Mossoró parou rente à porteira fechada. E assim pensava o velho alazão: “esta viagem foi a primeira que em nenhum momento senti a mão forte a dominar-me com a rédea, a exigir de mim o andar elegante, pescoço curvado, não senti sua mania em me fazer sir do trote e pisotear, ligeiro, a macia marcha picada; também não senti suas carícias no pescoço e os assobios a me orientar os caminhos, as paradas e os galopes. Viajei tempo todo com as rédeas soltas, balançando em cima do meu pescoço, tudo deixado por minha conta: vez ou outra, como se pra dizer que ainda estava vivo, cutucava minhas virilhas com as esporas, exigindo pressas, velocidades.”
E assim, Mossoró galopou toda aquela manhã só, dono de seu destino. Compreendendo a dor silenciosa do cavaleiro, resolveu, por conta própria fazer todo o caminho a galope, na pressa de chegar. E então quando já chegava ao destino final viu a porteira fechada e nenhum movimento das rédeas ordenando que diminuísse a marcha; “será que ele, tanta pressa, quer que eu salte a porteira”, pensava Mossoró e concluía, penoso, que com a sua idade de agora, seria impossível, e por isso, em alguns instantes, ficou temeroso da espora nas virilhas a exigir o salto que sabia incapaz. E a porteira chegava e chegava, se aproximava, e foi se encostando tanto que Mossoró resolveu então, por conta frear: para isso teve que reunir todas suas forças e, levantando poeira das patas, interromper, de supetão, o galope; conseguiu parar a tempo e, então, delicadamente, foi ajeitando seu corpo em paralelo com a porteira de modo a facilitar a operação de abri-la.
Foi então que Mossoró sentiu movimento e vida em cima do arreio: a porteira rangeu reclamando a mudança de posição. Entraram curral à dentro, com Mossoró extasiado, a boca espumando de tal modo que encobria os freios de metal enfiado entre os dentes, o corpo que, de tão molhado de suor, parecia a quem olhasse de repente, que de tão brilhante, estava saindo de um mergulho no rio; manchas brancas de sal marcavam o pescoço e as ancas e, nas virilhas, o sinal das esporas: o único conversar do cavaleiro naquela penosa viagem.
Agora, naqueles dias, Mossoró mostrava, através dos pelos brancos espalhados no focinho e no pescoço, os sinais da idade, diferente daquele animal de sete anos antes, que carregou, enevoado de felicidade, o casal de fugidos à busca da realização do amor; hoje, desgovernado, carregava um só corpo que, de tanta infelicidade e tristeza pesava por dois; Mossoró sabia que tristeza pode parecer que não tem peso, mas pesa, e muito.
Agostinho curvou-se de lado em cima dos arreios e abriu a pesada porteira do curral feita de taboas largas de aroeira, berrando o nome do padrinho enquanto apeava do cavalo que deixou solto, arreado, sem o cuidado de tirar o freio, o arreio, dar de beber, de acarinhar o pescoço, as crinas, de agradecer: mudo, morto de gestos.
Dona Olívia, madrinha, mulher do seu padrinho Juca, sabia quem chegava e veio atendê-lo; tinha percebido, olhando pela varanda da sala, o galope do alazão descendo o morro do Taquari, e quando viu que o cavalo, galopando forte, volteou às direitas deixando a estradinha da fazenda Boa Vista e tomou o rumo e sua casa encheu-se de alegria; gostava do rapaz pelas suas alegrias, pela sua boniteza e agora pelos dois filhos: Luzia a filha mais velha, agora com seus seis anos e Romeu, o menino mais novo, gordo e sorridente em seus três aninhos: os netos que não tinha.
- “Boas meu filho..” e assustou-se com os olhos esbugalhados, vermelhos e lacrimosos do afilhado. “Mas o que houve? Santo Deus. Que foi? Que desgraça de notícia me traz?” pensando em morte ou doença grave.
- “Madrinha, cadê o padrinho? É assunto para homens.”, falou enquanto tentava domar o corpo dos soluços que teimavam em sair do peito, dos urros entalados na garganta, melhor ainda, entalados no fundo do estômago, igual a um soco, uma bolada.
- “ Madrinha, quero morrer, preciso morrer. Cadê o padrinho, meu Deus do céu.”
