Sim eu sei!
Sei muito bem que não há pequenas, médias ou grandes generosidades: há generosidades apenas. É como a história da gravidez: ou se está grávida ou não se está. Mas o que quero, com o “pequenas” é qualificar e homenagear, pela sua simplicidade cativante, as generosidades ocorridas no Caminho da Fé; encarem, então o “pequenas” como um “grande”, enorme mesmo, qualificativo a atos generosos ocorridos nesta última caminhada que vou, agora, relatar.
Outra coisa: prometo nesta história contar apenas “causos” verdadeiramente acontecidos, nada de mentiras ou invenções.
Deixemos de lado tanto “intróito” e vamos ao que interessa.
Em uma manhã, com o sol ainda escondido atrás das serras, um vento frio roçando o nariz e a neblina cobrindo as montanhas de Minas, saí de uma pequena cidade – Tocos de Mogi, se não me engano, em direção a Estiva, isso se o ocorrido foi mesmo logo depois de ter saído de Tocos de Mogi. Explicando um pouco melhor: foram dez dias de caminhada e há horas em que me confundo com tantas cidadezinhas de nomes estranhos, tantas gentilezas, tantas montanhas; além disso a cidade onde houve o acontecido não importa muito, vocês vão ver.
Era bem de manhãzinha, a mão livre do cajado enfiada no bolso para “esquentar do frio”, os passos um pouco mais apertados para aquecer o corpo friorento e eu caminhava distraído brincando de soltar fumaça de neblina pela boca e pelo nariz quando ouvi:
- “Oh! peregrino, bom dia.”
Percebendo que a voz vinha de dentro de um pequeno curral ao lado da estrada parei e procurei pelo dono da voz que para facilitar a minha busca repetiu:
- “Aqui peregrino, dentro do curral... Achou? Quer beber um leite de vaca tirado na hora?”
Mais uma vez volto à distante infância: “beber leite no curral” como era costume dizer permanece firme na memória; é bem verdade que a expressão era motivo de chacota pelos primos da cidade que ironizavam: “beber leite na caneca e não no curral”; mas voltando ao que importa: “beber leite no curral” ou “beber leite na caneca” é inesquecível...
Era assim: colocava-se na caneca de alumínio ou de ágata uma boa dose de café já adocicado e a cobria com colheradas de açúcar cristal até formar um grosso melado escuro no fundo da caneca; depois, ainda com o dia meio escuro por ser tão cedo, dirigir-se, sonolento, até o curral, subir em uma das suas tábuas e esperar o grito:
- “Quer o leite com muita ou com pouca espuma?”
Sempre queria com muita espuma o que exigia que o retireiro colocasse a caneca bem próxima do chão, aumentando a distância entre ela e o peito da vaca; para quem pedia com menos espuma o retireiro aproximava mais a caneca ao peito da vaca, mas em ambos os casos sempre as enchia até a boca com leite quente e perfumado.
Bebia-se o leite quentinho ali mesmo no curral e quase sempre um forte desarranjo intestinal exigia velocidade para alcançar o bananal que havia nos fundos da casa. Era lá o nosso WC.
Embora ansioso e querendo muito reviver o sabor de “beber leite no curral” procurei avaliar as condições locais para descobrir onde um possível desarranjo intestinal poderia ser resolvido. E, assim, vistoriando o local percebi que a uns cem metros do curral, em uma baixada, havia um capão de mato que poderia servir de esconderijo para resolver o provável desarranjo.
Apesar dos riscos concluí ser impossível perder oportunidade tão única.
- “Quero sim, beber leite no curral. O senhor tem café?”, perguntei enquanto tirava das costas a mochila, encostava o cajado no barranco e me dirigia à cerca do curral.
- “Tem sim, ali naquela garrafa. A caneca está logo ali no moirão da cerca, pegue a maior para o senhor”, disse de dentro do curral o retireiro cujo nome, vim saber logo depois, era Bié.
Fui até o moirão, peguei lá uma enorme caneca de alumínio, coloquei uma boa dose de café e subi na tábua do curral, e, como em minhas memórias fiquei aguardando:
- “Com bastante espuma, peregrino?”
- “Sim, bastante espuma, por favor.”
Enquanto tirava o leite para encher a caneca:
- “Vai para Aparecida?”
- “Sim, vou.”
Trouxe a caneca com a espuma derramando pela borda e disse:
- “Reze por nós lá. Tá aqui o seu leite.”
Delicioso, morno, doce pelo açúcar contido no café e como na infância a espuma fazendo bigode acima da boca...Tomo todo o leite e agradeço.
- “Boa viagem e que Deus o acompanhe. Não se esqueça de rezar por nós.”
- “Rezarei”, afirmei enquanto ajeitava a mochila às costas e com a língua saboreava o resto da espuma que formava o gostoso “bigode” branco de espuma do leite.
O desarranjo intestinal não deu o ar da graça, felizmente passei imune pelo capão de mato e lá fui eu caminhando agora com a barriga cheia de “leite tomado no curral” e com a memória revigorada, remoçada mesmo. Muito bom: o leite e as memórias nele contidas.
Outra coisa: prometo nesta história contar apenas “causos” verdadeiramente acontecidos, nada de mentiras ou invenções.
Deixemos de lado tanto “intróito” e vamos ao que interessa.
Em uma manhã, com o sol ainda escondido atrás das serras, um vento frio roçando o nariz e a neblina cobrindo as montanhas de Minas, saí de uma pequena cidade – Tocos de Mogi, se não me engano, em direção a Estiva, isso se o ocorrido foi mesmo logo depois de ter saído de Tocos de Mogi. Explicando um pouco melhor: foram dez dias de caminhada e há horas em que me confundo com tantas cidadezinhas de nomes estranhos, tantas gentilezas, tantas montanhas; além disso a cidade onde houve o acontecido não importa muito, vocês vão ver.
Era bem de manhãzinha, a mão livre do cajado enfiada no bolso para “esquentar do frio”, os passos um pouco mais apertados para aquecer o corpo friorento e eu caminhava distraído brincando de soltar fumaça de neblina pela boca e pelo nariz quando ouvi:
- “Oh! peregrino, bom dia.”
Percebendo que a voz vinha de dentro de um pequeno curral ao lado da estrada parei e procurei pelo dono da voz que para facilitar a minha busca repetiu:
- “Aqui peregrino, dentro do curral... Achou? Quer beber um leite de vaca tirado na hora?”
Mais uma vez volto à distante infância: “beber leite no curral” como era costume dizer permanece firme na memória; é bem verdade que a expressão era motivo de chacota pelos primos da cidade que ironizavam: “beber leite na caneca e não no curral”; mas voltando ao que importa: “beber leite no curral” ou “beber leite na caneca” é inesquecível...
Era assim: colocava-se na caneca de alumínio ou de ágata uma boa dose de café já adocicado e a cobria com colheradas de açúcar cristal até formar um grosso melado escuro no fundo da caneca; depois, ainda com o dia meio escuro por ser tão cedo, dirigir-se, sonolento, até o curral, subir em uma das suas tábuas e esperar o grito:
- “Quer o leite com muita ou com pouca espuma?”
Sempre queria com muita espuma o que exigia que o retireiro colocasse a caneca bem próxima do chão, aumentando a distância entre ela e o peito da vaca; para quem pedia com menos espuma o retireiro aproximava mais a caneca ao peito da vaca, mas em ambos os casos sempre as enchia até a boca com leite quente e perfumado.
Bebia-se o leite quentinho ali mesmo no curral e quase sempre um forte desarranjo intestinal exigia velocidade para alcançar o bananal que havia nos fundos da casa. Era lá o nosso WC.
Embora ansioso e querendo muito reviver o sabor de “beber leite no curral” procurei avaliar as condições locais para descobrir onde um possível desarranjo intestinal poderia ser resolvido. E, assim, vistoriando o local percebi que a uns cem metros do curral, em uma baixada, havia um capão de mato que poderia servir de esconderijo para resolver o provável desarranjo.
Apesar dos riscos concluí ser impossível perder oportunidade tão única.
- “Quero sim, beber leite no curral. O senhor tem café?”, perguntei enquanto tirava das costas a mochila, encostava o cajado no barranco e me dirigia à cerca do curral.
