quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A HISTÓRIA DE JURANDIR SEREBURÃ - I - A INFÂNCIA

2009 Caminho da fé 065RETOC

“e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não índios, não europeus e não negros, que eles se veem forçados a criar a sua própria identidade étnica: a brasileira.” Ribeiro Darcy, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”, Cia. Das Letras, 2006. Pag. 118.

Então, o meu nome, quero dizer, o nome que, mais tarde, os padres resolveram me colocar é esse: Jurandir Sereburá. De antes disso era arãrãre, que significa beija flor, e eu era chamado assim por culpa de ser muito pequeno, preguiçoso de crescer e muito quieto, silencioso de conversas.

Assim que eu nasci, e, pequeno até os dez ou doze anos, não tinha nome, nem pai. Sem pai, órfão, vivi toda minha vida: agora não reclamo mais, acostumei-me.

Foi assim: minha mãe, em um ano em que faltou comida na aldeia, saiu a procura de coco de babaçu e enxergou um branco português que estava pondo fogo no mato para fazer roça de milho; o português mostrou farinha e uma faca para minha mãe.

Mais tarde minha mãe me contou que estranhou muito o corpo do português: todo peludo, inclusive nas pernas, parecendo uma emboaba, e quase não se via o sexo de tanto cabelo nas partes de baixo. Quando voltou para a aldeia com farinha na cuia, uma faca nas mãos e comigo na barriga, os maiores da aldeia obrigaram que ela, antes de fazer comida, lavasse as mãos.

Mãe contou que durante toda a semana que havia encontado o português e trazido farinha e faca para casa procurou e procurou seu marido mas só encontrava a rede vazia: marido estava na rede de sua outra mulher. Nas outras noites seguintes minha mãe também procurou a rede, que continuava vazia de homem, só com seu cheiro, até que uma noite encontrou um sapo morto com a boca e o anus costurados, significando, com isso, que minha mãe só seria aceita na rede depois do primeiro sangramento. As luas se passaram e o sangramento não veio.

Então minha mãe pegava a cuia e ia até a roça do português buscar farinha.

E sua barriga cresceu e cresceu: eu, lá dentro, na quentura úmida de seu ventre, ouvia seu cantar e seus choros. Quando foi o tempo, em uma noite de lua cheia, ela foi até a beira do rio e eu nasci.

Por não ter pai cresci separado dos outros filhos de minha mãe.

Foi então que foi chegando os tempos do Hö que é a época da iniciação, em que os meninos são separados para a cerimônia, vivem reclusos por uns tempos, furam as orelhas para se tornarem guerreiros.

Como eu não tinha pai não tinha quem me orientasse nas feituras das flechas de tucum, negras e finas para se pescar peixes no bravo e correntozo rio e também ninguém para pintar meu corpo com urucum e carvão para as cerimônias do Ho.

Eu chorava por isso.

Mesmo assim, aprendi a fabricar flechas de tucum. Aprendi com outros meninos da tribo que tinham aprendido com seus pais: como que eu era excelente atirador e caçador os meninos sempre me convidavam para ir até a mata, à beira do rio buscar tucum para as flechas e matar pássaros e cotias que eram trazidos para juntar às farinhas de nossas refeições.

Uma noite na rede minha mãe me disse que a cerimônia do Ho estava para se iniciar: uma ou duas luas apenas e que assim, logo os guerreiros sairiam todos à caça de antas e capivaras para serem assadas nas festas do Ho. Passou uma lua e a tribo acordou um dia sem os seus guerreiros: apenas com as mulheres, velhos e crianças.

E foi nestes dias com a tribo só com os velhos, mulheres e crianças que o avô de meus irmãos chamou a todos, e eu também, para atravessar o rio de canoa: era hora de aprender a flechar dourados e mandis. Fiquei feliz e contente porque eu só podia ir junto com os meninos de minha idade em suas caçadas e pescarias quando não ia nenhum adulto. Mas naquele dia fui colocado na ponta da canoa, que atravessou o rio largo e fundo, cheio de piranhas e outros seres que à noite saiam de dentro das águas para roubar as roças de mandioca.

Eu sorria um riso de total felicidade e não entendia bem porque minha mãe chorava tanto e tanto com minha viagem de canoa até o outro lado do rio para aprender a matar dourados e mandis com flechadas de tucum para a festa do Ho.

E a piroga, remada pelo avô de meus irmãos, ia vencendo as fortes correntezas do rio das Mortes; quando foi chegando no outro lado do rio o velho remador abriu sua enorme boca sem dentes, lingua negra de tanto mascar fumo de corda e berrou:

- “Pule, pule da canoa, que já chegamos”, e eu saltei e corri com a água nas canelas para a margem cheia de areia branca.

E vi que a canoa voltava para a outra margem.

Fiquei só e com medo.

Chegou a noite e o medo aumentou: chorava por minha mãe, por uma rede que do seu alto me aliviasse dos perigos das cobras e de outros bichos que deveriam morar por ali do outro lado do rio.

Ao escurecer deitei na areia e imitei os cachorros da aldeia que se enrolavam , se enrolavam fazendo, com o corpo, um buraco na terra e lá dormiam. Fiz assim, igual: fingi de ser cachorro para não ter medo dos bichos e nem da escuridão.

E dormi.

O dia clareou com o sol iluminando primeiro o outro lado do rio e as ocas da tribo de minha mãe, os matos e só chegou um pouco depois aqui do outro lado e me esquentou.

E eu só, do outro lado do rio, com meus medos, minhas flechas de tucum, meu arco e a faca que minha mãe havia trazido junto com a cuia de farinha oferecida pelo homem branco quer punha fogo no mato para fazer roça.

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