quarta-feira, 15 de junho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS - 3 - O ESTOURO DA BOIADA

DSC03981







Mas, me conte: como e quando é que ocorre o estouro da boiada?



Sabe-se lá, de repente, muito de repente, ou é um galho de árvore que, com a força do vento, balança mais forte, ou é uma codorna que, assustada, levanta um repentino vôo ou é nada mesmo que assusta um garrote que vira de lado e, medroso, desembesta a correr. Para que lado corre? Para onde Deus, e não o homem, manda. E toda a boiada vai atrás, desviando da rota, se enfiando em desconhecidas capoeiras, riachos, deixando os boiadeiros e seus cavalos e cachorros cansados com a lida de reacomodar a boiada no rumo certo.


Com pessoas é a mesma coisa.


Vou contar.


Cheguei a Logroño, uma cidade com mais de cem mil habitantes, no sétimo dia de caminhada. A sinalização do Caminho para encontrar albergues ou centros de orientação ao peregrino nas cidades maiores, como Logroño, deixa a desejar. Foi também, e isso é um mero acaso, naquele dia que encontrei uma das poucas informações erradas em minha Bíblia, o guia “El camino de Santiago em tu mochila”: o Albergue Municipal, sempre preferido, não estava fechado como informava erroneamente o guia, mas isso não tem importância para o entendimento da história, e estou contando mais por desabafo, penso. Aproveito, então para falar: uma coisa é você desviar-se da rota no início do dia, perder-se logo de manhãzinha, ir para o leste em vez de ir para o sul, e por isso, ter que andar um ou dois quilômetros a mais; se é logo cedo, de manhã, como disse, não afeta muito o corpo nem o humor, mas errar e, por isso, ter que andar mesmo que seja uns quinhentos metros depois de ter percorrido 29 quilômetros – distância entre Los Arcos, onde me encontrava a Logroño - afeta, e muito, o humor, o corpo, as penas, e as costas sob o peso da mochila. E foi o que ocorreu naquela tarde em Logroño: buscando um albergue privado, baseado na informação que o Municipal só abriria em maio, fui até o Centro de Orientação ao Peregrino. E lá, fico sabendo: o Municipal, face o feriado da Semana Santa, antecipou sua abertura e havia vagas no mesmo. Eu havia passado em frente o Albergue Municipal, que julgava fechado, e sabia que estava distante, mas não tinha o que fazer: caminho do Centro de Orientação ao Peregrino ao Albergue Municipal, onde me banho, e esquecido do cansaço e do mau humor, pernas para que se tem: saio para conhecer a cidade.


E é só aqui que começa, mesmo, a história.


Estávamos, eu e um bando de peregrinos, em um elegante bar, eu a tomar um duplo café com leite, quando, do nada, como o vôo da codorna que assusta o garrote no estouro da boiada, vem a informação: “todos os cafés, bares e restaurantes, estarão fechados amanhã e depois, com certeza, por ser quinta e sexta-feira santa”. Será? Pouco depois: não serão apenas os restaurantes e bares, mas também os pequenos quiosques que servem deliciosos cafés e saborosos “bocadilos” estarão fechados, e estes até no sábado. Será, mesmo? Não posso acreditar. Sim, e também albergues privados menores: o povo espanhol é muito católico e respeitam por demais a semana santa. Estamos fritos!


- “Não: vamos nos precaver e comprar alimento para estes dois dias”, diz em alta e boa voz um velho “garrote” holandês.


