quarta-feira, 6 de maio de 2009

TEMBÉ



“Completados os cem anos, o indivíduo pode prescindir do amor e da amizade. Os males e a morte involuntária não o ameaçam. Exerce alguma das artes, a filosofia, a matemática ou joga um xadrez solitário. Quando quer, se mata. Dono de sua vida, o homem também o é de sua morte.” Jorge Luís Borges , “in” Utopia de um homem que está cansado.

Ao ser anunciado pelo cabo Jaime e entrar, Antônio Henrique verificou que a sala do delegado era bem menor do que imaginava:
- “Boa tarde, Dr. Edmundo”.
- “Que isso, Antônio Henrique, está me estranhando. Ainda ontem à noite bebemos cerveja juntos, falamos de mulher, de futebol, de seu amigo...sem essa de Doutor Delegado, meu!“
- “Sim, mas era no bar e não na sala do Delegado de Polícia. Posso sentar-me?”
- “Claro, sente-se. Fique a vontade, por favor. Está muito aborrecido?”
- “Sim...era meu amigo e eu gostava muito dele.”
- “Viam-se sempre, não?”
- “Não...nosso último encontro, fora o de ontem, foi há mais de trinta anos. Mas, embora isso possa causar estranheza, éramos amigos.”
- “Você está muito comovido. Quer deixar o depoimento para outra hora, ou mesmo, deixar para amanhã?”
- “Não, acho melhor não.”
- “Você é quem sabe. Vou, então, chamar o escrivão. Fale devagar, por favor, para que ele possa anotar. Nenê ainda não se acostumou ao teclado do micro, prefere a velha Olivetti, mas, agora, com esta história de tudo on-line...”
Saiu à porta e berrou:
- “Nenê, entre para colher o depoimento.”
- “Pode falar”, disseram, ao mesmo tempo, Dr. Edmundo e Nenê, o escrivão.
- “Vou relatar os acontecidos pelas palavras do próprio, posso?”
- “Sim.”
- “Foi assim que ele começou a me contar, ontem, a sua história.”
- “Pode anotar, Nenê.”
- “Era bem pequeno e calorento o quartinho do hotel, na verdade, um H.O: nele uma cama de casal, devidamente ”ornada“com duas toalhas velhas, surradas e descoloradas, mas, caprichosamente colocadas em forma de leque sobre o lençol, cobrindo algumas manchas duvidosas. Tinha, também, sobre a cama, dois destes sabonetinhos minúsculos, que parecem prensados dentro de um plástico azul e que, quando se pensa em usá-los, são necessários bons dentes para abri-los, e, claro, por se tratar de um quarto de hotel de alta rotatividade, duas ou três camisinhas;”sei não, mas logo logo, quando o preço do Viagra cair um pouco mais, um ou dois comprimidos fará, também, parte deste pacote, ou melhor, do “combo”, que é como se diz nos dias de hoje “. Estava lá aguardando Maria Amélia já há umas duas horas. Será que não viria? Se não viesse, de novo, seria o quinto encontro, tão marcado, tão ansiosamente esperado, a que ela não aparecia; pensando melhor, feitas bem as contas, se ela não viesse hoje, e é o que parecia, seria a sétima longa e frustrante espera neste quartinho de hotel. Há dois meses não a via, o que, para mim, era uma eternidade. Fixada na parede, uma pequena televisão, dessas de dezesseis polegadas, com imagens em preto e branco e um som de fazer inveja aos bailes funks da periferia: um ronco só. Aguardei e aguardei Maria Amélia. O que me levou a me encantar por uma mulher tão mais jovem? Ou o que é pior: o que levou Maria Amélia, uma mulher de 26 anos, linda, assediada por todo lugar que passa, profissional de sucesso em uma Agência de Publicidade a se interessar por mim, velho, com meus 58 anos, já calvo e cansado, com uma barriga proeminente que, apesar de flácida, dificulta carinhos mais profundos? Veja só, Antônio Henrique, Maria Amélia é uma mulher cheia de manias, que faz de mim gato e sapatos, o que quer e o que não quer. E eu a obedeço, como um vira-lata faminto de comida e de afagos. Seu último presente, comprado em “boutique” especializada em Nova Yorque, foram estas perucas: uma de cabelos e outra de barba. Exige e, claro, eu obedeço, que as use em nossos encontros; não sei se por fetiche puro ou por querer me remoçar com utensílios tão desnecessários e incômodos, tanto para serem colocados como para, simplesmente, permanecer com eles. Dá sempre um medo de que a barba caia quando, ao vê-la tão bela, despida, me renovo todo e, repleto de forças que não sei de onde vêm, me excedo em carinhos, toques e longos e desesperados beijos. Mas, ela exigia e sempre iniciávamos nossos encontros vespertinos comigo vestido com os adereços “comprados em Nova Yorque, no Soho, veja bem” dizia ela. Estava lá, naquele quartinho quente de HO, sonhando e esperando, e esperando, quando, na pequena TV, a voz grave e impostada de um