- “Conte uma história de amor compadre. Sabe daquelas que falam de um amor forte, maior que as dores que ele, muitas das vezes, arrasta consigo. Vai mais uma branquinha?”
- “Quero mais um gole só para esquentar a goela e dar coragem à cabeça de relembrar memórias que o tempo teima em turvar, se parecendo com o Morro do Chapéu que, nestes dias de neblina, fica todo encoberto, não se deixando de ver, mesmo com a gente sabendo que o morro inteiro ainda está lá com seus coqueiros, seus jequitibás floridos de azul, suas pedras negras e sua cachoeira, que mesmo nestes tempos de seca, teima em mijar um filetinho de água branca e fria. Mas escute aqui compadre, uma coisa eu te garanto: tanto o morro do Chapéu, que vez ou outra a neblina teima em esconder, quanto as memórias impressas vida afora dentro de nossa cabeça e que o passar do tempo, muitas vezes, arresolve turvar estão vivos; vivos com suas sombras e seus sóis: não fugiram de dentro de nós; e, compadre é muito boa mesmo esta branquinha.”
E assim que ia falando, virou o copo e bebeu um gole grande de pinga, cuspiu longe o que era “para o santo” e ficou assim a ensimesmar-se com os olhos fechados, as rugas formando pequenas estradas de lado a lado na testa, parecendo aumentar ainda mais a calvície envolta de grisalhos pichainhos. Carecia de fumar um cigarro forte!
E começou a contar.
- “Paciência então, compadre. A história é longa e tem que ser bem contada por respeito ao morto, finado Agostinho, que já há mais de trinta anos descansa na paz de Deus e também por todo o merecido respeito à Emerenciana, viva até os dias de hoje, que Deus a guarde assim forte e sã, embora triste em sua sofrida e solitária viuvez, pois a infeliz, desde o passamento do Agostinho nunca mais quis saber de homem ao seu lado, fora os netos, e, claro os filhos, mas é que com estes, o que se tem é outro tipo de amor, que até ajuda a aguentar a solidão da ausência de um outro amor o de Agostinho, é o que ela, sempre que me encontra, diz.
Pois foi assim: Agostinho se enlouqueceu doidamente por Emerenciana desde a hora em que a viu, pela primeira vez, lavando roupas no córrego do Bom Jesus, que corre ligeiro, pedregulhento, volteando o Morro do Chapéu em seu lado leste, que é o lado onde o sol nasce, até chegar mais ao norte do Morro para descansar suas águas borbulhentas e rápidas no calmo e tortuoso Rio Grande. Mas isso, do córrego do Bom Jesus, não importa: estivesse Emerenciana lavando roupa junto a uma cisterna ou na beira da Lagoa do Silvinho a coisa seria a mesma: os olhos de ambos se cruzariam e enxergariam, encantados, cada qual, um ao outro e todos os quatro olhos permaneceriam por aqueles instantes abertos sobremaneira e as duas bocas se abririam, dentes à mostra pelo sorriso de surpresa de tão inusitada e encantadora beleza que cada um via no outro. Momento, compadre, para se nunca mais se esquecer, os corpos de cada qual trêmulos de desejo pelo outro corpo, e na cabeças, pensamentos até então impensados e os corações querendo saltar boca afora, sufocando as gargantas pelo que, tão repentinamente, sentiam. Tudo duplamente, os dois!
Ele, Agostinho, aos seus dezoito anos e ela, Emerenciana, com seus quinze ou dezesseis, não me lembro mais... embora mas não mais que dezesseis, isso é certeza, pois o casamento teve que ter a autorização do seu Brechó, Juiz de Menor da comarca de Baguaçu Paulista .
E houve, compadre, depois de tanto medo e sustos, grande festança de casamento; daquelas festanças antigas e boas festas, na casa do Seu João Pedro, compadre e amigo chegado do pai de Emerenciana, Seu Ângelo. Seu João Pedro, fazendeiro bem apessoado e rico, padrinho de crisma de Emerenciana, não economizou nas compras das cervejas e dos guaranás, mandou matar galinhas e frangos e também um garrote e as comadres se juntaram para cozinhar mandioca, fazer arroz doce e um enorme bolo de casamento, todo decorado e junto com as balas de coco embrulhadas em papel celofane enfeitavam a mesa. Bonita festa! “
- “Só não entendi, compadre, o porquê do medo de antes da festança.”
