E a ágape dos contadores de histórias continuou noite adentro sob o céu estrelado e com uma enorme lua gorda e brilhante. Um ventinho frio cortava a arena convidando os contadores a aproximarem os corpos para confortar do frio.
Um outro contador de se apresentou.
Era um homem de estatura média, gordo, com a barriga estufando a camisa de flanela com mangas compridas, olhos claros de um azul meio acinzentado; tinha os cabelos grisalhos, lisos, caídos sobre a testa, encobrindo as rugas salientes, marcas da idade e, talvez, dos sofrimentos e das alegrias que tivera na vida.
Apresentou-se, um pouco tímido, diga-se de passagem, anunciando seu nome – Arlindo Maringone - , e nos informou, platéia atenta e curiosa, que nascera, há mais de setenta anos, no interior de Minas Gerais, divisa com Goiás, em um planalto de cerrados e algumas veredas com elegantes buritizais.
Bonito seu sotaque de mineiro, seu dialeto tão próprio, carecendo às vezes de ir fundo na atenção de ouvir e pensar para traduzir suas palavras. Atento, quando o Arlindo percebia na platéia as dificuldades de seu palavreado, gesticulava, fazia careta, sorria, torcia a boca, fechava os olhos e, com estes tantos gestos, facilitava o entendimento de sua fala.
“Lá onde nasci, prosseguiu Maringone, não tinha os benefícios da luz elétrica, da água encanada e do asfalto. Era todo um mundo de solidão, de excessiva quietude, de muitas pouquíssimas palavras. Os fins de dia e seus entardeceres eram tristes, prognosticando a escuridão da noite. E foi lá, no sítio do Baguaçu, que nasci e depois, homem feito, vivi a vida de casado com minha mulher Lourdes; não tivemos filhos, e só, vivia cuidando de uma roça de dois mil e poucos pés de café bem embaixo do pé da serra; também, numa espraiada situada mais ao norte do sítio, nos tempos das chuvas, plantava milho e feijão das águas e, na época da seca, semeava e colhia arroz; no sítio tinha, também, margeando o entorno do morro do Chapéu, um bom pasto forrado de capim gordura, suficiente para criar de vinte a trinta cabeças de gado mais uns poucos cavalos e a mula Serena.
Era assim que me ocupava e os dias iam passando devagar.
Foi então que em um ano, que hoje não me lembro mais, me foge o seu número, que aconteceu das cobras matarem, com suas picadas venenosas, duas vacas, três novilhas e pequenos bezerros. No pasto, campo do cerrado, sempre teve muitas cobras mas, de antes do ocorrido que estou a contar, nunca havia acontecido, graças ao bom Deus, mais que uma ou duas mortezinhas em todo o ano. Pois vejam: naquele maldito ano, do qual estou a contar, só no mês de setembro, as cobras deram fim a dois bezerros, uma novilha e, pior de tudo, mataram a Esperança, vaca de minha mulher, que estava mojando, prestes a parir mais um bezerro, que pobrezinho, morreu mesmo antes de nascer.
Para ser fiel com a verdade, não posso negar que sempre houve cobras por lá.
E bastante!
Tanto que um primo meu, menino da cidade, pouco conhecedor dos perigos da roça, foi mordido por uma cascavel quando, inocente, mesmo tendo ouvido o “creshshsh” de seu guizo continuou em sua lida de catar, para comer, doces gabirobas na moita. Nem preciso contar o triste fim do que aconteceu com este meu primo: morreu de dor e de inchaço pelo veneno forte. Meu pai matou a cobra e descobriu, pelos anéis de seu guizo, sua idade de treze anos, mesmo tempo em anos, do primo que vitimara com seu veneno forte. Se encontrava também, nos pastos e no cafezal, além das cascavéis e das jararacas, enormes surucucus, que gostavam mais de ficar quietas, escondidas nas margens do riozinho, espreitando as rolinhas e juritis que iam beber água fresca; também se via por lá a temida urutu, aquela que tem a cruz na testa, e a veloz capitão do mato, só que esta, por não ser venenosa, não causava medo de dores e de morte.
Mas, voltando ao assunto da história: naquele ano já tinha perdido mais de três novilhas, dois bezerrinhos, uma outra vaca e a Esperança, todos finados por mordidas de cobras.
