sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A HISTÓRIA DE JURANDIR SEREBURÃ -II -DO OUTRO LADO DO RIO

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Acordei do outro lado do rio.

Cabeça encostada aos joelhos, um braço sob o corpo e outro protegendo os olhos, todo redondo, curvado como um tatu-bola; olhei em volta, desconfiado, com os olhos sujos de remela.

Vi o outro lado do rio, longe, longe as ocas da tribo de minha mãe. A pequena praia de areia branca do outro lado estava vazia dos corpos dos homens que, sempre de manhã, iam lá banhar-se: estavam longe à procura de caças para as festas do Hö.

Continuei enrolado no buraco de areia, meio acordado e não querendo, de medo, acordar de vez.

Por fim o sol aqueceu forte minhas costas e resolvi abrir os olhos de vez. Não sabia se ia à prainha, tão perto, tomar o banho da manhã ou se ficava ali quieto esperando que, a qualquer momento, uma piroga atravessasse o rio à minha busca.

Foi todo um dia de angustiante espera. Nem mesmo a sombra da árvore com araticuns maduros que matavam a minha fome me davam descanso: pegava uma fruta e corria para a beira do rio, levando comigo seu perfume forte, esperando e olhando a outra margem vendo se enxergava a piroga que não aparecia.

Comi araticum, ananás, bacupari e cambucá. Sempre assim: colhia a fruta e corria para na praia esperando a piroga.

Chorei quase o dia todo.

Ao final do dia cortei folhas de buriti e montei uma pequena oca onde dormi todas as noites daquela primeira lua que passei do outro lado do rio: só, isolado e choroso. Meus dias eram dias de angústia e de espera: a todo momento vigiava as margens na esperança de uma piroga que me levasse de volta para o outro lado.

Em um destes dias, para melhor enxergar todo o rio, subi em uma árvore de babaçu; era uma árvore que de tão grande chegava perto das nuvens e ficava muito acima das copas das outras árvores que moravam na margem do Rio das Mortes. Subi até o seu alto e de lá, quase chegando nas nuvens, olhando a outra margem e sem enxergar nenhuma piroga atravessando o rio a minha procura, foi que me lembrei, e fiquei temeroso, da história da moça- estrela.

Vou contar a história da moça-estrela. Um pequeno rapaz índio, dos tempos em que não havia Hö, subiu em um buriti e lá no alto de suas folhas encontrou uma linda jovem; os dois, encantados cada um pelo outro, desceram para a terra e, na esteira das folhas do buriti, fizeram amor. Gostaram tanto de fazer amor, e achando que era melhor se amar do que voltar para suas famílias, que o indiozinho e a moça-estrela resolveram não retornar para suas famílias.

Quando os pais do indiozinho deram por sua falta mandaram um seu irmão menor procurar o jovem enamorado. Seu irmão o encontrou com a moça- estrela, nas esteiras de buriti, se abraçando, sem querer voltar para casa. Seu irmão retornou para casa e contou o que viu aos seus aos pais que, dia seguinte, saíram a sua procura. Chegando ao local encontraram apenas o indiozinho sem a moça-estrela; Interrogado negou que estivesse com alguém, mas, mesmo assim, foi obrigado a voltar para junto de seus pais. Dia seguinte, chamou o irmão e pediu que o mesmo pegasse uma borduna para ir com ele para à floresta buscar embira. Caminharam, caminharam até achar uma palmeira, que no alto de suas folhas, se encontrava deitada a moça-estrela.

Então ele ordenou ao irmão:

- “Não olhe para cima. Pegue a borduna e vá batendo com força no tronco desta palmeira e, ao mesmo tempo, vá cantando “aiwede pana, aiwede pana” que significa “cresce árvore, cresce arvore.”

Enquanto o irmão batia no tronco da palmeira com a borduna o mais velho subiu até alcançar a moça-estrela. E o irmão bateu, bateu, bateu e cantou e cantou e a palmeira cresceu, cresceu, passou as nuvens e chegou ao teto do mundo. E foi lá, no outro mundo, que seu irmão amou, criou família e passou a viver..

E naquele dia em que subi na árvore de babaçu para vigiar o rio, quando estava lá no seu alto, tudo vendo, enxergando até o infinito da selva, foi que tive um grande medo: “e se a árvore resolver crescer, crescer...” e, com medo, desci rápido, escorregando pelas folhas e galhos da árvore de babaçu e corri para a margem do rio onde continuei a vigiar e a vigiar para ver se alguma piroga chegava até a margem do lado de cá do Rio das Mortes.

Em uma manhã, já em outra lua, acordei com barulhos e sons na outra margem. Eram os adultos que haviam voltado da caça para a cerimônia do Hö. Apenas adultos se banhavam e cantavam canções para a festa do Hö: os indiozinhos já se encontravam reclusos na oca especial para cerimônia.

Tive, então, naquela manhã, uma vontade grande de subir até o alto da árvore de babaçu.

Subi até o seu mais alto galho de onde tudo se via. E, lá no alto, perto das nuvens, me peguei olhando para o outro lado, para o cerrado e não mais para os lados da aldeia de minha mãe. Lembrei-me outra vez da história da moça-estrela mas não tive medo de que a árvore resolvesse começar a crescer e a crescer : “se ela crescer eu me encontro com a moça-estrela” e tive grandes desejos de mulher. Fiquei um tempão no alto do babaçu sonhando e vendo meu corpo que se iniciava a ser corpo de homem guerreiro.

Desci do babaçu e fui para o cerrado.

Lá encontrei moitas e mais moitas de canela de ema: retirei as suas bolotinhas que ficaram depois da florada e levei para perto da margem. Recolhi galhos e folhas bem secas de buriti e preparei uma pequena fogueira: coloquei no alto as bolotinhas de canela de ema para quando o sol ficasse bem quente aquecesse as bolotas oleosas da canela de ema, estourando-as e fazendo surgir o fogo.

E foi assim que fiz a fogueira e que depois mantive acesa usando grossos tocos de angico que achei junto à margem e à beira do cerrado.

Fiz armadilhas para caçar pacas e matei, a flechada, uma traíra que encontrei em uma lagoa que margeava o Rio das Mortes.

Era a lua do meu Hö.

E eu, solitário, resolvi que minha vida não estava do outro lado do rio.

Estava onde então?

Eu não sabia.

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