Esta é uma estória que eu quero muito contar. Foi há muito tempo...
Conheci a Rita na Faculdade. Ela era uns dois anos mais adiantada e junto com o Pedro, Isac e o Luís formávamos lá um timinho.
Os tempos eram difíceis. A Universidade, à força, calada pela ditadura militar e a gente por lá. Amigos eram presos, amigos de amigos eram assassinados e uma tristeza grande abatia a todos.
Rita era uma mulher alta, pernas longas, seios pequenos, quadris largos e um rosto grande e doce. Os óculos enormes, sempre presentes, escondiam a miopia de seis graus nos olhos castanhos; a boca era grande, dentes branquíssimos e um sorriso fraterno, nada sensual.
Nos tornamos amigos. Conversávamos muito e, nos penúltimos tempos, o assunto era quase sempre a possível contradição entre a necessidade de uma vida pessoal rica e o engajamento político. Naqueles tempos de então, vivíamos um momento em que vários amigos deixavam de ouvir uma boa música se a mesma não fosse comprometida com “as classes menos favorecidas”. Ir ao Morumbi ver um jogo era “pecado mortal”. Enfim, para grande parte do grupo com o qual nos relacionávamos, tudo teria que estar ligado à causa maior: a revolução.
Com a voz doce de contralto, nossa Rita discordava. Em conversa no Pingão, lá no Arouche, afirmava e reafirmava sua convicção da necessidade de uma vida interior rica, desafiadora e de fraterno compromisso com as pessoas próximas. Isto muito antes da primeira batida de limão, da porção de calabresa e da sempre indecorosa, e sempre aceita, proposta do Pedro de sairmos apressados da mesa, claro que sem pagar. Era Rita que sempre me salvava: enfiava meus braços entre os seus e, assim, de braços dados, segura, me guiava, trêmulo, por entre as mesas. Os passos só deveriam se tornar rápidos já na calçada.
Eu sempre reclamava que, por causa de uma “porcaria” de uma pinga, poderíamos, um bando de barbudos, cair nas mãos do Fleuri como passarinhos. E aí, até provar que as barbas eram apenas para encantar as garotas, haveria um longo e tortuoso processo.
Pouco depois, já ríamos muito e, com o dinheiro economizado pelas pingas tomadas e não pagas, comíamos acarajés, em uma barraca da República.
Uma outra penúltima longa conversa ocorreu entre nós. Havíamos jantado juntos, no bandejão do CRUSP, e não fomos à aula, pois teríamos muito o que falar. O convite para participar da “luta armada” fora formalizado e Rita era dúvida só. Talvez não acreditasse na forma da luta, mas acreditava na sinceridade e honestidade do grupo que a convidara. Conversamos um tempão no seu fusca e foi a primeira vez em que, no toque de mão que tivemos, morria um pouco da amizade para começar a nascer um outro forte sentimento.
Vieram as férias de julho nos afastando por uns dias. Chegou agosto e continuamos a nos ver. A amizade parecia constranger o amor que teimava em nascer.
Um outro encontro, fora do ambiente escolar, aconteceu à noite, em um pequeno bar, no centro. Os convites para participar da luta armada continuavam, suas dúvidas permaneciam. Naquela noite, em nosso encontro, aguardávamos um seu amigo da liderança do grupo que a convidara para a clandestinidade.
Tudo mais ou menos secreto: o grupo confiava, e com razão, em Rita, e ela em mim. Marcos, o seu amigo, aparece e, naquela noite, antes da cerveja que sempre bebia, pede o fusca emprestado para transportar “material” para um outro canto da cidade.
Solidária, Rita entrega os documentos e a chave do fusca e ficamos a conversar, esperando a volta do amigo. Naquele encontro, não nos tocamos. Falamos da vida, dos amigos da escola, falamos mal dos professores, da faculdade, do festival da canção. Já estávamos na terceira guaraná quando volta o Marcos.
Tenso: ele e mais dois companheiros haviam desconfiado que estavam sendo seguidos e resolveram parar e estacionar na Cásper Líbero. Desceram do carro para circular por perto e verificar se realmente havia perigo. No carro estacionado, o “material” a ser transportado. As lanternas acesas do fusca, ou uma possível perseguição, chamou a atenção de policiais e o “material” tão próximo do DOPS atraiu o Fleuri e seus lacaios.
Os documentos haviam ficado no carro.
Perna para quem tem, cada um para um lado. Fui a pé até a Cidade Universitária, onde morava.
Para Rita, agora, duas opções: ser presa e torturada ou a clandestinidade. Escolheu a luta armada e a clandestinidade.