Para acabar com tantas mortes a solução que me veio à cabeça seria buscar, longe, bem longe, na Gruta da Onça, o Senhor Sudário, famoso curador e benzedor.
Falei com Lourdes e fomos.
Pelo menos três dias, no lombo do cavalo, foram gastos na viagem de casa até o Taquari, casa dos pais de Lourdes; de lá, onde ficou minha mulher, foi mais um dia e meio até a Gruta da Onça, onde ficava, à beira de um córrego, a tapera do Senhor Sudário.
Era lá que ele vivia: só, ensimesmado com suas rezas, barba por fazer, cabelos longos. Alto, tinha a pele escurecida e enrugada, um olhar sereno, mas severo, exigente, argüidor, sempre teimando em inquirir o que é que a gente queria com ele. O Senhor Sudário, só com o poder de seu olhar, punha a gente a falar o que ele queria, obrigava a gente a dizer o que vinha fazer naquele recanto, que necessidades e urgências possuía para vir buscar o seu auxílio.
Só falava o estritamente necessário, economizando palavras; era assim o Senhor Sudário e como disse antes, apenas pela força de seu olhar, lhe falei dos acontecidos no meu sítio, da ferocidade das cobras naquele ano e que carecia de seu auxílio de benzedor.
- “Ta com dois cavalos? Posso ir amanhã. O caso urge.”, falou com sua voz cavernosa, profunda, que causava receio, mesmo sendo eu já homem adulto e experiente em desavenças.
Dormimos em sua tapera esperando o dia clarear.
Ordenou, ainda de madrugada, o caminho que faríamos e disse que não levasse Lourdes: “pode sangrar nestes dias e, mulher sangrando, atrapalha benzedura.”
No caminho de nossa viagem tentei buscar conversa, mas não tive respostas. Seu olhar ordenava silêncio: nem mesmo o Bom Dia! ao acordar e a Boa Noite! ao anoitecer.
Silêncio de palavras na quietude total.
Chegamos, depois de quatro dias de silenciosa viagem, ao Sítio do Baguaçu.
- “Sem descanso. O assunto carece urgência.”, disse tão logo chegamos .
-“Aceita um café? Posso coar.”, perguntei.
O curandeiro não aceitou o café oferecido.
- “Preciso, para os benzimentos, de uma carcaça de vaca, morta por mordida de cobra; as orações, os terços e as encomendas, que mandarão para longe, as cobras deste lugar, serão feitos junto à cruz de um humano morto por picada de cobra. S´imbora logo.”, ordenou.
Nem bem disse e saiu à minha frente a passos largos, seguros, confiantes. E milagrosamente, sem saber como ocorria, o Senhor Sudário, como que me guiando, caminhou em direção ao córrego, logo abaixo da cachoeirinha, onde, eu sabia, havia a carcaça da Soberana, uma enorme vaca zebuína, morta há uns dois anos por uma urutu. Recolheu a carcaça e, sempre à minha frente, encaminhou em direção à cruzinha que homenageava o local da morte de Edinho, o primo da cidade que havia sido morto por uma cascavel enquanto colhia gabirobas, como já contei.
Não sei se vocês conhecem pastos de cerrados, mas se não, saibam que os mesmos são recortados por trilhos feitos pelo gado e cavalos em sua busca por água e capim. São inúmeros os trilhos que se cruzam, formam encruzilhadas e, para quem não conhece, folrmam verdadeiros labirintos. Aqui no meu sítio do Baguaçu, não era diferente e caminhar pelos trilhos, passar adentro pelas capoeiras de mato sem se perder era ofício dos nascidos no local. Então, por isso, o que sentia ao ser guiado tão corretamente pelo Senhor Sudário, pelos trilhos dos pastos do meu cerrado era de muito difícil compreensão. Deveria estar eu a guiá-lo e o contrário era o que acontecia, Deus do céu.
E fui atrás de seus passos largos até chegarmos à cruz.
Lá o Senhor Sudário depositou, aos seus pés , a carcaça, deu um passo atrás e argüiu-me:
- “Daqui de onde estou, de que lado nasce o sol?”
