segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

São Paulo, 1968: primeiras impressões


Impossível não me lembrar da calma silenciosa do Rio Ribeira de Iguape ao transpor, pela ponte Euzébio Matoso, as poluídas e malcheirosas águas do Rio Pinheiros. Passava, diariamente, por ali, no ônibus Luz / Jardim Bonfiglioli, para freqüentar o curso de Especialização em Quinta e Sexta Séries, no Butantã.
Abrindo um parêntese: em 1968, eu já era professor efetivo, com o direito de freqüentar cursos de especialização oferecidos pelo antigo Serviço de Expansão Cultural da Secretaria da Educação na condição de comissionado, o que significava receber normalmente o salário de professor enquanto estudava. Fecha o parêntese.
O curso tinha duas turmas: uma de manhã e outra à tarde - na qual fui matriculado - e era freqüentado por professores primários das mais diferentes regiões do Estado: Valparaizo, Presidente Prudente, Santos, Taubaté, Osasco...A maioria dos participantes era do sexo feminino, claro; na turma da tarde, do sexo masculino, apenas eu e um professor de Osasco, o Sérgio.
Eu conhecia São Paulo apenas de passagem, em minhas idas e vindas de Ribeirão Preto para Registro, e a cidade me fascinava. Ribeirão Preto já havia me educado o suficiente para não mais ficar parado nas calçadas, olhando os “arranha-céus”, e eu já utilizava, sem medo e confortavelmente, elevadores, mesmo aqueles que não possuíam ascensoristas a pilotá-los. E como se isso não bastasse, na elegantíssima Biblioteca Cultural Altino Arantes, frente à Praça XV, a principal de Ribeirão Preto, quase ao lado do Cine Teatro Pedro II, a bibliotecária Adalgisa – inesquecível, tanto pela beleza como pelo rigor na cobrança de eventuais atrasos na entrega dos livros - havia me ensinado o suficiente para que eu pudesse me matricular na Mário de Andrade, que tinha sua seção de empréstimo de livros em uma pequena entrada pela Avenida São Luiz. Bastava, para obter a ficha de “sócio”, uma conta de luz, comprovando o endereço, e, a partir daí, o direito, como na Altino Arantes, a empréstimos, por uma semana, do livro escolhido. E as semelhanças se encerravam por aí: a bibliotecária não tinha a beleza da Adalgisa e foi, creio, responsável pelo estereótipo que, pejorativa e maldosamente, passei a ter das bibliotecárias: empertigadas e com os cabelos encharcados de laquê, para moldá-los ao famoso “o boi voou”...Uma pena, pois o acervo para empréstimos era ótimo, melhor, mesmo, que o da Altino Arantes.
Fui morar em Pinheiros, com um outro professor, de Presidente Prudente, o Gilberto, em um quarto de empregada, no número nove de uma simpática vila com vinte e duas casas.
Foi por ali que comecei a descobrir São Paulo. Impensável, até aquele momento, para mim, morar perto de gente famosa e, por isso, estranhava, assim como aguardava, ansioso, o momento de contar para meu irmão, estar a tão poucos metros do vizinho Nelson Gonçalves, a quem via sempre. E na mesma vila, em outro quarto de empregada, o da casa quinze ou dezesseis, não me lembro ao certo, vivia uma auxiliar de enfermagem do Hospital das Clínicas: era autora de um livro autobiográfico, que relatava, principalmente, seus tempos de prostituição e a luta para sair, ainda jovem e bela, daquela profissão. Li seu livro e nos tornamos amigos.
Assim, meus horizontes iam mudando: as planícies verdes, cobertas pelos bananais, até alcançar a serra, no morro de Votupoca, iam sendo substituídas por prédios e luzes, pela avenida São João, por cinemas e mais cinemas, viadutos, semáforos, pelo Pacaembu, pelo Copan, pela feira de arte na Praça da República... e por muito mais que tudo isso – o ainda desconhecido, à espera do prazer das descobertas que iam sendo feitas, aos poucos, mas diária e constantemente. Foi um repentino salto, do silêncio ao burburinho.
A amizade e o respeito pelo Sérgio, o professor de Osasco, teve início durante as aulas e seus intervalos; sentia que compartilhávamos valores e ideais, e nas discussões que surgiam durante as aulas, ficavam claras suas divergências do restante do grupo. Nessas discussões políticas, Sérgio era incisivo e emitia, sem medo e censura, suas opiniões, o que o colocava, frontal, embora cordialmente, em choque com a maioria do grupo. Procurei por ele no intervalo:
- “Admiro sua perseverança...em meus quatro anos de experiência como professor, admito meu desalento.”
- “Te entendo, e sei que não adianta; também não acredito em uma postura mais engajada dos professores mas ....”
- “Conte com meu apoio, Sérgio...”
- “Acredito mais em um movimento do qual participo em Osasco, com operários”, disse ele. “Lá a coisa tem mais a ver.”
- “Imagino...”
- “Teremos lá uma reunião neste domingo.Topa ir?”
- “Topo.”
Fomos interrompidos por um bando de colegas. Era sexta-feira e vieram nos convidar para ir até o “cu do padre”, beber. Devo ter ficado corado ao ouvir “cu do padre” proferido, em alto e bom som, por uma mulher, porque Sérgio, percebendo, veio em meu socorro: “é um boteco nos” fundos “da Igreja de Pinheiros”, disse ele, sorrindo e carregando forte na pronúncia de “fundos”.
Terminadas as aulas, tomamos um ônibus e fomos para o tal do “cu do padre”. Era um boteco que, soube depois, fazia uma das melhores “batidas” de São Paulo. Dependurados em suas vigas, empoeiradíssimas, havia queijos, garrafas de pinga, salaminhos, garrafas empalhadas de vinho. A lenda era a de que o seu proprietário só eliminaria a poeira quando o Corinthians fosse campeão... “Vai demorar muito”, disse, sarcástico, Sérgio, palmeirense fanático.
No balcão, Arlete cochichou com o rapazinho que fazia as bebidas:
- “Na minha, de abacaxi, você não põe pinga, viu?”
- “A senhora quer com vodka?”
- “Não, menino...quero a minha sem pinga, sem nada, bem docinha.”
E me olhando de soslaio, marota:
- “Detesto ficar zonza.”
Segui sua receita, só que pedi a minha com morangos: mais sensual, pensei.
Arlete era uma linda mulher: alta - com um metro e oitenta, magra, rosto coberto de sardas marrons, cabelos negros, cacheados e fartos.
Sérgio pediu “antes uma purinha, para esquentar”, que foi tomada de um gole só, e me procurou para combinar a reunião de domingo, orientado-me em relação ao ônibus que deveria tomar, onde descer e onde o encontraria. Pediu outra “purinha”, para continuar esquentando, e só depois desta é que pediu batidas: “coisa de mulher, muito doce”, dizia, sempre sorrindo, mas, pelas repetições, gostava muito e não se embriagava fácil.
Arlete e eu ficamos conversando: era do interior e fazia o curso com o objetivo de conseguir vir para São Paulo, pois não suportava mais a vida em sua cidadezinha.
Na porta da pensão em que morava, devo ter exagerado nos carinhos:
- “Estamos em um local público” sussurrou ela.
- “E então...como faremos?”
- “Vamos subir, o pessoal do São Paulo não está aqui hoje.”
A pensão onde morava era próxima do “cu do padre”. Esta pensão, onde ela dividia um quarto com outra professora, prima do dono, tinha como principal cliente o São Paulo Futebol Clube, que alugava a maioria de seus quartos para jogadores que vinham do interior. Naquela sexta-feira, o clube havia viajado para jogar, deixando vazios grande parte dos quartos do andar de cima. Passei, depois daquela sexta-feira, a ver com outros olhos e interesses a coluna de esportes dos jornais.
Na manhã seguinte, acatando decisão da Arlete, tive que sair da pensão bem cedo, por volta das 6h da manhã... Subi, a pé, a Teodoro Sampaio, em direção ao meu quartinho. Diferentemente de outras situações semelhantes, naquela manhã, não senti a menor vontade de confissão do pecado cometido, prenúncio do processo de meu divórcio com a Igreja.
Havia muito sol naquela manhã e, na Teodoro Sampaio, movimento apenas nas padarias: tudo o mais fechado, pouca gente, um ônibus ou outro que subia em direção ao centro. E eu fui caminhando, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, feliz por demais...um sentimento de felicidade tal que me deixava confuso, a ponto de, em certos momentos, não acreditar em tantas e tão boas emoções e fazer um esforço grande para tudo registrar, para de nada esquecer...
Entrei em uma padaria, na esquina da Teodoro com a João Moura, e pedi um pingado e um pão com manteiga na chapa. Veio rápido o leite quente com café bem doce, o pão com a manteiga derramando na bandejinha de alumínio, e me pus a comer, enquanto continuava a viver minha felicidade.
- “Este ano promete”, pensei.

Nenhum comentário: