segunda-feira, 10 de novembro de 2008

CAPRICHO ITALIANO...saudades do José Américo.



Comecemos pelo começo, como dizia meu tio Olímpio.
Assim: minha amizade como o José Américo teve início quando ele “entrou” para o grupo de coroinhas. Antes disso, até pelo pequeno tamanho da cidade onde morávamos, claro que nos víamos e já havíamos até mesmo jogado futebol juntos....mas, amizade mesmo, forte e carinhosa, teve início quando, autorizado pelo Frei Elói, José Américo se juntou aos coroinhas, ou, aos “ajudantes do padre”, como, maldosamente, alguns colegas mais velhos se referiam a nós.
Por ser coroinha há mais tempo, por já saber responder a missa em latim e conhecer todas as diferentes funções dos coroinhas nas diversas liturgias, fui encarregado de ajudá-lo em sua “iniciação”. Nossas “batinas” ficavam, nos fundos da sacristia, presas em ganchos próximos e, assim, a preparação para ajudar a missa, a reza ou uma outra cerimônia religiosa já nos colocava um perto do outro.
Tínhamos por volta de doze ou treze anos e cursávamos a segunda série do antigo Ginásio Estadual.
Das brincadeiras na sacristia, antes e, às vezes, durante e após as cerimônias religiosas, passamos a nos encontrar pelas manhãs - já que, no período da tarde, estávamos na escola - para jogos, caçadas, conversas ou outras estripulias.
José Américo e seu irmão, o Riquinha, eram órfãos de pai e tinham uma irmã, a Ritinha, à época com seus dois anos e pouco, nascida do casamento de sua mãe e seu padrasto. Os dois, José Américo e Riquinha, tinham como obrigação cuidar da Ritinha durante as manhãs. Assim, se íamos nadar no sítio do seu Sílvio lá ia Ritinha conosco...e, mesmo quando íamos nadar no fundo, perigoso e longínquo Poço da Cachoeira, Ritinha dividia as nossas costas, onde, de cavalinho, a transportávamos, e, enquanto dois nadavam, um tinha que ficar a tomar conta da pequena.
Nos treinos do time infantil de futebol, José Américo começava a despontar: jogava na ponta direita e tinha um etilo de jogar alegre, rápido e elegante.
Estranhei a falta de José Américo na reza de uma quarta-feira em que eu e ele estávamos escalados para ajudar o frei Elói. Não foi à escola na quinta, faltou também na sexta e ao treino do “infantil” que tivemos no sábado; a doença que o atacara devia ser mesmo grave, pensei.
Na missa das 6:30h de domingo, sua ausência continuou a pesar: vesti minha batina e fui ajudar a missa. No finalzinho do sermão, Frei Elói, após suas recomendações e louvores de sempre, falou a todos os presentes da visita que fizera ao José Américo, confirmou que era tétano a doença que o acometera e chorou ao repetir o diálogo que tivera com seu coroinha:
- “Frei Elói, será que vou para o céu?”, perguntou José Américo.
- “Você já está no céu, meu filho”, respondeu o padre.
Choramos todos, seus colegas no altar e penso que todos os fiéis que estavam naquela missa.
Frei Elói continuava a sua função de “dizer” a missa, embora não conseguisse conter sua emoção... O “confiteor” foi entremeado de soluços e, na hora da distribuição das hóstias, percebi claramente sua comoção e o sentimento geral de tristeza dos fiéis.
José Américo morreu na terça feira seguinte àquele domingo.
Seu sepultamento foi em Patrocínio Paulista, ao lado de seu pai, que lá estava enterrado, e foi organizada a participação de seus colegas de classe na cerimônia. Fomos, após o almoço, de Pedregulho para Patrocínio Paulista, em um caminhão, todos uniformizados ....
O velório foi na casa de um tio seu e, em fila, todos pudemos render nossa homenagem ao amigo. José Américo estava vestido, como nós, com seu uniforme de calças e camisa caqui e gravata preta. Tinha nas faces uma expressão de muita dor: boca levemente aberta, com os dentes um pouco à mostra, não para apontar seu sorriso permanente, mas, sim, demonstrando a dor que a doença que o acometera lhe causara e a saudade de abandonar, tão cedo, a vida amada.
Na hora do enterro, Jaime, excelente músico, estava a postos, com seu trompete, naquele dia, enfeitado com um lenço preto, em sinal de luto.
O sol se preparava para se por quando o caixão foi baixado à terra. Jaime empunha o trompete e inicia o toque, o rosto vermelho pelo esforço que a melodia exigia e as bochechas enormes cheias de ar, impingindo a todo o cemitério o som de uma melodia triste, linda, inesquecível.
Nos dias seguintes, no Ginásio, todos nós a assobiávamos ou a reproduzíamos, em “bocacuse” ...
E os anos se foram...
A melodia continuava gravada em minha mente, cheia de emoções, embora , muitas vezes, quando tentava assobiá-la, não me recordava.
Já casado, ganhei, em uma festa de amigo secreto de final de ano, um LP do Tchaikovsky, que, além da Patética, sua sinfonia número seis, continha a abertura do Romeu e Julieta e o Capricho Italiano. Conhecia e gostava muito da Patética, já tinha ouvido a abertura do Romeu e Julieta e não conhecia o Capricho.
No dia seguinte, minha surpresa e emoção, ao ouvir o Capricho: o início da peça me levou de volta a Patrocínio Paulista, ao enterro, ao amigo, à volta do enterro para Pedregulho, no caminhão, pelas estradas empoeiradas, em uma noite sem lua, muito escura. Era a melodia que Jaime havia tocado no enterro do José Américo
Contei a história à minha mulher, que chorou. Choramos...