Para não chatear e encompridar demais a história: acompanhado de um grupo de peregrinos, quando dei por mim, estava em uma loja de uma rede de supermercados com uma cesta nas mãos escolhendo e acondicionando pão de forma, queijo, frutas secas...Como já disse, repito aqui: o pão da Espanha é simplesmente delicioso: casca grossa, miolo úmido, enfim, o tipo de pão que me agrada. E eu enchendo a cesta com pão de forma branco, mole, provavelmente com o mesmo “sem-gosto” dos que, vez ou outra, como por aqui. E a boiada sem rumo, verdadeira torre de Babel a todo vapor: E este queijo que você comprou, será que não azeda? Levo outro queijo? As frutas secas estão muito caras? Pode-me dizer o que é maiz? Vou levar uma pequena garrafa de vinho para o jantar. E eu, quantas Coca light? E o peso da mochila? Peso não é nada: será que cabe na mochila tanta provisão? Cabe não, e o recurso será levar uma sacola com as comidas na mão.


E eu, parado no meio da loja do Supermercado, com uma pesada cesta cheia de provisões para dois dias, dei por mim que o que estava “pesando” mesmo em todo o meu ser era o pão de forma: aborrecia-me, e muito, ficar dois dias comendo pão de forma. Detesto pão de forma, ou como reclama o netinho Antônio quando se vê forçado a comer o que não gosta: “eu odeio couve-flor e amo lingüiça”. Então eu odeio pão de forma.


E foi aquele pão branco, provavelmente inodoro, sem sabor que me põe a pensar: o guia “El camino de Santiago em tu mochila”, minha Bíblia nesta caminhada, tão meticuloso, com certeza, informaria de possíveis “feriados” nos quais os albergues, restaurantes e quiosques teriam o hábito de fechar; e mais ainda, pensava de olho naquele pão branco, neste mundo de hoje em dia, com internet, comunicação “on line” caso situações como esta tivessem ocorrido nos anos anteriores todo mundo saberia.


E, como se desse ma marcha ré no corpo, vou recolhendo toda a provisão da cesta e devolvendo nas respectivas prateleiras. O último a ser devolvido foi o pão de forma: coloquei-o em seu leito e, agradecido, saí do supermercado sob o olhar curioso de alguns peregrinos.


- “Ei, senhor brasileiro, desistiu de comprar aqui? Está achando caro, é isso?”, pergunta o australiano.


A vontade era responder que eu não ia “levar merda de pão nenhum”, mas fui educado:


- “Olha, eu vou arriscar e torcer para que nem todos os bares e quiosques estejam fechados.”


Voltei para o elegante bar e se pudesse beber, teria bebido uma dúzia de garrafas de vinho, ou de cerveja, ou de vodka.


Tomei mais dois cafés com leite. O que fazer?


Dia seguinte encontrei quiosques, albergues, restaurantes e bares abertos: aproveitei e comi, no café da manhã, um enorme pão, casca dura e miolo úmido, com presunto cru.


E foi só este estouro da boiada que teve no caminho?


Não teve mais.


O Guia, sempre o Guia, recomenda que se leve fronhas para cobrir os travesseiros nos albergues tendo em vista piolhos e percevejos.


Contando melhor.


Na maioria dos albergues municipais é oferecido um lençol e uma fronha, descartáveis, feitos de um tecido semelhante àqueles que cobrem as camas de consultórios médicos e é sobre o colchão e travesseiro devidamente “embrulhados” que se ajeita o saco de dormir.


Nos albergues não oferece o protetor de colchão e travesseiro o saco de dormir é colocado diretamente sobre o mesmo. E é ocaso do Albergue Paroquial Apóstol Santiago, do povoado El Acebo, uma pequena vila com trinta e sete habitantes. Pois foi neste albergue, localizado ao lado de uma medieval igreja de pedra, que ocorreu o segundo estouro da boiada. No banheiro havia um quadro ilustrativo informando dos perigos e dos cuidados a se tomar no que diz respeito aos percevejos e piolhos: entre outros cuidados, verificar possíveis manchas de sangue no colchão.


