Mas, me conte: como e quando é que ocorre o estouro da boiada?
Sabe-se lá, de repente, muito de repente, ou é um galho de árvore que, com a força do vento, balança mais forte, ou é uma codorna que, assustada, levanta um repentino vôo ou é nada mesmo que assusta um garrote que vira de lado e, medroso, desembesta a correr. Para que lado corre? Para onde Deus, e não o homem, manda. E toda a boiada vai atrás, desviando da rota, se enfiando em desconhecidas capoeiras, riachos, deixando os boiadeiros e seus cavalos e cachorros cansados com a lida de reacomodar a boiada no rumo certo.
Com pessoas é a mesma coisa.
Vou contar.
Cheguei a Logroño, uma cidade com mais de cem mil habitantes, no sétimo dia de caminhada. A sinalização do Caminho para encontrar albergues ou centros de orientação ao peregrino nas cidades maiores, como Logroño, deixa a desejar. Foi também, e isso é um mero acaso, naquele dia que encontrei uma das poucas informações erradas em minha Bíblia, o guia “El camino de Santiago em tu mochila”: o Albergue Municipal, sempre preferido, não estava fechado como informava erroneamente o guia, mas isso não tem importância para o entendimento da história, e estou contando mais por desabafo, penso. Aproveito, então para falar: uma coisa é você desviar-se da rota no início do dia, perder-se logo de manhãzinha, ir para o leste em vez de ir para o sul, e por isso, ter que andar um ou dois quilômetros a mais; se é logo cedo, de manhã, como disse, não afeta muito o corpo nem o humor, mas errar e, por isso, ter que andar mesmo que seja uns quinhentos metros depois de ter percorrido 29 quilômetros – distância entre Los Arcos, onde me encontrava a Logroño - afeta, e muito, o humor, o corpo, as penas, e as costas sob o peso da mochila. E foi o que ocorreu naquela tarde em Logroño: buscando um albergue privado, baseado na informação que o Municipal só abriria em maio, fui até o Centro de Orientação ao Peregrino. E lá, fico sabendo: o Municipal, face o feriado da Semana Santa, antecipou sua abertura e havia vagas no mesmo. Eu havia passado em frente o Albergue Municipal, que julgava fechado, e sabia que estava distante, mas não tinha o que fazer: caminho do Centro de Orientação ao Peregrino ao Albergue Municipal, onde me banho, e esquecido do cansaço e do mau humor, pernas para que se tem: saio para conhecer a cidade.
E é só aqui que começa, mesmo, a história.
Estávamos, eu e um bando de peregrinos, em um elegante bar, eu a tomar um duplo café com leite, quando, do nada, como o vôo da codorna que assusta o garrote no estouro da boiada, vem a informação: “todos os cafés, bares e restaurantes, estarão fechados amanhã e depois, com certeza, por ser quinta e sexta-feira santa”. Será? Pouco depois: não serão apenas os restaurantes e bares, mas também os pequenos quiosques que servem deliciosos cafés e saborosos “bocadilos” estarão fechados, e estes até no sábado. Será, mesmo? Não posso acreditar. Sim, e também albergues privados menores: o povo espanhol é muito católico e respeitam por demais a semana santa. Estamos fritos!
- “Não: vamos nos precaver e comprar alimento para estes dois dias”, diz em alta e boa voz um velho “garrote” holandês.
Para não chatear e encompridar demais a história: acompanhado de um grupo de peregrinos, quando dei por mim, estava em uma loja de uma rede de supermercados com uma cesta nas mãos escolhendo e acondicionando pão de forma, queijo, frutas secas...Como já disse, repito aqui: o pão da Espanha é simplesmente delicioso: casca grossa, miolo úmido, enfim, o tipo de pão que me agrada. E eu enchendo a cesta com pão de forma branco, mole, provavelmente com o mesmo “sem-gosto” dos que, vez ou outra, como por aqui. E a boiada sem rumo, verdadeira torre de Babel a todo vapor: E este queijo que você comprou, será que não azeda? Levo outro queijo? As frutas secas estão muito caras? Pode-me dizer o que é maiz? Vou levar uma pequena garrafa de vinho para o jantar. E eu, quantas Coca light? E o peso da mochila? Peso não é nada: será que cabe na mochila tanta provisão? Cabe não, e o recurso será levar uma sacola com as comidas na mão.