A primeira notícia sua tive uns dois meses depois daquele encontro e com a notícia a possibilidade de revê-la. Tudo teria que ser meticulosamente planejado pelo grupo. A mim caberia comparecer ao encontro, acatando as orientações dadas pelo contato ou, em nome da amizade por Rita e pela sua segurança, emitir um sinal de desistência: no caso, raspar a barba, mas deixar o bigode.
Decidi continuar por lá, com minha barba rala e meus bigodes: queria muito vê-la. Pouco depois, a orientação mudou: o contato me informa que, caso eu quisesse mesmo vê-la, deveria cortar a barba e, mais uma vez, deixar o bigode. Raspei a barba e deixei o bigode. Na biblioteca da escola, onde trabalhava à noite, o contato me dá uma semana para, agora, raspar o bigode.
Raspei.
Chegou o dia. O encontro seria na Vila Prudente. Havia recebido, do contato, informações do local do encontro, do horário e, tenso, esperei os quinze minutos definidos. Nada da Rita. E a ordem era, caso isso ocorresse, sair rapidamente. Eu não deveria, também, seguindo orientação do contato, voltar de lá para o “ponto certo”, ou seja, para onde morava, mas,sim, procurar um outro lugar para passar o resto da tarde e a noite. Aproveitei e fui visitar um amigo lá de Pedregulho, que morava em uma pensão na Penha.
A barba e bigode continuavam raspados.
A turma de amigos da escola se dividia: um lado querendo que eu deixasse a barba crescer e outro lado não. Um lado dizia que eu ficava mais bonito sem barba – a cara do Vandré – e o outro lado dizia que eu deveria, imediatamente, deixar novamente a barba crescer: era assim que um cara de esquerda deveria se “produzir”.
O contato marca um outro encontro: na manhã seguinte, de uma quinta feira, em uma ruazinha lá na Vila Maria. Eu deveria ficar frente a um ponto de ônibus, próximo ao número 467 da tal rua, lendo um exemplar do DIÁRIO DE NOTÍCIAS do dia.
Na hora prevista, da esquina da rua, a uns trinta metros do ponto de ônibus, surge uma mulher alta, óculos escuros, peruca loira cobrindo os ombros, rebolando acintosamente os quadris largos e sacolejando uma enorme bolsa de ráfia. Era Rita: uma perfeita prostituta do baixo meretrício, escandalosa e bela. A instrução era de que eu só deveria segui-la caso ela, na outra calçada, ultrapassasse o ponto de ônibus e me fizesse algum tipo de convite.
Eu ansioso e, apesar de seus passos largos, os trinta metros não passavam nunca. Até que, do outro lado da calçada, de sua voz de contralto, vem um indecoroso convite:
- “Vamos fazer neném, meu amor?”
Eu lá trêmulo, frente à minha tão querida prostituta, querendo correr e abraçá-la, o que, evidentemente, segundo as orientações do contato, nos colocaria em perigo. Assim que ela virou a esquina, acatando as prévias orientações, fui atrás. Como em uma corrida de bastão, seus passos diminuíram o ritmo e os meus, ao contrário, aceleram. Eu deveria, ao abordá-la, fazer uma pergunta que tivesse alguma conexão com o seu convite.
Lá vai:
- “Você topa com camisinha?” Sua resposta – sim ou não - definiria a continuidade, ou não, do encontro.
Ela topou “com camisinha” e coloquei as mãos sobre seus ombros. Era o máximo permitido. Nem a forte e grosseira maquilagem escondeu o rubor em suas faces. Falamos pouco e choramos. Andamos por uns quinze minutos, eu com a mão em seus ombros largos, quando do nada surge um DKW, que pára ao nosso lado, a porta se abre e lá se vai a minha Rita tão querida.
O “aparelho” em São Paulo foi desbaratado e, por uns meses, notícia nenhuma. Soube, depois, que ela estava no Rio.
Um ano já se havia passado após nosso encontro. Seu irmão, um dia, na Universidade, me disse que a possibilidade de sua ida para a França, na semana seguinte, era dada como certa. Passaporte falso já havia sido providenciado e passagem estava comprada. Rita, mesmo contrariada, havia aceito esta opção.
Estava, uns dois dias depois, no escritório, trabalhando, e recebo um telefonema de um amigo: Rita havia sido metralhada no Rio. O aparelho fora desbaratado e, além de Rita, mais dois estudantes guerrilheiros foram assassinados.
Não tinha com quem compartilhar minha dor. Chorei. Dia seguinte, na Folha, uma pequena nota do desbaratamento de “mais” um aparelho, mas não apontava o nome dos mortos.
O enterro se deu na Consolação.
Seu outro irmão, médico cirurgião plástico, a maquiou. Tirou dela toda aquela máscara de prostituta e devolveu-lhe sua verdadeira face: doce e serena. Chorei muito.
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