- “Tem sim, ali naquela garrafa. A caneca está logo ali no moirão da cerca, pegue a maior para o senhor”, disse de dentro do curral o retireiro cujo nome, vim saber logo depois, era Bié.
Fui até o moirão, peguei lá uma enorme caneca de alumínio, coloquei uma boa dose de café e subi na tábua do curral, e, como em minhas memórias fiquei aguardando:
- “Com bastante espuma, peregrino?”
- “Sim, bastante espuma, por favor.”
Enquanto tirava o leite para encher a caneca:
- “Vai para Aparecida?”
- “Sim, vou.”
Trouxe a caneca com a espuma derramando pela borda e disse:
- “Reze por nós lá. Tá aqui o seu leite.”
Delicioso, morno, doce pelo açúcar contido no café e como na infância a espuma fazendo bigode acima da boca...Tomo todo o leite e agradeço.
- “Boa viagem e que Deus o acompanhe. Não se esqueça de rezar por nós.”
- “Rezarei”, afirmei enquanto ajeitava a mochila às costas e com a língua saboreava o resto da espuma que formava o gostoso “bigode” branco de espuma do leite.
O desarranjo intestinal não deu o ar da graça, felizmente passei imune pelo capão de mato e lá fui eu caminhando agora com a barriga cheia de “leite tomado no curral” e com a memória revigorada, remoçada mesmo. Muito bom: o leite e as memórias nele contidas.
Mudando um pouco de assunto mas ainda fiel ao título e buscando relatar as pequenas generosidades me recordo que há uns dois anos atrás, na outra caminhada que fiz pelo Caminho da Fé, em apenas dois locais havia oferta de “água potável para peregrinos”. Lembro-me bem de um sítio, ao lado direito da estrada, com uma placa oferecendo água potável aos peregrinos. Paramos, naquela peregrinação tinha a alegre companhia do Pablo, e nos atendeu uma senhora que além da água potável conversou conosco e nos informou que logo logo instalaria ali um banquinho para o descanso dos peregrinos. Havia também, naquela caminhada ocorrida há uns dois anos, outra oferta de água potável: esta no sítio do sr. Joaquim, no município, se não me engano de Ouro Fino; este além dos banquinhos de madeira sob uma frondosa árvore, canalizou água potável de sua residência até aquele recanto e mais ainda: construiu perto do seu terreiro de secar café um “puxadinho” com ducha para banho – chuveiro elétrico, vejam, só – e uma “privada patente” de uso exclusivo dos peregrinos. Bom de papo, assim que vê os peregrinos se aproximando deixa sua casa e vai até o local de descanso contar histórias, falar de suas caminhadas e de sua fé.
Eram estes dois os locais onde água potável eram ostensivamente oferecidas aos peregrinos. Claro que sede não se passa no caminho. Independente destas ofertas basta, quando se tem as garrafinhas vazias, bater palmas nas portas e tem-se as mesmas enchidas, sempre com muita boa vontade e cortesia.
Pois então: aumentou o número de ofertas de água potável para os peregrinos no Caminho da Fé em pelo menos mais três locais.
Vale contar de uma fonte de água oferecida dentro do quintal de uma pequena casa, no município de Crisólia. Além da fonte o proprietário do sítio oferece, frente à sua casa, sob uma frondosa árvore, uma “área de descanso para peregrinos” onde se encontra uma mesa de madeira coberta com toalha, vasinhos de plantas decorando-a e pequenos bancos esparramados em sua volta. Pode?
Vontade de contar mais não falta, mas acho que já chega: uma generosidade minha aos leitores do blog.
2 comentários:
Olá Orlando...novamente suas histórias me lançaram à minha infância. Pois não é que tomei muito "leite no curral"? Minha avó e uma de suas irmãs mantinham uma porção de vacas de leite em um curral bem próximo de minha casa e volta e meia lá estava eu com minha caneca já com o açúcar para saborear o leite quente e espumoso!
Com um detalhe: muitas vezes levava a caneca com uma dose de groselha, que adoçava e dava um sabor e cor especial ao leite.
Olá Tonhão,
Acho um privilégio ter tido este tipo de experiência, para mim inesquecível. Agora esta sua "receita", com groselha, é novidade pura.
Abraços,
Orlando.
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