E eu, parado no meio da loja do Supermercado, com uma pesada cesta cheia de provisões para dois dias, dei por mim que o que estava “pesando” mesmo em todo o meu ser era o pão de forma: aborrecia-me, e muito, ficar dois dias comendo pão de forma. Detesto pão de forma, ou como reclama o netinho Antônio quando se vê forçado a comer o que não gosta: “eu odeio couve-flor e amo lingüiça”. Então eu odeio pão de forma.
E foi aquele pão branco, provavelmente inodoro, sem sabor que me põe a pensar: o guia “El camino de Santiago em tu mochila”, minha Bíblia nesta caminhada, tão meticuloso, com certeza, informaria de possíveis “feriados” nos quais os albergues, restaurantes e quiosques teriam o hábito de fechar; e mais ainda, pensava de olho naquele pão branco, neste mundo de hoje em dia, com internet, comunicação “on line” caso situações como esta tivessem ocorrido nos anos anteriores todo mundo saberia.
E, como se desse ma marcha ré no corpo, vou recolhendo toda a provisão da cesta e devolvendo nas respectivas prateleiras. O último a ser devolvido foi o pão de forma: coloquei-o em seu leito e, agradecido, saí do supermercado sob o olhar curioso de alguns peregrinos.
- “Ei, senhor brasileiro, desistiu de comprar aqui? Está achando caro, é isso?”, pergunta o australiano.
A vontade era responder que eu não ia “levar merda de pão nenhum”, mas fui educado:
- “Olha, eu vou arriscar e torcer para que nem todos os bares e quiosques estejam fechados.”
Voltei para o elegante bar e se pudesse beber, teria bebido uma dúzia de garrafas de vinho, ou de cerveja, ou de vodka.
Tomei mais dois cafés com leite. O que fazer?
Dia seguinte encontrei quiosques, albergues, restaurantes e bares abertos: aproveitei e comi, no café da manhã, um enorme pão, casca dura e miolo úmido, com presunto cru.
E foi só este estouro da boiada que teve no caminho?
Não teve mais.
O Guia, sempre o Guia, recomenda que se leve fronhas para cobrir os travesseiros nos albergues tendo em vista piolhos e percevejos.
Contando melhor.
Na maioria dos albergues municipais é oferecido um lençol e uma fronha, descartáveis, feitos de um tecido semelhante àqueles que cobrem as camas de consultórios médicos e é sobre o colchão e travesseiro devidamente “embrulhados” que se ajeita o saco de dormir.
Nos albergues não oferece o protetor de colchão e travesseiro o saco de dormir é colocado diretamente sobre o mesmo. E é ocaso do Albergue Paroquial Apóstol Santiago, do povoado El Acebo, uma pequena vila com trinta e sete habitantes. Pois foi neste albergue, localizado ao lado de uma medieval igreja de pedra, que ocorreu o segundo estouro da boiada. No banheiro havia um quadro ilustrativo informando dos perigos e dos cuidados a se tomar no que diz respeito aos percevejos e piolhos: entre outros cuidados, verificar possíveis manchas de sangue no colchão.
Fui um dos primeiros da fila para alojar, seguido de um grupo de franceses. Eu, de banho tomado, estava me preparando para lavar roupa e depois passear pelo povoado quando um dos franceses foi ao banheiro, viu o quadro ilustrativo e “resolveu’’ que o albergue estava lotado de percevejos. Foi o vôo da codorna. Apressado, nervoso, saiu a procura de transporte, conseguiu, segundo ele uma Van com capacidade para nove pessoas e, literalmente, comandou uma verdadeira evasão de franceses do albergue. Partiram rumo a Rabanal Del Camino.
- “Vamos brasileiro?”
Não fui.
Ao fim do dia, na singela igreja medieval, houve uma cerimônia litúrgica, realizada pelos monges do Monastério Benedictino de San Salvador Del Monte Irago, com convite aos albergados para participar.
Canto gregoriano em uma igreja medieval é o que se pode chamar de alimento para a alma. O coro de monges, liderado por um jovem com voz levemente contralto, quebrou o silêncio sepulcral:
-“Magnificat anima mea Dóminun ,
Et exsultávit spiritus meus in Deo salvatore meo,
quia respéxit humilatáten ancillae sua.”
E o canto, como uma seiva na dura árvore, penetra o corpo, inundando-o de uma felicidade indescritível. Encerrada a liturgia monástica da “Visperas del Domingo”, volto para o albergue e durmo com os anjos!
E, melhor ainda, nada de percevejos!