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Em uma recente tarde de sábado, segui rumo para um dos meus programas favoritos: um concerto na Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Integrando o programa, como peça de abertura, o Capricho Italiano, de Pjotr I. Tchaikovsky.
Já imaginava as emoções, saudades e paisagens que o Capricho me traria naquela tarde de concerto. Assim, me preparei, com o peito aberto, para voltar a ouvir o trompete do Jaime, em Patrocínio Paulista, jogar futebol com o José Américo, ouvir sua gargalhada após as travessuras que, juntos aprontávamos, rever seus dentes, em seu sorriso alegre e mostrando tanta dor no dia de sua morte. A melodia do trompete, que tanto me emociona, dá início ao concerto daquela tarde.
Estava, ainda, remoendo essas emoções quando tem início a peça seguinte e seu início me lembra um sino a tocar: dém ...dém...plém...plém...
Instantaneamente, surge outra história.
Na igreja de Pedregulho, onde éramos coroinhas, havia dois sinos em sua torre. Um deles, chamava os fiéis para cerimônias mais simples, como a missa das seis, as rezas noturnas e os “benzimentos” de defuntos. Cada uma dessas cerimônias exigia, claro, um ritmo e um badalar, e o manejo desse sino era fácil e leve porque a corda que o acionava estava diretamente ligada ao pêndulo. O outro, anunciava cerimônias menos triviais, como a missa das nove, aos domingos, ou a missa do galo no final do ano, e era de difícil manejo; suas badaladas eram originárias do giro que o mesmo tinha que dar sobre si mesmo, o que exigia muita força física para fazê-lo badalar. Os coroinhas menores, eu e o José Américo entre eles, não tinham força e nem autorização para fazê-lo.
José Américo resolveu, então, inovar. Assim como renovava o futebol com seus dribles fáceis e desconcertantes, na ponta direita, resolveu que poderíamos, tanto ele como eu, tocar aquele pesado sino de cerimônias mais complexas. Na ponta da corda daquele sino, havia um pequeno pedaço de madeira, que servia de apoio para as mãos, e a inovação deu-se aí: ao invés de apoiar as mãos, José Américo montou na madeira, foi até uma escada lateral, apoiou-se nos degraus e, como em um balanço, soltou o corpo e, gostosa e sorridentemente, ia e vinha pelo ar, com o sino tocando a todo vapor.
Acabou-se, ali, naquela manhã, convidando os fiéis para a missa das nove, a inveja que tínhamos do Ataliba, do Dutra, do Lúcio, os quais, até aquele momento, eram os únicos, do grupo de coroinhas, autorizados e capazes de tocar aquele sino.
Frei Elói só estranhou o ritmo...Como o sino era muito pesado, quando normalmente tocado, as primeiras badaladas tinham um ritmo lento e continuavam, em um crescendo, até que o seu embalo o tornava mais leve. Só a partir daí é que o dém...de...lê...lem...mantinha-se constante até o seu pesado término.
Naquela manhã, o dém...de...lê...lem...já iniciou rápido, em um delicioso “alegro”.
Assim, quando estava ainda a me recompor do Capricho, vem lá uma outra avalanche de emoções, de recordações da infância e do amigo querido.
Casualmente, naquele mesmo fim de semana, a casa estava repleta, com a família reunida: minha mulher, nossas duas filhas, seus companheiros e nosso netinho. Na manhã de domingo, após o café, coloco o Capricho Italiano no CD player e conto a todos a história do José Américo e da emoção que havia sentido, mais uma vez, no concerto do dia anterior. Choramos todos, sob o olhar de pouca compreensão do pequeno Antônio, agora com a idade que tinha a Ritinha àquela época, e que, de forma simples e graciosamente infantil, resolveu nos consolar:
- “Não chóia...mamãe tá aqui.”

4 comentários:

Morales disse...

Orlando...mais uma vez você conta uma história comovente. E agora com uma trilha sonora maravilhosa.

Uma grande homenagem ao seu amigo de infância José Américo. Estou aqui escrevendo esse comentário e ouvindo(e vendo) no Youtube a Peninsula Youth Orchestra tocar Capriccio Italien e quase indo às lágrimas!
URL: http://tinyurl.com/66wyzk

Anônimo disse...

Olá Tonhão,
Bom dia!
Pois é: o Zé Américo, foi, realmente, um bom amigo e deixou saudades! Aproveitei sua dica e, apesar do som horroroso de meu micro, ouvi e vi o Capricho com a Peninsula Youth Orchestra.

poesia potiguar disse...

Nossa, chorei aqui também... Posso imaginar Zé Américo brincando, jogando bola, tocando sino... Como é mágica a capacidade de um texto em nos transportar até universos e pessoas as quais não conhecemos...
Obrigada pela viagem, Orlando. Obrigada, sobretudo, por me apresentar seu amigo tão querido e cheio de vida.

Abraços!

Orlando disse...

Oi Goimar,
Pois é: com certeza o Zé Américo fica feliz com mais uma amiga.
Abração forte!
Orlando