Fui um dos primeiros da fila para alojar, seguido de um grupo de franceses. Eu, de banho tomado, estava me preparando para lavar roupa e depois passear pelo povoado quando um dos franceses foi ao banheiro, viu o quadro ilustrativo e “resolveu’’ que o albergue estava lotado de percevejos. Foi o vôo da codorna. Apressado, nervoso, saiu a procura de transporte, conseguiu, segundo ele uma Van com capacidade para nove pessoas e, literalmente, comandou uma verdadeira evasão de franceses do albergue. Partiram rumo a Rabanal Del Camino.


- “Vamos brasileiro?”


Não fui.


Ao fim do dia, na singela igreja medieval, houve uma cerimônia litúrgica, realizada pelos monges do Monastério Benedictino de San Salvador Del Monte Irago, com convite aos albergados para participar.


Canto gregoriano em uma igreja medieval é o que se pode chamar de alimento para a alma. O coro de monges, liderado por um jovem com voz levemente contralto, quebrou o silêncio sepulcral:


-“Magnificat anima mea Dóminun ,


Et exsultávit spiritus meus in Deo salvatore meo,


quia respéxit humilatáten ancillae sua.”


E o canto, como uma seiva na dura árvore, penetra o corpo, inundando-o de uma felicidade indescritível. Encerrada a liturgia monástica da “Visperas del Domingo”, volto para o albergue e durmo com os anjos!


E, melhor ainda, nada de percevejos!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS -2- ALBERGUES

DSC04074



Vou contar um pouco dos albergues do Caminho de Santiago.

Antes, como sempre, um pequeno intróito.
Em minhas andanças no Brasil, tanto no Caminho da Fé como no da Luz, a única experiência de dormir em albergue foi no Caminho da Fé: um charmoso e confortável albergue em Águas da Prata. Fiquei lá por duas vezes, mas em situações completamente diferente das encontradas nos albergues em que me alojei no caminho de Santiago. A primeira vez que fiquei alojado no Caminho da Fé, em Águas da Prata, estávamos em uns quatro ou cinco andarilhos, o que significa que o número de albergados era inferior ao número de quartos; sim: eu disse que o número de albergados era menor que o número de quartos e não de camas, veja bem. Na segunda vez, melhor ainda, já em um novo albergue, havia apenas eu; dormi só e fui orientado em onde esconder a chave do imenso casarão quando saísse na manhã seguinte.
No Caminho da Luz não há albergues. Em ambos os caminhos que eu havia feito - Caminho da Fé e da Luz – os pernoites são em pequenos hotéis, pousadas e mesmo casas de família em tudo diferente dos albergues que, por uns quarenta e tantos dias, freqüentei na aventura de andanças pelo Caminho de Santiago de Compostela.
Vamos então aos albergues do Caminho de Santiago.
E começarei pelo início: St. Jean Pied de Port.
No Escritório de Turismo da pequena cidade, serviço da prefeitura local, veio a informação: o albergue municipal estava lotado; além de uma série de recomendações no que diz respeito à subida e descida dos Pirineus, prevista para o dia seguinte, uma concha de vieira –símbolo do caminho - foi oferecida junto a uma lista com endereço de albergues privados. Com a concha da vieira devidamente amarrada à mochila e a lista na mão se inicia a busca de um albergue para o pernoite.
E veio o primeiro: em um sobradinho minúsculo, subia-se pela escada onde se encontrava um quartinho retangular, com mais ou menos uns três metros de largura por uns seis ou sete de comprimento, no qual havia seis camas: quatro em dois beliches colocados junto a parede da esquerda e mais duas em outro beliche junto à parede em que havia a porta de entrada. Apertadíssimo e os beliches, de estrutura de ferro rangiam ruidosamente quando suas escadas eram utilizadas para acessar aos leitos que estavam acima. A mim coube uma cama no alto.
Deixei a mochila, como os outros andarilhos, perto da porta e, enquanto arrumava o saco de dormir sobre o colchão, matutava: e como fazer para trocar de roupa, me despir no alto de cama tão pequena e ruidosa, meio a gentes desconhecidas, falando línguas que não domino?
E a vida no albergue começou.
Um casal bastante jovem, que chegara pouco antes, começa a se despir. E o rapaz, mais rápido, só de cueca, perambulava pelo quarto: ia da cama à mochila, fuçava na mochila e ia ao banheiro localizado fora do quarto, do banheiro voltava à mochila e da mochila à sua cama. Nestas andanças, sempre que podia falava, em um idioma que eu não entendia, com sua companheira e trocavam agrados, como se aquele quartinho minúsculo fosse só dos dois e que ninguém mais houvesse por lá.
E eu, trepado no alto da cama, em dúvidas existenciais: desço daqui e tomo coragem de me despir para o banho? Não, o melhor seria ir de roupa até o banheiro, banhar-me, voltar de roupa e me trocar aqui no alto. Mas esta será uma operação difícil: para subir na cama, barulheira infernal dos ferros do beliche e no alto de tão diminuta cama não será fácil me ajeitar para trocar de roupa, ajeitar o saco de dormir, por para secar a fralda que levei para servir de toalha...
Desço da cama, ainda em dúvida, quando a companheira do rapaz de cueca começa a se despir: a loira e alta moça estava a meio metro e de frente para mim, mas como se eu não existisse, começa a se despir: tira o agasalho e joga em sua cama, tira a blusa e as calças e coloca sobre sua mochila e, como seu companheiro, inicia o desfile de calcinha e soutien, como se nada houvesse naquele quarto a não ser os dois. Aproveitam para, nos esbarrões impossíveis de ser evitado – dado a exigüidade do corredor –, trocar carícias e chamegos.

