quinta-feira, 9 de junho de 2011
O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS -2- ALBERGUES
Vou contar um pouco dos albergues do Caminho de Santiago.
Antes, como sempre, um pequeno intróito.
Em minhas andanças no Brasil, tanto no Caminho da Fé como no da Luz, a única experiência de dormir em albergue foi no Caminho da Fé: um charmoso e confortável albergue em Águas da Prata. Fiquei lá por duas vezes, mas em situações completamente diferente das encontradas nos albergues em que me alojei no caminho de Santiago. A primeira vez que fiquei alojado no Caminho da Fé, em Águas da Prata, estávamos em uns quatro ou cinco andarilhos, o que significa que o número de albergados era inferior ao número de quartos; sim: eu disse que o número de albergados era menor que o número de quartos e não de camas, veja bem. Na segunda vez, melhor ainda, já em um novo albergue, havia apenas eu; dormi só e fui orientado em onde esconder a chave do imenso casarão quando saísse na manhã seguinte.
No Caminho da Luz não há albergues. Em ambos os caminhos que eu havia feito - Caminho da Fé e da Luz – os pernoites são em pequenos hotéis, pousadas e mesmo casas de família em tudo diferente dos albergues que, por uns quarenta e tantos dias, freqüentei na aventura de andanças pelo Caminho de Santiago de Compostela.
Vamos então aos albergues do Caminho de Santiago.
E começarei pelo início: St. Jean Pied de Port.
No Escritório de Turismo da pequena cidade, serviço da prefeitura local, veio a informação: o albergue municipal estava lotado; além de uma série de recomendações no que diz respeito à subida e descida dos Pirineus, prevista para o dia seguinte, uma concha de vieira –símbolo do caminho - foi oferecida junto a uma lista com endereço de albergues privados. Com a concha da vieira devidamente amarrada à mochila e a lista na mão se inicia a busca de um albergue para o pernoite.
E veio o primeiro: em um sobradinho minúsculo, subia-se pela escada onde se encontrava um quartinho retangular, com mais ou menos uns três metros de largura por uns seis ou sete de comprimento, no qual havia seis camas: quatro em dois beliches colocados junto a parede da esquerda e mais duas em outro beliche junto à parede em que havia a porta de entrada. Apertadíssimo e os beliches, de estrutura de ferro rangiam ruidosamente quando suas escadas eram utilizadas para acessar aos leitos que estavam acima. A mim coube uma cama no alto.
Deixei a mochila, como os outros andarilhos, perto da porta e, enquanto arrumava o saco de dormir sobre o colchão, matutava: e como fazer para trocar de roupa, me despir no alto de cama tão pequena e ruidosa, meio a gentes desconhecidas, falando línguas que não domino?
E a vida no albergue começou.
Um casal bastante jovem, que chegara pouco antes, começa a se despir. E o rapaz, mais rápido, só de cueca, perambulava pelo quarto: ia da cama à mochila, fuçava na mochila e ia ao banheiro localizado fora do quarto, do banheiro voltava à mochila e da mochila à sua cama. Nestas andanças, sempre que podia falava, em um idioma que eu não entendia, com sua companheira e trocavam agrados, como se aquele quartinho minúsculo fosse só dos dois e que ninguém mais houvesse por lá.
E eu, trepado no alto da cama, em dúvidas existenciais: desço daqui e tomo coragem de me despir para o banho? Não, o melhor seria ir de roupa até o banheiro, banhar-me, voltar de roupa e me trocar aqui no alto. Mas esta será uma operação difícil: para subir na cama, barulheira infernal dos ferros do beliche e no alto de tão diminuta cama não será fácil me ajeitar para trocar de roupa, ajeitar o saco de dormir, por para secar a fralda que levei para servir de toalha...