- “É que Agostinho roubou a Emerenciana da casa dos pais que não aceitaram o pedido de noivado e casamento. Até que dona Terezinha, mãe de Emerenciana, sabendo dos amores da filha e da visita que Agostinho faria em sua casa, naquele domingo que coincidiu com o dia da Folia de Santos Reis, bem que tentou, prevendo a negativa do marido, amolecer o coração do Sr. Ângelo, dizendo que hora ou outra, com um com outro a filha se casaria, mas não houve acordo, nem consentimento: “com aquele louco e desmiolado do Agostinho é que filha minha não vai se casar, e pronto”. Nem mesmo preces e promessas a Santa Izildinha, feitas pela mãe e pela filha, ajudaram: nem bem terminou de expressar o pedido Agostinho ouviu um não seco que reverberou até o pé da serra, chegando lá ecoou e voltou como que aquela repetição reafirmasse a Agostinho que não haveria qualquer esperança de, por bem, se casar com Emerenciana.
E combinaram de fugir.
Agostinho era um homem alto, magro, tinha a pele de um moreno bronzeado, mistura do amarelo dos avós bugres caçados a laço pelas redondezas e de remotos portugueses vindos daqueles lados de Minas, de perto do Rio de Janeiro. Dos bugres havia herdado, além da pele amarelada, a barba rala, os lábios grossos, o cabelo negro e liso e a capacidade de pensamentos e ideias próprios, oriundos não da necessidade de ocupar a mente ociosa, mas antes, frutos da vida que levava na solidão das roças que carpia. Por parte dos portugueses herdou os olhos grandes e amendoados, de um cinza meio esverdeado: enfim a misturança de raças produziu nele um homem bonito, rosto anguloso, um sorriso irônico a mostrar dentes brancos, perfeitos. Gostava de, mesmo em sua pobreza, se vestir bem, orgulhoso de sua beleza e, nos bailes, além do sucesso com as moças, cantava e tocava pandeiro, bebia um pouco a mais o que talvez fosse motivo dos receios das mães pelas paixões demonstradas pelas filhas ao dançar com o rapaz. Dançava bem, ao contrário de jogar futebol: era todo desajeitado frente a uma bola.
Agora a Emerenciana. Emerenciana era, ou melhor dizendo, é, pois ainda vive, mas vou contar dela quando moça: morena, nariz pequeno e afilado, que lhe dá quando olhada de perfil a aparência de um gavião, cabelos fartos e negros, um pouco cacheados, ombros pequenos, seios fartos, pernas curtas e torneadas a sustentar as nádegas salientes, redondas e firmes logo abaixo de uma cintura fina. Mais portuguesa, sem bugres na família, ainda menina, já mostrava os buços acima da boca carnuda, e que, com a idade foi aumentando, aumentando, virando quase um bigode e obrigando-a ao doloroso processo de retirá-los com cera quente; tinha também bastante pelos nas pernas que eram, aos domingos, raspados com a mesma navalha que Agostinho usava para fazer sua pouca e rala barba. E em seu rosto bonito os seus olhos intrigavam: pequenos, negros, com muito brilho, mas dotados, como um espelho, de uma sinceridade que ao vê-los, sentia que a conhecia. A seus olhos, Emerenciana, nunca mentiu, nunca guardou segredos; por isso eram, mais antes que hoje em dia, transparentes, espelhosos.
Mas como ia dizendo: fugiram.
