Iniciei a subida no pé de buriti. Não é coisa fácil subir até alcançar, nas alturas, as folhagens de um buriti: só vale a pena por imaginar que vai se encontrar o teto do mundo e poder imaginar que em suas folhagens se encontre a moça-estrela, tão bonita dos sonhos: seios pequenos, firmes e rosados, pernas longas e parecendo torneadas de tão bem feitas, dentes brancos e lábios finos convidando ao beijo e ao amor que ainda não havia experimentado, mas que agora desejava e muito.
Sons nas folhas do buriti me animaram ao esforço da subida. Em seu alto descobri um bando de “rata’ra” , araras vermelhas, barulhentas à cata de comida.
Não encontrei a moça-estrela.
Desci e, lá embaixo, no o chão firme, me dei conta que havia esquecido de olhar de que lado do rio se encontrava a aldeia de minha mãe. Lá no alto do buriti, protegido do sol pelas suas folhagens, ouvidos quase estourando pela algazarra das araras vermelhas, me esqueci de procurar o lado do rio onde se encontrava a aldeia de minha mãe; talvez pelo barulho das araras e pelo esforço da subida o pensamento mudou para outras premências: desejos da moça-estrela.
Aqui, do lado onde agora eu me encontrava, o rio das Mortes era largo, bem mais largo do que até então eu conhecia, formando curvilíneos remansos com praias de areia branca e pequenas lagoas com muita traíra. Resolvi que não pescaria traíras com timbó por medo da morte que ainda estava presente em mim: ia demorar para passar.
Em meus primeiros dias construí uma pequena oca pertinho da margem do Rio das Mortes, sob a sombra de um pé de murici e em minhas primeiras andanças, visando conhecer o lugar onde me encontrava, dei de frente com árvores de frutas e vi pés de berimba e de guatambu, bons para se fazer arco.
E o tempo ia passando assim: o sol bem quente durante o dia; à tardezinha, quase anoitecendo, chegava com um ventinho frio que vinha do lado do rio, e as noites eram sempre estreladas e com a lua mudando de tamanho, de pequena ia crescendo, crescendo até virar, no céu, uma grande bola luminosa, e então, mesmo dormindo se sentia a força de sua luz.
Acordei um dia daqueles resolvido a achar a árvore de berimba para fazer um arco novo; urgia um maior que o meu, mais de acordo com a força que eu sentia que, agora, tinha. E ainda bem que agora só, eu continuava a ser certeiro e ter boa pontaria no uso de meu arco e assim matar pacas, aves e peixes para comer.
E em uma manhã andei bastante rio abaixo: passei por mais de duas praias do local onde encontrava minha oca à procura do um pé de berimba ou de guatambu para fazer um arco novo. E eu caminhava silencioso e compenetrado em meus pensamentos com a moça-estrela quando ouvi sons diferentes. Parei e senti cheiro de gente: com medo, busquei proteção no meio da folhagem de um pé de bacupari e fiquei ali no alto da enorme árvore tão quieto e silencioso que dava para eu ouvir o pulsar do meu coração e sentir o sangue percorrendo minhas veias até chegar à cabeça e lá, latejar forte e ritmado.
Um medo muito grande!
Aos poucos o barulho e o cheiro foram-se embora sumindo, e eu, ainda assustado e temeroso desci da árvore de bacupari e logo abaixo, mais perto da margem do rio, vi rastos de pés desenhados na areia. Os desenhos dos pés na areia indicavam que seu dono, um adulto, com certeza, seguia em direção à descida do rio. Ainda com medo, corri de volta para a oca, no sentido da subida do rio: cheguei exausto, coração batendo forte, molhado de suor que corria por todo o corpo e no rosto se misturava com desesperadas e medrosas lágrimas que, mesmo sem eu chorar teimavam em pular de meus olhos. Entrei na oca e, deitado no chão, fui enfiando meu corpo terra adentro, cavando, enrolando, cobrindo-me, tentando, com isso, fugir do medo que invadia meu corpo. E fiquei assim, mais uma vez, parecido com um cachorro medroso, solitário e desprotegido.
Passado um tempo, que não sei qual, sai da oca e cheirei o ar: não senti, por perto, cheiro de gente; apurei o ouvido e só ouvia barulhos conhecidos: ouvi os passos silenciosos de uma paca a correr, ouvi os berros escandalosos das araras ... Fui então perdendo o medo e criando coragem para apurar ainda mais os ouvidos e assim, munido de coragem, sem medo, fui separando os sons até que ouvi longe, bem longe, um cantar único: timbres graves, harmônicos, deliciosamente irresistível.
Inelutável não sair à sua busca, ouvi-lo de perto, submeter-se todo à sua magia, ao seu encanto. E, silenciosamente, sai à sua busca.
Andei e andei. Cheguei à praia onde ainda havia o desenho de seus passos e brinquei de “andar igual”: uma brincadeira que aprendi na tribo de minha mãe que consistia em andar colocando os pés exatamente sobre a marca do rasto encontrada nos trilhos dentro da selva ou nas praias onde, nós crianças, íamos caçar.
Tive, para seguir os rastos deixados na praia, que dar passos largos e fiquei imaginando a altura da pessoa que eu seguia e da qual também fugia. Os rastos deixaram a praia e entraram selva a dentro: segui, então os matinhos tombados pelo peso dos pés do desconhecido até chegar em uma clareira no meio da mata de bacuris, muricis, aroeiras e guatambus e ali, na clareira, sentir o cheiro de gente bem próximo.
O canto que eu ouvia, que com os rastos que eu seguia guiavam-me, e me encantava tornou-se um simples e harmonioso assobio: assobio de uma música de outro mundo, jamais ouvida e, por mim, inimaginada até então.
E, escondido à sombra de uma moita de juçaras, foi que eu vi, ainda assobiando, um homem sentado sobre uma pedra. Estava protegido do sol pelas sombras das altas árvores e tive que apurar bem a vista para separar as sombras projetadas em seu rosto e vê-lo com sua cabeça totalmente coberta por cabelos negros, a face repleta de pelos também negros dificultando de ver a boca e os lábios que, em forma de um bico, continuavam a moldar o assobio com os olhos arredondados semicerrados , encantados com a sua própria música. Percebi que tinha o corpo todo coberto por uma roupa negra e nele quase nada se via: desnudos apenas as enormes mãos brancas e os pés sujos de areia e barro.
Fiquei e fiquei, calado e mudo, observando encantado com a música, escondido atrás do tronco de uma árvore, perto da moita de juçaras. Repentinamente, a música deixou o ar e em um salto o homem pôs-se de pé, enorme, todo negro olhando firme em minha direção e eu, assustado e medroso, fugi. E assim, enquanto fugia, mesmo correndo aloucada mente, sentia no chão o tremor de seus passos e ouvia seus gritos com palavras que eu não entendia, me seguindo; corri mais ainda, fugindo até que os sons de seus passos e de seus gritos fossem sumindo, sumindo, desaparecendo até voltar novamente, longe, bem longe, comigo já calmo e sem medo, tornar-se novamente em música.
E correndo, cheguei na oca.
A música, naquela tarde, cessou completamente, e só tornou a surgir quase ao anoitecer e eu dormi repetindo-a, maravilhado com sua beleza.
Dia seguinte sai, novamente, à caça da música e do homem de roupas e barbas negras. Na clareira da mata, em uma pequena cuia de cabaça encontrei farinha e um colar de contas feito não com sementes de frutas, mas com um metal frio e brilhante: na ponta do colar havia uma cruz com um homem grudado pelos pés e pelas mãos, chorando sangue de tanta dor: “deve ter sido derrotado por outra tribo que ao invés de matá-lo e enterrá-lo grudaram o guerreiro nesta cruz de madeira”, pensei. Comi a farinha, deixei o colar perto da cuia e fugi novamente.
Aquele dia não mais ouvi sua voz, sua música. Voltei a clareia dia seguinte e só encontrei a cuia vazia e o colar. “Deve ter fugido com medo de mim”, pensei triste. Mais uma ou duas manhãs voltei ansioso par ouvir a música e encontrei apenas a cuia vazia e o colar: um silêncio aterrador dominava a mata e o rio das Mortes: nem mesmo as escandalosas araras berravam seus gritos para chamar seus filhotes.
A quietude e o silêncio era tamanho que se se ouvia os estalos das folhas aquecidos pelo sol quente e o ruído de sua queda até o chão e aquele silêncio de música trouxe uma tristeza grande em minha alma!
Uma madrugada, sol querendo ainda surgir, acordei com o barulho de remos e canoa no rio das Mortes. Pus-me de pé e corri até a praia.
Ainda escuro vi chegando a praia perto da oca uma canoa com uma mulher nua remando e logo mais abaixo, quase no fim da praia, um enorme cavalo vinha chegando, nadando com sua cabeça fora d´água seguida de outra cabeça, de gente, coberta por cabelos negros e com a face repleta de barba negra. A canoa foi chegando à margem e desceu dela, soltando os remos, uma mulher nua: minha mãe. Mais abaixo o cavalo tomou pé e saiu do rio andando: carregava em suas costas o homem com suas roupas negras encharcadas de água.
Fiquei pasmo, estático: mudo, calado, com um medo grande por dentro, sem poder e ter o que pensar. Do alto do cavalo o homem iniciou o seu canto e minha mãe se aproximou a ponto de eu poder ver seus olhos, sua boca, seus negros cabelos cobrindo os seios caídos.
O sol nascia do outro lado do rio.
Minha mãe chorava e chorava. O homem com o cavalo se aproximou e tive medo. Mãe acalmou-me, dizendo para não ter medo e que aquele homem iria me levar para uma outra tribo, para uma outra vida diferente: uma vida com roupas, chapéus, livros e com colares feitos, não de sementes, mas de metal.
Segui, puxando o cavalo pela rédea, direção rio acima por dois dias: o homem no cavalo cantava e assobiava. Minha mãe me ensinava palavras de uma língua estranha que era a do homem de roupas pretas. No terceiro dia de andança chegamos em uma aldeia com as ocas abandonadas. Reconheci a aldeia tribo de minha mãe: seus homens haviam sido derrotados por outros guerreiros e fugido, deixando as ocas vazias. Um cachorro magro e sarnentos veio lamber minhas pernas.
Minha mãe despediu-se de mim.
Continuei puxando a rédea do cavalo com o homem de roupa preta em cima, por luas e mais luas. Enquanto ele cantava eu aprendia as melodias e no início , envergonhado, assobiava, até criar coragem e cantar. Em um certo dia chegamos em um alto de onde via o rio das Mortes se encontrar com um rio enorme, sem fim, cheio de ondas verdes e espumosas que chegavam em uma praia de areia muito branca.
Naquele alto o homem parou junto a uma moita de juçaras e pedras enormes e ordenou que ali eu o aguardasse. Voltou depois de algum tempo e colocou, em mim, uma roupa enorme que cobria minhas pernas, meu sexo, uma outra roupa que cobria todo o meu dorso e pediu que eu deixasse, ali, escondido nas pedras e na moita de juçaras o meu arco e minha flechas.
Chegamos à casa do homem de negro: uma casa em que só havia homens, todos vestidos iguais, de preto e, com eles, aprendi a cantar.
Me tornei quase um deles. Canto, falo sua língua, como farinha no prato e nas festas de seu Deus, no Natal, volto até alto, de onde vejo o rio das Mortes se encontrar com o mar, junto as pedras e a moita de juçaras para visitar meu arco e minhas flechas, que estão cada dia mais velhos, sem brilho, preguiçosos pelo desuso de não caçar e matar pacas no brejo e traíras nas lagoas.
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