Desço da cama, ainda em dúvida, quando a companheira do rapaz de cueca começa a se despir: a loira e alta moça estava a meio metro e de frente para mim, mas como se eu não existisse, começa a se despir: tira o agasalho e joga em sua cama, tira a blusa e as calças e coloca sobre sua mochila e, como seu companheiro, inicia o desfile de calcinha e soutien, como se nada houvesse naquele quarto a não ser os dois. Aproveitam para, nos esbarrões impossíveis de ser evitado – dado a exigüidade do corredor –, trocar carícias e chamegos.
Eu estático!
Tiro a roupa aqui ou no banheiro?
Resolvo que vou me despir e, todo corajoso, saio do quarto de cuecas e vou assim, meio desnudo, até o banheiro; mas e se a dona do albergue estiver na sala? Vai me ver só de cueca: ficará brava? Acho mais conveniente ir de calças.
Ao final resolvo: vou de cueca.
Vestido de cueca e sandália, protegido com a fralda que seria minha toalha por estes quarenta dias, crio coragem e saio rígido e duro pelo quarto em direção ao banheiro: coragem nenhuma nem mesmo para olhar para os lados; cai o sabonete quando havia alcançado a porta e penso, seriamente, em deixá-lo por lá mesmo.
No banheiro o doce alívio de fechar a porta, sentir-me trancado, sem olhos a me vigiar – como se houvesse olhos e interesse a me vigiar -; ossos, costelas, pernas à mostra, que vergonha! Mas o banho aumentou minha coragem: voltei para a cama menos rígido, vesti-me e saí à procura de um local pra jantar.
E chega de ficar contando das vergonhas.
No Caminho há albergues e albergues!
Alguns com camas muito próximas; outros com espaços maiores entre as camas, oferecendo um espaço maior para, principalmente no escuro das manhãs, ajeitar as coisas na mochila, sem incomodar os vizinhos.
Via de regra o “regimento” dos albergues são parecidos, assim como o valor do pernoite, quando não são gratuitos. Em sua grande maioria há tanques para lavar roupas, varais para secar assim como, pagando dois euros, máquinas de lavar e, por mais três euros, máquinas de secar: valores cuja única forma de burlar era rateá-lo entre três ou mais peregrinos que, cooperativamente, juntavam suas roupas para lavar e secar.
Em todos os albergues do Caminho uma mesma orientação: não se é permitido ficar no albergue por mais que uma noite, a não ser em casos extremamente excepcionais - orientação médica para repouso face a inflamações nos joelhos, pernas, acidentes ou outras doenças - e também a ordem de prioridade de pernoitar: primeiro os caminhantes com suas mochilas, depois os caminhantes que usam serviços de transporte de mochilas, depois os ciclistas e só depois os que fazem o caminho de ônibus ou carro.
No início da caminhada, nas conversas iniciais entre os diferentes albergados havia, quase sempre, uma preocupação em relação ao ronco noturno.
Uma jovem romena, se não me engano em Zubiri, perguntou-me se eu roncava. Percebi, naquela hora que jamais tinha ouvido o verbo “to snore”. Respondi um pouco mal humorado que eu não ouço meu ronco enquanto durmo, mas que minha mulher sempre diz que ronco. “Então, devo roncar.”, disse.
E me pus a pensar: já havia aprendido que “bocadillo” é sanduíche, “jubilado” é aposentado e que “to snore” é roncar.
Grandes progressos: caminhar também é cultura.
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2 comentários:
É bom ter um amigo que sabe contar histórias. Quando ele as conta está contando as histórias de muitos outros que não têm esse toque de graça ou "el duende", como dizem os espanhóis. É um prazer recordar em suas histórias as minhas. Aguardo os próximos capítulos da série Peregrino de Santiago. Abraços, Pablo
Grande amigo Pablo,
Melhor que caminhar é caminhar tendo você como companheiro. Sua companhia é sempre, para mim,exttremamente agradável e estimulante. Então, caro amigo, estas histórias que ando contando do Caminho, são na verdade, histórias que construimos juntos em nossa caminhada. São, então, tão suas quanto minhas.
Abraço "peregrino" e "Bom Caminho".
Orlando.
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