Combinaram assim: fugiriam na noite do baile da “traição” que teria no sábado na fazendo do Seu Carvalho. Aproveito aqui e peço licença para um pequeno parênteses nesta história compadre: muitos dos novos moços não sabem o que é baile de traição. Vou explicar: uma das grandes festas que ocorriam naquelas épocas enaquelas e outras regiões eram os mutirões, nos quais as famílias se reuniram para ou roçar um pasto que estava atrasado ou capinar um lote de café que estava sendo engolido pelo mato...enfim juntava-se os homens, normalmente em um sábado, a fim de por algum serviço atrasado e urgente em dia; nestes dias de mutirão enquanto os homens labutavam na roça as mulheres se juntavam para fazer o almoço, o arroz doce e preparar a tolda no terreiro para o baile. Pois uma traição, como o compadre bem sabe, é um mutirão, só que de surpresa, ou seja, o escolhido para a traição, sem nenhum aviso, era acordado, antes do dia clarear, com foguetes e gritos alegres; para ver o que é abre a porta de casa e vê a multidão se aproximar: homens com a enxada ou foices às costas, as mulheres carregando os filhos e panelões de alumínio e então se combina o serviço a ser feito; como no mutirão as mulheres vão para o fogão e os homens para a roça. O dono junto a algum outro, normalmente mais velho, se responsabiliza para providenciar, além do sanfoneiro para o baile, a tolda para cobrir o terreiro e para buscar, na venda, possíveis necessidaades e, com certeza, a pinga para o quentão e para a beberragem. Todos se divertiam, e muito!
Mas voltando ao casal de enamorados, que em segredo, assim combinaram: aproveitariam a queda do pai de Emerenciana para uma pinga e, tão logo o vissem já dançando com as pernas bambas e a voz embargada, Agostinho pediria para que o sanfoneiro tocasse “O forró do Mané Vito” , que ele cantaria, trepado em um caixote de sabão; era o sinal para que Emanoelina, deixasse, quieta a tolda do baile, seguindo pomar abaixo, em direção ao cruzeiro, fingindo ir a busca de cumprir necessidadeno chegando ao cruzeiro, ficaria por lá bem quieta, quieta aguardando por Agostinho, que cantava bonito, afinado e ritmado o Forró do Mané Vito:
“Seu delegado, digo a Vossa Senhoria,
Que’u sou fii diuma família,
Qui nungosta de brigá!
Mas trasantontii,
No forró do Mané Vito,
Tive qui fazê bonito,
A razão vou lhiexplica...”
Desceu do caixote de sabão, entregou o pandeiro o Luís Antônio, olhou para sua mãe, pedindo benção com os olhos, e saiu; pegou, no pasto, Mossoró, já todo arreado, montou e perto do cruzeiro deu os três assovios combinados: Emerenciana, com uma pequena trouxa de roupas, atendeu aos assobios, subiu em um pé de cupim e montou na garupa do Mossoró.
Ela Emerenciana, então, sentiu as costas quentes do amado Agostinho e, pela primeira vez, colocou o rosto naquelas costas largas e morenas. Agostinho sentia, mesmo aos solavancos do galope de Mossoró, o rosto quente em suas costas, sentia os lábios de Emerenciana tocarem sua camisa, suas mãos agarrando firme sua barriga: acariciou suas mãos e meteu fundo as esporas nas virilhas de Mossoró que, esperto, apressou mais ainda o galope, buscando as margens do rio Grande, direção à comarca de Guaviruva, onde planejavam esperar, na igreja, os pais e os padrinhos que convidariam: amigos que, também, seriam os padrinhos dos filhos que sonhavam ter.
A noite era escura, sem lua. Mossoró galopava firme e o corpo dos dois acompanhavam os movimentos do cavalo: parecia tudo um só.
O dia começou a clarear quando estavam já chegando no alto do morro do Taquari: Mossoró, exausto, suava por todo o corpo, a boca espumava o cansaço da tão urgente corrida, como que adivinhando os sonhos que carregava. Quando foram chegando nas Três Cruzinhas Agostinho emitiu um longo “Psiuuuu”, e, ao mesmo tempo, segurou firme as rédeas; Mossoró obedece: do galope, rapidamente, passou ao trote e do trote para a marcha picada e estancou-se, parado ao outro “Psiuuu”.
Agostinho desmontou primeiro e ajudou Emerenciana a apear do cavalo. O dia clareava quando os dois se perceberam sozinhos, livres de olhares, de autoridades, de pecados. Agostinho tirou o freio que prendia a boca de Mossoró e o prendeu com o cabresto ao pé de uma mangabeira.
Cerimoniosamente tirou os pelegos que forravam o arreio e a garupa do Mossoró e pouco mais abaixo do pé de mangabeira ajeitou-os ao chão.
Os olhos se encontraram!
Os corpos, trêmulos, foram se chegando, chegando até que se tornassem um só aproveitando do macio dos pelegos que se transformaram em um leito de amor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário