meu quartinho quando ouvi uma voz que cantava no salão. Meu corpo adivinhou tudo e eu sai do quarto só de calcinha e soutien, sapato de salto alto e fui até a cortina de veludo que separava os quartinhos do salão e aquela voz, que eu conhecia, cantava, repletando o salão todo de música de amor. E eu abri na separação da cortina de veludo uma brechinha para meus olhos enxergarem o salão e então eu VI: era ELE. Me tonteei, caí e acordei no quarto, em cima da cama com as meninas que me vestindo e eu pedi um outro vestido, vermelho, com brocados e bordados, decote mostrando o rego dos peitos.” “Eu não via nada atrás da cortina vermelha de veludo, não via o buraquinho por onde ela me via, mas eu sabia que ELA estava ali e então cantei mais alto, o mais lindo o que podia: “Cabocla como é triste o meu viver”.
Atrás da montanha que juntava a fazenda ao Rio Grande e a vila do Baguaçu apareciam nuvens negras, daquelas totais de tão carregadas de chuva: Março, mês de São José, das grandes chuvas, enchentes, raios e trovões: “Vai chover e logo. Vamosimbora enquanto é tempo.”
E o silêncio religioso que tinha tomado conta da furna que envolve a fazenda do seu Juca foi quebrado: “Bênção Padrinho.” “Benção madrinha” “Deus abençoe Emerenciana” “Deus abençoe Agostinho” !
Os cavalos trotearam rumo da vila.
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