O que ocorria é que o fim do mês não chegava....
Compromissos com a família em Ribeirão Preto, o aluguel do quartinho que dividia com Gilberto e os gastos com alimentação e transporte eram superiores ao salário que recebia mensalmente. Assim....
Dona Eulália, uma de nossas professoras no Curso de Especialização em Quinta e Sexta Série, interrompeu a aula por alguns minutos para nos dizer que seu marido estava recrutando pessoas “de bom nível” como o nosso para um trabalho altamente qualificado de vendas.
No sábado de manhã estávamos, uns dez ou mais professores, em um amplo e bonito escritório na Praça da República. Eu havia, muito a contragosto, deixado de ir jogar futebol com o time de uma fábrica de componentes automotivos de Osasco à procura daquela nova fonte de renda.
Desacostumado que estava com reuniões protocolares, com gerentes engravatados, secretárias loiras e bem vestidas me sentia um pouco fora do ninho....mas estava gostando de tudo aquilo: serviram café, bolachinhas, suco de laranja, além de mil e um “sinta-se à vontade, por favor”, “é com orgulho que a XXX Incorporadora o recebe aqui em seu espaço”, “dentro de alguns minutinhos o Dr. Jorge e o Dr. Wanderlei os receberá em nosso auditório...”
Arlete estava linda: maquiada, com um “tailler” rosa de saias muito justas desenhando o corpo perfeito:
- “Nossa, mulher, como você está bonita!”, disse.
- “Estou não...sou!”, respondeu irônica.
- “Escuta Arlete, porque você não vai assim tão linda para o curso?”
- “Você vive mesmo no mundo da lua...temos que amassar argila, cortar e aparar madeiras nas aulas de Trabalhos Manuais e eu lá de saia e blusa, tem cabimento?”
Aceitei suas objeções mas continuei achando que ela deveria ir maravilhosa daquele jeito para o curso: “um desperdício não ir assim tão bonita”, pensava.
Fomos gentilmente convidados por uma das secretárias para a reunião no auditório.
Munidos com microfone, retroprojetor e cartazes coloridos os senhores “doutores” Jorge e Wanderlei nos aguardavam à postos em uma mesa à frente do auditório. Cerimoniosamente, depois das boas vindas, doutor Wanderlei, elegantemente vestido, foi ao cerne da questão:
- “...trabalhamos com uma das mais modernas ferramentas de alavancagem do capitalismo moderno: trata-se da colocação, no mercado de ações, de títulos de projetos futuros de construção do maior parque hoteleiro do Brasil ... e ao proprietário dos títulos ainda o benefício de utilizar, par sua aquisição, parte do débito do Imposto de Renda de sua empresa usufruindo, de maneira inteligente e dentro das normas tributárias, do benefício fiscal da lei ....e atentem para os nossos objetivos: a XXX INCORPORADORA sonha em ter seus papéis na “ualistriti” em futuro breve.”
Enquanto doutor Wanderlei falava, doutor Jorge, o marido da dona Eulália, não tirava os olhos das pernas da Arlete; balofo - com uma barriga enorme teimando em explodir a camisa de linho impecavelmente branca -, sorriso de vendedor no rosto enorme: “gordo sem-vergonha, desgraçado!”, pensava enciumado.
Ao ter a palavra passada pelo doutor Wanderlei, com a voz grave e empostada, doutor Jorge explica o trabalho:
- “Vocês terão o nobre trabalho de contatos, em visitas previamente agendadas por nossas secretárias, para apresentação, aos empresários, do plano de aquisição de nossos títulos de capitalização; ....do total de vendas vocês terão um percentual progressivo de participação que se inicia com um ponto vírgula dois e chega a três pontos percentuais...isto vai garantir, com certeza, uma remuneração infinitamente superior ao que hoje vocês recebem como professores e, melhor ainda, como vocês trabalharão como autônomos, estarão livres de qualquer contabilização e tributos....”
Usava para sua exposição, transparências, gráficos e um entusiasmo ingênuo do tipo: logo, logo todos ficaremos ricos, muito ricos mesmo, com direito a carros novos, teatros, viagens ao exterior...
Ao doutor Wanderlei, coube finalizar a reunião; e o fez cerimoniosamente:
- “Quero muito agradecer o apoio e a participação de vocês em nosso programa e lhes desejar boa sorte neste novo projeto profissional que estão se engajando... Uma última recomendação que minha experiência como empresário me permite propor: procurem “aquecer” a visita que terão com os empresários iniciando a entrevista demonstrando segurança e domínio do assunto em questão; sugiro que logo após os cumprimentos de praxe tomem a iniciativa, iniciando a entrevista de negócios com um “Como o senhor avalia a conjuntura atual? ”; empresários adoram falar a respeito da conjuntura. Estou muito confiante e...assim, mais uma vez, quero agradecer a presença de vocês, que tenham um bom dia e, por favor, sintam-se – sempre - em casa aqui na XXXX INCORPORADORA.”
À saída as elegantes secretárias e o doutor Jorge entregaram a cada um de nós uma pasta com apostilas e prospectos dos títulos de capitalização.
Além da bonita pasta Arlete recebeu – e pior de tudo, para mim - e aceitou o convite para ir almoçar com o doutor Jorge.
Da praça da República fui até a Biblioteca Mário de Andrade, onde depois do empréstimo, por uma semana, do Memórias Póstumas de Brás Cubas, fui à seção de consultas, resolver, de vez, o significado de “CONJUNTURA”; o de “ualistriti” ficaria para depois: minha timidez impedia-me de perguntar, à bibliotecária, a grafia em inglês; mas isto já está resolvido: na segunda falaria com a Helenir, uma colega de curso que se prepara para entrar em Letras-Anglo na USP, e ela resolveria não só apontando a grafia correta desta palavra como traduzindo-a para mim; com “feedback” foi ela que, cordial e gentilmente, me socorreu; além disso, talvez, a Arlete ao me ver confabulando com a Helenir tenha lá uma pontinha de ciúmes, espero....
Acessei um dicionário e anotei na apostila que havia recebido:
CONJUNTURA:
substantivo feminino 1 combinação ou concorrência de acontecimentos ou circunstâncias num dado momento; circunstância, situação Ex.:
Tomei, frente a Mário de Andrade, o 942 – Jaçanã- Cidade Universitária – para voltar para meu quarto, em Pinheiros.
Revi as anotações feitas na Mário de Andrade e agora dominando, claramente, o significado de CONJUNTURA, ia imaginando possíveis respostas para o “como o senhor avalia a conjuntura atual?” :
Sérgio, com certeza, responderia que “a conjuntura está favorável à tomada do poder pelos operários; a vitória, com certeza, virá logo;”
Arlete, belíssima em seu tailler cor de rosa, provavelmente almoçando um contra-filé a cavalo, diria que “a conjuntura está melhorando tanto que não volto mais para o interior.”
E eu?
- Bem, eu....“não sei avaliar como está a tal da conjuntura, aliás, detesto esta palavra, não gosto de títulos de capitalização, não entendo nada de bolsa de valores e não sei mesmo se quero entender...o que quero é ser professor primário...estou muito mais é querendo saber como foi o jogo do nosso time de fábrica contra a Siemens...que porra de conjuntura o que...só quero ser feliz.”
Desci do ônibus na Benedito Calixto e fui para a pensão de uma boliviana onde almoçava. Comida pouca e ruim, a “mistura” de hoje eram duas almôndegas do tamanho de uma bolinha de ping-pong.
E a Arlete lá comendo um contra-filé a cavalo... “será que ela vai ter coragem de pedir dois ovos? E o garçom - paletó branco e gravata borboleta preta – com uma mãos nas costas – cerimonioso - usando duas colheres na outra mão, segurando magicamente o enorme bife e para encher o prato e depois, também com duas colheres em uma só mão colocar as batatas fritas no prato e ela “ para mim basta, obrigado”, para logo depois, corajosa “furar” os ovos com a ponta do garfo e fazer a gema colorir de amarelo-ouro o grosso contra-filé – e não essa bolinha de ping-pong daqui da pensão -... no fim, talvez, fazer uma massinha com o miolo do pão que sobrou e limpar o prato da mistura da gema e a gordura do bife que ficou ...e será que o doutor Jorge não vai deixar deixar, de propósito, cair seu isqueiro no chão só para apanhá-lo e ver por baixo da toalha da mesa as lindas pernas de Arlete? ... “velho gordo desgraçado, casado, deixa em casa a mulher para ficar com sem-vergonhice com moça solteira....”
Chegaram na pensão, onde também almoçavam “por mês” os quatro ou cinco mórmons com suas camisas brancas de manga curta e gravata preta; com certeza eles sabem o que é “ualistriti”. Pergunto para eles o que isso significa? Não...isso é tarefa para a Helenir: vai ser muito melhor. Dona Vitória, a dona da pensão, retira os pratos e olha curiosa par minha pasta com as apostilas. - “O que foi dona Vitória?”, pergunto mal humorado.
- “Mui preciosa”, responde apontando para a pasta.
Os mórmons, levantam a cabeça, deixam de comer e ficam a olhar a pasta...
“Preciosa o que?...merda de pasta”, penso... levanto, dou um seco “tchau” e saio.
Coloco a pasta debaixo de um dos braços enquanto a outra mão procura, nos bolsos da calça, o maço de cigarros “Continental” e o isqueiro BIC; pego um cigarro mas resolvo que só vou acendê-lo na padaria da esquina da João Moura, onde me espera um café bem doce...
Peço o café, acendo um “Continental”, retiro o Memórias da pasta e inicio, ali mesmo no balcão, sua leitura.
Termino o cigarro e o café, enfio o Memórias debaixo do braço, jogo na lixeira da padaria a pesada e “preciosa” pasta e vou-me embora para meu quarto.
- “Que merda de conjuntura o que...”
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