Eu estático!
Tiro a roupa aqui ou no banheiro?
Resolvo que vou me despir e, todo corajoso, saio do quarto de cuecas e vou assim, meio desnudo, até o banheiro; mas e se a dona do albergue estiver na sala? Vai me ver só de cueca: ficará brava? Acho mais conveniente ir de calças.
Ao final resolvo: vou de cueca.
Vestido de cueca e sandália, protegido com a fralda que seria minha toalha por estes quarenta dias, crio coragem e saio rígido e duro pelo quarto em direção ao banheiro: coragem nenhuma nem mesmo para olhar para os lados; cai o sabonete quando havia alcançado a porta e penso, seriamente, em deixá-lo por lá mesmo.
No banheiro o doce alívio de fechar a porta, sentir-me trancado, sem olhos a me vigiar – como se houvesse olhos e interesse a me vigiar -; ossos, costelas, pernas à mostra, que vergonha! Mas o banho aumentou minha coragem: voltei para a cama menos rígido, vesti-me e saí à procura de um local pra jantar.
E chega de ficar contando das vergonhas.
No Caminho há albergues e albergues!
Alguns com camas muito próximas; outros com espaços maiores entre as camas, oferecendo um espaço maior para, principalmente no escuro das manhãs, ajeitar as coisas na mochila, sem incomodar os vizinhos.
Via de regra o “regimento” dos albergues são parecidos, assim como o valor do pernoite, quando não são gratuitos. Em sua grande maioria há tanques para lavar roupas, varais para secar assim como, pagando dois euros, máquinas de lavar e, por mais três euros, máquinas de secar: valores cuja única forma de burlar era rateá-lo entre três ou mais peregrinos que, cooperativamente, juntavam suas roupas para lavar e secar.
Em todos os albergues do Caminho uma mesma orientação: não se é permitido ficar no albergue por mais que uma noite, a não ser em casos extremamente excepcionais - orientação médica para repouso face a inflamações nos joelhos, pernas, acidentes ou outras doenças - e também a ordem de prioridade de pernoitar: primeiro os caminhantes com suas mochilas, depois os caminhantes que usam serviços de transporte de mochilas, depois os ciclistas e só depois os que fazem o caminho de ônibus ou carro.
No início da caminhada, nas conversas iniciais entre os diferentes albergados havia, quase sempre, uma preocupação em relação ao ronco noturno.
Uma jovem romena, se não me engano em Zubiri, perguntou-me se eu roncava. Percebi, naquela hora que jamais tinha ouvido o verbo “to snore”. Respondi um pouco mal humorado que eu não ouço meu ronco enquanto durmo, mas que minha mulher sempre diz que ronco. “Então, devo roncar.”, disse.