Dona Olívia, pasma com a dor do afilhado, primeiramente se perdeu com ideias e rezas, mas logo pôs ordem na cabeça. Gritou para a cozinha mandando fazer um chá de erva cidreira com bastante açúcar, pegou o afilhado pelas mãos e o levou para o alpendre da casa. De lá gritou pelo marido: “Juca...Jucáaa!. Agostinho está aqui. Vem logo.”
- ““ Mas, Agostinho, filho de Deus, me conte: o que foi?”, tendo, no entanto, dentro de si imaginado a resposta: “coisa da Emerenciana, que deve ter aprontado, tenho certeza.”
- “Emerenciana, madrinha: peguei ela, a desgraçada, agarrada com o Luís Celeiro . Deus do céu: não acredito no que vi. Quero matar e morrer.”
Dona Olívia, sentindo desgraça maior no ar mandou chamar, às pressas, o vaqueiro Jaime e ordenou que o mesmo fosse já , agora, a todo galope, chamar o Seu Ângelo, pai de Emerenciana aqui na fazenda. Voltou com o chá e ofereceu a caneca cheia do doce chá de erva cidreira ao afilhado, que desorientado ora chorava , ora punha os olhos no infinito e abria os lábios em um sorriso irônico, triste, cheio de infelicidade, tão desconhecida até tão pouco tempo.
Segurava as mãos do afilhado, acariciando-as, tentando dessa forma consolar e diminuir um pouco a dor quando chegou o marido Juca.
- “ E aí, meu rapaz. O que foi?”, perguntou para se fazer notar junto ao afilhado e a mulher. Na verdade, havia se encontrado com o vaqueiro Jaime no caminho, ouvido dele as ordens da mulher e tudo adivinhou. Desfez as ordens dadas: “mande o Seu Ângelo para a vila buscar a filha Emerenciana, e logo, sem tempo a perder se quer mesmo evitar desgraça maior.”
E os três: Agostinho, Dona Olívia e seu Juca quietos e mudos na varanda da casa. Não havia o que se falar tanta a dor no peito do afilhado que não cabendo mais em um só lugar foi se esparramando no ar, tomando conta de todos os peitos daquela casa, agora tão silenciosa; os passarinhos presos nas gaiolas, os galos no terreiro, o papagaio ensinado: tudo quieto, quieto! Se ouvia, longe, o balançar das folhas do buriti, dizendo que o vento corria por lá.
E os sucessivos acontecimentos foram assim:
O pai de Emerenciana, tentou e tentou carregá-la de volta para casa, mas não teve sucesso na empreitada: Emerenciana agarrou-se à filha Luzia, a uma trouxa de roupas e decidiu que iria sumir por uns tempos, tempo que não sabia qual e lugar que não sabia onde. O que sabia era, apenas, que que “carecia de sumir, mode a ninguém conhecido ver minha cara, pois se alguém , depois do acontecido me ver, o certo é a morte de tristeza e de vergonha”.
O pai de Emerenciana, Seu Ângelo, vendo tudo aquilo, misturou sentimentos de tristeza, raiva e vergonha: nunca pensava que o que tinha acontecido aconteceria; mas aconteceu, concluiu, e pegou Romeu, tão inocente em sua pequena idade , que, não entendendo nada do que acontecia, não tinha o coraçãozinho triste e, de verdade, sorria ao saber que iria ver a avó Terezinha, beber leite no curral e correr atrás das galinhas.
Agostinho não atendeu ao convite do padrinho e da madrinha para ficar por ali uns dois dias até por a cabeça em ordem. Deu água a Mossoró e pegou estrada: “a cada um já basta o próprio desgosto” ; se assemelhava, no lombo do Mossoró, a um Zumbi: via e não via, pensava e não pensava, chorava e sorria... Mossoró sentindo-se desgovernado, dono dos dois destinos, resolveu mudar de rumo: na encruzilhada fugiu do caminho da vila e galopou para as direitas em direção às beiras do Rio Grande, lugar de grandes boas memórias: pescarias, noites aquecidas com pinga e fogueira com a sanfona do Ganga quebrando o silêncio da beira do rio e inundando os ares daquele mundão sem fim com melodias alegres, de amor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário