quinta-feira, 5 de abril de 2012
AGOSTINHO E EMERENCIANA - IV–ROSAURA
- “Bom dia Rosaura.”
Rosaura respondeu:
- “...m’dia Odócio. Já acordado assim tão de madrugada? Tá escuro ainda.”, se esquecendo que para o cego Odócio é sempre escuro em sua cegueira de nascença: “coitado: que pena dá pensar que o pobre nunca pode ver, com os olhos, a claridade das manhãs e o lusco-fusco dos entardeceres, as pessoas, as flores, nada. Só escuta, sente os cheiros e, como ele gosta de dizer, enxergar com os olhos de dentro a ponto de dar medo; enxergar não os rostos e os de fora das pessoas, mas adivinhar e ver os de dentro.” E enxerga mesmo: tanto assim que eu mesma, que agora tanto aprecio o cego Odócio, quase um pai ou um tio que nunca tive, por muitas e muitas vezes, no começo de nosso conhecimento que virou amizade, desconfiava: “esse cego enxerga com os olhos: finge mais é para pedir esmola”, de tanto que ele sabia das coisas.
Cego Odócio, gordo, com papas moles balançando debaixo do queixo, peitos que parecem de mulher, tão grandes, rosto redondo - tal e qual uma lua cheia - com poucos fios de barba; e o rosto sempre descascando, e soltando casquinhas de pele amarelas e secas que caem , como caspa dos cabelos, nos peitos, sobre a camisa de flanela que sempre está a vestir: sempre com a mesma camisa xadrez, seja nos dezembros quentes de Natal cheio de bolinhas vermelhas e amarelas, brilhantes, enfeitando as árvores, ou para os que preferem, os dezembros dos presépios repletos de santinhos, carneirinhos, o bercinho do nenê Jesus com o chãozinho de areia e musgos e o espelho fingindo ser lago, seja nos junhos frios das festas de São João, de tantos foguetes que de tão bombásticos ferem os ouvidos dos cachorros que, assustados, procuram esconder-se debaixo das camas, das mesas, uivando fino de dor ou de medo, ou dos dois, quem vai saber. Cego Odócio, com sua camisa de flanela xadrez, sabe: desvia e nunca cai nos buracos do quintal, não erra a porta de sua casa-quarto que é a número dez - a minha , que eu alugo por mês e onde vivo com Luzia, é a número doze, um pouco mais ao fundo da casa quarto alugada por cego Odócio - desta linha reta de quase infinitas casas que se pudesse ser vista de longe seria muito igual aos trens da Mogiana; não os trens de passageiro, mas aqueles de carga: vagões e vagões, infinitos, iguais, com a janelinha pequena, correndo devagar em cima dos trilhos de ferro, passando na estação e a gente toda da vila, nas janelas das casas, nos bancos do jardim ou na estação, todos nós, curiosos , olhando e vendo sua chegada e seu partir, apreciando o aparecer e o sumir, pela força do vento, da nuvem de fumaça branca que manchava o céu azul, parecendo desenhar no céu uma nuvenzinha comprida, uma cobra branca no céu azul, feita pela locomotiva em seu fungar, sacolejando cansada e fungando e eu pensava: “meu destino é partir”.
- “Já tem café coado. Quer? Pegue lá, porta tá aberta.”
- “Quero sim, mas , primeiro vou ver Luzia.” , e saiu procurando, na bolsa de ráfia com flores azuis, a chave da casa quarto número doze, deixando no ar o forte perfume de rosa; mania sua: sempre nas madrugadas ao sair da casa das putas, onde trabalhava, se banhava e enchia de leite de rosas no rosto, no meio dos peitos, nos braços e sentia-se, assim, banhada de leite de rosas, como quando se confessava: as ave-marias e o padre nosso que o padre recomendava e o leite de rosas perfumoso deixava Rosaura leve, pura e livre para novos pecados, novos suores.
E Rosaura voltou para junto do cego Odócio, que continuava sentado no banquinho de madeira, debaixo do pé de mangueira do quintal. Era madrugada ainda: das canecas cheias vinha o cheiro doce amargo do café de coador que cego Odócio, como ninguém, sabia coar: forte, grosso, cheirando roças, pastos, poeiras, terra molhada pelos pingos da chuva e inocentes infâncias. “Como é bonita minha filha, Odócio. Sabe que olho, olho e nunca enjoo de olhar; nem parece a mãe, Odócio, é tudo o pai: o rosto, a boca rosada, os dentes brancos, separados, grandes”; “mas os olhos são seus Rosaura: olhos da mãe, que não mostram inverdades, falsidades e contam tudo dos sentimentos, da alma, do miolo do coração; Rosaura eu sou cego, mas enxergo: os olhos da menina são os seus.” E foi falando assim que cego Odócio, ao mesmo tempo em que de uma golada bebeu o resto da caneca de café, já frio, levantou-se ágil em sua gordura cega e foi para a sua casa quarto buscar mais; queria mais café quente e cheiroso para saborear junto com a conversa e os perfumes da amiga puta.
Com mais café quente o quintal das casinhas quartos enfileiradas como vagões de trem perfumou-se todo, o cheiro subindo mangueira a fora, cobrindo os telhados, embalando os sonos dos que dormiam. “Me alembro como se fosse hoje, Rosaura: me vem na cabeça bem a hora que chegou aqui a procura de alugar casa quarto para morar, querendo esconder do senhorio sua profissão de puta: “sou enfermeira, cuido de idosos de noite” – disse, e eu desconfiando de tudo, mas querendo fazer amizades, ajudei e adiantei, para o senhorio, o endereço do Lar dos Velhinhos da Sociedade São Vicente . Tudo coisa do destino Rosaura: agora te ajudo nos cuidados com a menina Luzia, que logo vira moça, vai ver: moça e bonita como a mãe.”
E só depois Rosaura, com você sabendo que eu sabia, me contou, da própria boca me contou tudo - tudo sei de sua vida - “desde quando Agostinho, desconfiado, pegou você meio do cafezal do Sílvio Teixeira, embaixo das sombras de um pé de café, gemendo, agarrada - como uma lagartixa no coqueiro- ao Luís Celeiro que também gemia, calças arriadas até embaixo, você com a saia levantada, a calcinha pendurada tremulando como uma pequena bandeira na forquilha do pé de café, pernas grossas e fortes à mostra: “Filhos da Puta eu mato os dois, seus desgraçados” e você correu para um lado, rumo à casa da Fia Mineira, onde tinha deixado Luzia, que sabia de seus namoros, e Luís , calças arriadas, que ele puxava para cima enquanto corria para os lados da mina d’ água. Não foi mesmo assim? Se alembra Rosaura?”
“Foi sim cego Odócio, igual ao que está relembrando: sem tirar nem por. Corri, feito doida, até a casa da Fia Mineira e ali fiquei agarrada com a Luzia debaixo da cama. Não sei quanto tempo fiquei lá , abaixada, agarrada a Luiza, que às vezes chorava, mas fiquei embaixo da cama, medrosa da morte, até que chegou meu pai, tudo querendo saber e eu contei: “vai acabar sendo fichada, minha filha. Levo Romeu comigo e que Deus te abençoe e guarde. Sua vida corre perigo!”, falava e olhava em meus olhos que cruzavam com os seus e os quatro olhos percebiam que jeito outro não tinha a não ser fugir e fugir. Fia Mineira conhecia Décio, que tinha um aerouilis bordô, o mais lindo da vila, de verdade o único aerouilis da vila, os outros dois automóveis que tinha a mais na vila eram um Ford bigode de aluguel do Bepe e uma baratinha do Seu Tó; e Fia Mineira ajeitou tudo para mim: peguei rabeira no aeroulis do Décio da vila até a cidade. De lá, uma cidade grande, mas não muito, peguei ônibus e cheguei aqui, nesta cidade maior ainda, que tem até arranha-céus que eu nunca antes tinha visto e, como eu nunca tinha imaginado, tem duas ruas só com casas de putas: só de putas, com as luzinhas verdes ou amarelas sempre acesas nos alpendres, convidando os homens a entrar .
E fui direto da rodoviária para uma pensão Central, também uma recomendação da Fia Mineira, e lá me preparei para ir até a casa da Mercedes, na Rua José Bonifácio: me apresentei de pernas raspadas – puta com perna cabeluda não pode, conforme conselho de Fia Mineira, mas confesso, cego Odócio, que Agostinho gostava e acho que ainda gosta de mim assim mesmo, como Deus me fez –; mas procurei a casa de Dona Mercedes com as pernas raspadas com gilete, cheirosa de perfume Alfazema , que comprei um vidrinho, cabelos lavados, pele do rosto brilhando de tanto sabonete que usei. Estava bonita e limpa quando cheguei na casa da dona Mercedes que gostou de mim, achando que eu podia ser puta de sua casa e me levou até a delegacia e foi ai que entendi o que meu pai tinha dito: “vai acabar sendo fichada ,minha filha”; quando disse aquilo ele adivinhava: era a ficha de puta que o delegado de gravata azul preenchia querendo saber meu nome, o ano do meu nascimento, se tinha filhos e tudo o mais, e eu mentindo e mentindo: menti na idade, e menti, doendo dentro de mim, porque dona Mercedes ordenou para eu falar que não tinha filhos e eu tinha e tenho a Luzia e Romeu: filhos meus com Agostinho, de quem eu tanto gosto e por quem, se precisar, até minha vida por qualquer um destes três eu dou. Mas menti: na ficha de puta não aparecia meus filhos e meu nome mudou de Emerenciana para Rosaura, outra exigência de Dona Mercedes: ela dizia que Emerenciana é nome de avó e que homem nenhum quer foder com avó, ninguém gosta de foder com velha, enquanto que Rosaura é nome bonito, mais em uso hoje em dia, moderno, mais fácil de dizer que Emerenciana, e os homens vão gostar mais de foder com Rosaura do que foder com Emerenciana. E agora, Odócio, até gosto de Rosaura: me acostumei.”
E da delegacia me mandaram para o exame médico. Uma fila de mulheres sentadas nas cadeiras esperavam o médico, um velho que não parava de fumar e tinha os dedos sujos de nicotina que quando chegou minha vez me examinou, viu que eu não tinha doença venérea, garatujou em um papel da Secretaria da Saúde umas letras difíceis para mim entender que ele grudou na ficha que o delegado havia me dado; mandou que eu mandasse entrar na sala , para exame, uma outra mulher, já puta experiente, que vinha para os exames anuais obrigatórios e não se despediu de mim, e eu voltei para a casa de dona Mercedes, e naquela noite mesma me iniciei na profissão de puta. Foge de minha compreensão pensamentos altos, difíceis, cego Odócio e, então para mim, vida de puta é isso: é a vida de se ganhar dinheiros em troca de dar amor às solitárias e insônicas noites de homens: todos os tipos de homens: casados, solteiros, velhos , moços, fortes, fracos, homens doentes de doenças nos pintos e até padres sem suas batinas, mas com aquele paninho branco arrodeando o pescoço e os riscos no meio dos cabelos, que não deixam esconder a profissão santa de padre . “E tem homens que gostam” de beijos e outros que tem nojo de nossas bocas e querem tudo rápido, querem mesmo é aliviar logo o corpo dos seus desejos deixando dentro de nós, as putas, suas porras que não encontrarão onde germinar, porque puta, cego Odócio, não tem filhos com homens que buscam seus corpos, sua buceta: terminada a seção dos prazeres a puta corre e lava logo tudo e tudo e mija, mesmo sem vontade, quase sem urina na bexiga, para limpar as partes de dentro das porras dos homens. E os homens são diferentes também Odócio, nos modos de pagar pelos serviços: alguns deixam os pagamentos, calados, quietos, meio tristes, em cima do criado mudo enfiando o dinheiro todo contado direitinho, notas bem dobradas, enfiadas debaixo da toalhinha rendada do abajur, e estes vem sempre já com o dinheiro combinado separado em seu valor certo, bem contado; já tem outros que se vestem com mais calma, com menos pressa e só depois de vestidos é que procuram nos bolsos e contam em nossa frente o dinheiro embolado, molhado de suor de suas pernas; uns outros pagam com sobra, com dinheiro a mais do que o combinado e, passando as mãos nos queixo ou dando um tapa carinhoso de fraco na nossa bunda dizem que “tem um pouco a mais, fica ai guardado com você e a gente desconta na próxima foda”, e alguns outros, não, exigem que querem o troco na hora e temos que sair , antes mesmo de lavar bem a boceta, até o salão e pedir trocos para a Dona Mercedes. Mas sabe Odócio que tem uma violeira, do Mato Grosso, que vez ou outra toca aqui na casa da Mercedes, que conta que o lugar que mais aprecia de tocar é na casa das putas, das mulheres da vida, como ela diz: “tão sempre sorrindo, sua profissão exige sorriso, alegrias em servir”.
“As putas e os garçons acostumam -se ao sorriso de suas profissões” pensou conclusivo cego Odócio.
“Deve ser isso mesmo” pensou baixinho Rosaura, adivinhando ela os pensamentos do cego e levantou-se do banquinho a procura da cama da casa quarto que alugava: estava cansada.
Cego Odócio ficou só no quintal, café já bebido, caneca vazia, sentado no banquinho de madeira aguardando o clarear do dia que esperava fosse bom em sua vida de cego pedidor de esmolas.
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