E me pus a pensar: já havia aprendido que “bocadillo” é sanduíche, “jubilado” é aposentado e que “to snore” é roncar.
Grandes progressos: caminhar também é cultura.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS -1–OS JOVENS E A PUETA DEL SOL

DSC04388








Dedicado ao Antônio, à Catarina e ao Francisco: netinhos queridos.

Foram por volta de 760 quilômetros percorridos em mais de trinta dias de andanças pela região norte da Espanha e um tiquinho de nada da França; a andança pela França, na verdade, foi mais para botar banca e dizer que se Aníbal e seus elefantes venceram os Alpes eu, com o peso da mochila, subi, desci e “atravessei” os Pirineus.
O resultado, então, são histórias para contar, memórias a resgatar, cheiros e paladares que teimam reviver, amizades feitas que são mentalmente revisitadas, ventos, montanhas, albergues, casas de pedra...
Por onde começar?
Pelo início diria meu tio Olímpio, quando eu, ansioso, iniciava uma história pelo meio, ou pelo fim, tornando-a incompreensível: “comece pelo começo: é sempre assim que se conta, sem nenhuma pressa, uma história”.
Desta feita não vou acatar: iniciarei pelo fim. Começarei esta história por Santiago de Compostela, final da caminhada, e não por St. Jean Pierre de Port, onde iniciei esta aventura.
Cheguei, cansado, claro, a Santiago de Compostela onde fiquei, por dois dias, alojado no elegante Albergue do Seminário Menor. E foi em um passeio na Plaza Mayor que vi, encantado, jovens com seus celulares acampados em pequenas barracas Kechua, montadas sob o sol ardente no meio de tão ampla e interminável praça.
Antes de continuar um pequeno parêntese. Não li jornal e não acessei a internet durante o percurso do Caminho e as ligações telefônicas que fiz para o Brasil foram feitas para matar a saudade da família. Fiquei, então, mais desinformado do que costumo ser e o mundo, indiferente à minha ignorância, continuou girando. Fecham-se os parênteses.
A curiosidade a respeito dos jovens acampados em plena Praça Maior durou pouco: “são jovens estudantes que protestam contra os políticos e contra os bancos. Combinaram tudo pela internet”, interrompeu-me o Sr. Oto, um velho alemão, mochila ainda às costas, com o qual havia me encontrado algumas vezes durante o caminho. O convite para um café e a garantia de uma boa prosa calou mais forte que a curiosidade em relação a tão inusitado acampamento.
A viagem de Santiago de Compostela para Madri foi em um trem noturno. Saí de Santiago às 22h30min horas e cheguei a Madri às 08h05min da manhã seguinte.
E é aqui, na estação ferroviária, que de verdade começa esta história. Depois de um café me dirigi ao Serviço de Atendimento ao Cliente da Rede Ferroviária onde fui atendido por um funcionário mal humorado:
- “Estou chegando de Santiago de Compostela e gostaria de saber se há, nesta estação, um serviço de orientação ao turista; preciso de ajuda para escolha de acomodação.”, educadamente falei.
- “Não há”, respondeu sem retirar o olho da tela do computador em sua frente.
- “E o senhor poderia me dizer onde encontro este serviço?”
- “Não.”
Indignado com tamanha indelicadeza, estava ainda a imaginar como faria para obter a informação que necessitava quando fui abordado por um jovem rapaz:
- “O Serviço de Orientação ao Turista está na estação Puerta Del Sol. Lá o senhor encontra as informações a respeito de albergues, pensões e hotéis”, disse o rapaz ao mesmo tempo em que solicitava a sua companheira um mapa do metrô para me orientar. A mesma não tinha o mapa e eu agradeci ao rapaz informando que conhecia mais ou menos o metrô e que não se preocupasse. “Estação Puerta Del Sol, não se esqueça”, e correu para alcançar a namorada apressada.
No metrô ajeitei-me, com a mochila às costas e o mapa sobre as pernas para estudar as conexões que teria que fazer. Na estação seguinte à qual eu havia tomado o metrô senta ao meu lado um jovem e começamos a nos falar.
“Puerta Del Sol? Na estação Novos Ministérios o senhor desce e pega a linha dois, vermelha. Se não me engano é a quarta estação em direção a Las Rosas. Cuidado com esta máquina fotográfica: a Puerta Del sol está lotada de gente por causa do movimento dos estudantes.”, disse solícito o jovem rapaz.
- “Em Santiago de Compostela estavam acampados, protestando na Praça Maior. Fiquei sabendo que o movimento foi combinado pela internet. É isso mesmo?”, perguntei.
- “Sim, é isso mesmo. Mas aqui, em Madri, o movimento está muito forte.”
- “E os estudantes protestam contra o que?”, perguntei.
- “Somos contra os políticos corruptos e contra os bancos que nos roubam. Cuidado com esta máquina, a praça está cheia. Adeus!”, falou enquanto descia em uma estação para tomar outro rumo.
Eram um pouco mais de nove horas da manhã quando desci na Puerta Del Sol.
Impossível de se ver o calçamento da praça: todos os seus mínimos centímetros estavam ocupados por barracas, cartazes e jovens: uma imensidão de jovens que falavam, cantavam, dormiam, tocavam violão, namoravam.
Na verdade o Serviço de Orientação ao Turista fica na Praça Maior e fui orientado em como lá chegar. Fui atendido por uma bonita e sorridente funcionária. A bela moça ao ver um velho com cara de cansado, mochila às costas, resolveu por sua conta e risco que meu lugar seria um albergue. Forneceu-me a lista dos albergues – poucos – da cidade e orientou-me para que eu telefonasse para verificar onde encontraria vaga: “Telefone público o senhor encontra na Porta do Sol”, disse a sorridente e tão bela funcionária.
De novo na Porta do Sol e eu, com dificuldade para manipular o telefone público tão cheio de possibilidades: carregar cartão, enviar MSN, fazer uma chamada; e eu bem que tentei e tentei, queria apenas fazer e tão somente fazer uma chamada para um albergue. Novamente sou socorrido por um jovem: este agora de longos cabelos enrolados, daqueles que lembram os jovens baianos.
Sorte minha: havia vaga em um albergue, o primeiro da lista que havia escolhido, dado sua proximidade com o Metrô. Mas antes de tomar o Metrô para ir ao albergue passeio, maravilhado, pela Porta do Sol: tanta juventude, tantas barracas, o sol forte no céu azul encheram-me de forças, sumiram com meu cansaço fazendo com que eu me sentisse como que embriagado por intensa felicidade.
Voltei à Porta do Sol à tarde.
A praça fervia. Em uma barracas ofereciam água aos passantes, em outra - a Barraca das Artes – os participantes tinham pincel, papel e cartolina para fazer cartazes, em outra “bocadilhos” de queijo eram oferecidos, em outra – extrema luxúria – duas belíssimas estudantes faziam e ofereciam chá de ervas, pode? ; bem no meio da praça corria solta uma barulhenta assembléia: “Palavra de ordem” pensei saudoso das assembléias que havia participado quando jovem.
E como os jovens gostam de falar. Orgulhoso do movimento o estudante de arquitetura comenta sua repercussão: “em toda a Europa o movimento é notícia na TV e mesmo nos grandes jornais, tanto é assim que em Londres e em Paris já há acampamentos com o nosso.”. Realmente era grande o número de repórteres e de câmeras de TV pela praça. E o que é que vocês reivindicam? “Somos contra a corrupção, contra as eleições que ocorrerão amanhã na Espanha e contra os Bancos que nos esfoliam a todos.”, informou-me o estudante de enquanto terminava de fazer mais um cartaz, no qual ao lado de uma caricatura, chamava os políticos de filho de uma certa coisa.
Na tarde seguinte voltei à praça. Já mais descansado, me permiti enfiar-me na fila dos voluntários do dia e, face a possível dificuldade que teria em relação ao idioma, me escalaram para cortar pão para fazer sanduíches. Fui, então, conduzido até a barraca dos lanches onde havia uns cinco jovens voluntários e fui recebido, carinhosamente, com um avô. Cortei pão, separei queijo e conversei a tarde toda.
Na praça não se podia beber álcool, os namoros deveriam se limitar ao que se faz em público, todas as drogas proibidas, apenas o cigarro permitido. Às margens dos quiosques que existiam na praça foram marcadas com uma fita impedindo que se acampasse para não prejudicar o acesso do público aos seus serviços. Não sei de onde aparecia tanto pão, tanta água, tanto papel; os jovens, e a sua internet, conseguiram até banheiros químicos que foram colocados na praça.
O resumo do resumo: a Praça do Sol era uma verdadeira aula de cidadania e humanidade: alegre, respeitosa, colorida, barulhenta e silenciosa. E o sol, astro maior, sob um céu azul, iluminava até as nove horas da noite aquela imensidão de ternura, de afeto e de cidadania. Inesquecível.
No domingo as eleições ocorreram e o partido governista – o socialista PSOE – foi duramente derrotado pelo PP.
Na segunda voltei à praça a procura dos meus “netos” amigos e não os encontrei na barraca de sanduíches. Sofia, a minha amiga do dia anterior me viu e gritou: “Ei! Avô “padeiro” – é que eu, que no dia anterior havia ensinado aos “colegas” da barraca de como se fala e escreve padaria e padeiro em português, ganhei, em troca, o apelido de “avô padeiro”, não abuelo, vejam bem - estou hoje na barraca de comunicação, não quer ir lá para conversar um pouco?”, perguntou-me.