Apontei a direção e o velho curandeiro posicionou-se , de forma a ficar com suas costas para a nascente e, com seu facão, a partir dos pés da cruz traçou, riscando forte e fundo, uma enorme cruz ao chão, cuja cabeça seguia em continuação dos pés da cruz de madeira.
Terminada a feitura da cruz no chão, silenciou-se, fechou os olhos por alguns instantes e disse:
- “É hora de tomar uma resolução para onde quer que eu mande embora as cobras.”, e apontando para o poente continuou: “Para lá sei que mora seu inimigo, mas não é bom, tocá-las para aquelas bandas...para onde você quer mandar?”.
“Até dos meus inimigos, que guardo em segredo até de Lourdes, o velho curandeiro tem ciência”, pensei.
Urgia decidir. Ao sul havia as furnas dos Ferreiras, lugar ermo, sem plantação e casas de moradia. Dizia-se, mesmo, que nos bem antes era habitado por bugres, que, temerosos pela quantidade de cobras que havia no local fugiram para os Altos do Chapadão, onde passaram a viver.
O melhor, pensei, seria devolver à furna dos Ferreiras as amaldiçoadas cobras.
Apontei a direção desejada e, imediatamente, o Senhor Sudário iniciou um outro traçado, unindo os braços e a cabeça da cruz que havia riscado no chão, formando um desenho parecido com um caixão de defunto.
Terminado o desenho no chão, tirou do embornal um novelo de barbante e iniciou rezas de incompreensíveis orações; seus os olhos foram ficando vesgos, tortos, a boca soltando grossa espuma, enfim, endemoniando-se o homem. Com o barbante fez uma cerca sobre o traçado feito com o facão, para cercar as cobras deixando apenas um vão que ficava, justamente, nos pés da cruz de madeira. A cruz seria o vigia para impedir o retorno das amaldiçoadas cobras.
Durou, a cerimônia, tempos, para mim, indefinidos.
- “Pronto. Quando quer que elas se vão? Quer agora ou mais de tarde?”
Atordoado por tantas novidades achei melhor acudir que elas fossem um mais tarde: precisava descansar de tamanhas tonturas.
- “Agora, se puder, quero um café”, falou em voz baixa.
Voltamos para casa e coei café. O velho curandeiro ficou fora, perto do curral. Coado o café levei o bule e duas canequinhas e sentamos para beber. Seus olhos indicavam que continuava a não querer prosa: almejava silêncio.
E nem bem sentamos em uma pedra para bebermos o café ouvi, ao longe, um assobio forte tal e qual fazem os ventos em meses de chuva brava, como aqueles que vêm antes das chuvas de dezenove de março, a das enchentes de São José, e ele:
- “São elas, já estão indo e que o diabo as carreguem!”, disse ao mesmo tempo em que fez o sinal da cruz.
Nem bem terminou de beber a segunda canequinha, levantou-se, assoou forte o nariz, cuspiu no chão um cuspe preto e ordenou:
- “Encilhe o cavalo para mim. Já tou´indoimbora. Sozinho.”
Obedeci e enquanto arreava o cavalo o sibilo da fuga das cobras tornou-se mais próximo, atravessou o pasto em direção do cafezal, passou pelos fundos do quintal, ao lado do pequeno córrego e foi sumindo em seu tinido agudo para as bandas da furna dos Ferreiras.
- “ E quanto lhe devo pelo serviço?”, perguntei.
- “Tem paçoca de carne seca, já pronta? Tenho uns quatro dias de viagem de volta até minha tapera.”
Quando voltei com a matula de paçoca o curandeiro já estava montado.
Seus olhos permitiram apenas:
- “Que Deus o ajude, minha benção.”
- “Abençoado está. Inté.”
E tocou o cavalo em direção à porteira.
3 comentários:
Orlando...lendo sua história fiquei pensando: não sei como nunca fui picado de cobra. Tanto andei por matas e cerrados e em beiras de rio! Como era perigosa nossa vida no campo!
Olá Tonhão,
Sorte a nossa de não termos sido picados!
Tá locuo: dizem que a dor é intensa.
Abraços,
Orlando.
E estávamos longe do soro! Até que o desinfeliz chegasse na cidade e no hospital mais próximo levava um tempão! O risco de morrer no caminho era enorme. Além disso a variedade das peçonhentas era grande e a probalidade de não ter o soro certo era grande.
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