Claro que fui.
- “E o resultado das eleições, te chatearam?”, perguntei.

- “Não. Para nós, estudantes, quem quer que ganhasse seria a mesma coisa. São dois partidos que se revezam ambos com políticos corruptos, atrelados com os bancos, sem nenhuma ética e compromisso verdadeiro com as pessoas e com a coisa pública.”, respondeu serena e, a meu ver, com sinceridade a meiga Sofia.
- “E porque hoje você não está mais em nossa padaria?”, perguntei.
- “Todos nós, diariamente nos revezamos, mudamos de setor. Assim, ninguém fica perto ou seduzido por possíveis poderes. O poder corrói, pensamos, e tem que ser democraticamente distribuído. Acreditamos e praticamos isso. Concorda avô padeiro?”
Fiquei comovido. Não há como não concordar.
Na terça feira, no avião, de volta para casa me é oferecido um jornal; pego o El Mundo: fazia uns quarenta dias que não lia jornal. No El Mundo toda a Espanha se restringia às eleições que haviam acontecido no Domingo: eleições, eleições e eleições.
Folheio insistentemente e chego à página 18 onde um quarto de página era dedicado ao movimento dos estudantes. A foto de um jovem sonolento, abrindo a boca, encabeça a manchete: “El ocaso de Sol”. O texto, irônico, afirma que a “sede” da soberania nacional que havia se instalado na Puerta Del Sol estava em franco processo de desaceleração.
Triste e comovido recortei a página 18 do El Mundo com a foto do jovem sonolento.
Da janela do avião via que o sol, astro maior, brilhava sobre as nuvens que cobriam toda a Espanha.




.