locutor interrompe o filme da seção da tarde para anunciar “uma verdadeira tragédia ocorrida, há apenas alguns minutos, nas obras de construção do Metrô de São Paulo” me tirou do estado letárgico em que me encontrava. As imagens em preto e branco não deixavam dúvidas: era bem ali, perto do Largo de Pinheiros, que o mundo havia desabado, uma enorme cratera afundou a rua engolindo carros, caminhões e gentes; perplexo, mudei para outro canal, que também anunciava, agora com imagens ao vivo, do local onde ocorrera a tragédia. Com a certeza de que, mais uma vez, Maria Amélia não viria ao encontro, deixei o hotel, e me dirigi ao local da tragédia e, chegando lá, tive a certeza de que entre os carros, caminhões e pessoas engolidas pela cratera imensa que se formou, estava o meu Honda. Tomei um táxi e fui para a Rodoviária. Logo estarei sendo anunciado como um dos mortos, pensava...”
Nenê interrompeu bruscamente o depoimento:
- “Querem café? Vou buscar.”
Dr. Edmundo explicou: Nenê, agora proibido de fumar na sala do delegado, sempre inventava uma “vontade dos outros” de tomar café par sair um pouco, descansar as mãos do teclado, que passara a odiar, e fumar seu cigarrinho. O delegado, aproveitando a ausência do escrivão, pediu a Antônio Henrique para que, se pudesse, quando retornasse o depoimento, partisse de como ocorreu o encontro no banco de jardim da pracinha em frente à igreja matriz. Nenê chega com duas fumegantes e perfumadas xícaras de café: “parece que está muito bom este café, veio em boa hora, para por a cabeça em ordem” ,pensou Antônio Henrique. Nenê voltou ao odiado teclado do micro, Dr. Edmundo desligou seu celular e ordenou:
- “Voltemos ao trabalho. Todos prontos?”
- “Pode falar, Antônio Henrique”, disse Nenê, e Antônio Henrique reiniciou o seu depoimento:
- “Continuando, então...eu estava em casa, ontem à tarde, quando o telefone tocou. Eu mesmo atendi e fiquei surpreso ao ouvir o velho amigo, que se anunciava do outro lado da linha. Mais surpreso ainda, e feliz, fiquei ao saber que estava na pracinha me esperando, para conversarmos.”
- “Mas, prepare-se, estou mesmo banquinho que costumávamos sentar e papear, só que vai me encontrar de barba e não mais calvo, como até a pouco. Venha logo.”
- “Fui. Encontrei-o, realmente, no banco que costumávamos nos sentar para conversar e fumar. Nos abraçamos, comovidos, e ele iniciou o relato de sua história, que procurei contar usando de suas palavras, para ser o mais fiel possível. Fumamos, depois, em silêncio, um cigarro e ele pediu que eu telefonasse à sua casa para saber “dele”. Liguei e ouvi, do outro lado, a voz doce e triste de Beatriz, sua mulher:
- “Sim..estava lá e morreu, mas, ainda não acharam o corpo.”
- “Ele ouviu a conversa, ligou o seu celular, que, me disse depois, estava desligado desde sua entrada no HO, e telefonou para Maria Amélia:
- “Deus do céu, homem, você não está morto?”
- “Não, estava no hotel, te esperando...”
- “Mas que merda...pensei que havia morrido. Por favor, então, me esqueça; para mim, você morreu” e desligou.
- “Os dois telefonemas o deixaram abaladíssimo, foi perdendo a cor nas faces e um estranho suor inundava seu corpo molhando sua camisa e a falsa barba. “Deus do céu”, eu disse. “Quer um café? Vamos tomar um café, para fumarmos outro cigarro?”, perguntei, e ele respondeu:”
- "Não..não quero, obrigado."
E começou , outra vez, a falar:
- "Sabe quem passou ,há pouco, por aqui? A Mirinha. Rapaz, como continua linda a Mirinha. Que mulher, parece que a idade se esqueceu dela. Está casada? Interessante, sabe que li um conto de um escritor italiano, o Calvino, que conta a história de um míope que retorna a sua cidade natal. Seus óculos são sua máscara, como a minha barba e minha peruca, que impede que as pessoas o reconheçam, mas necessários pára que ele consiga reconhecer as pessoas. Uma loucura, porque quando tira os óculos, é reconhecido, mas não reconhece...Eu me senti assim com a Mirinha: eu a reconheci e quase tirei a barba para ver se ela me reconhecia., mas acho que não se lembraria de mim, mesmo sem barba e peruca postiças."
Parou para respirar e eu disse:
- "E então, você continua com sua mania de passar para o concreto os livros que lê? Achava interessante e engraçado aquela sua mania...lembra-se do tembé?”
- "Claro que me lembro, aliás irei lá, hoje ainda. Sempre achei, e continuo achando, que Guimarães Rosa passou por lá para descrever o local onde jogaram o seu Augusto Matraga. Adoro aquele local, a cachoeira, o precipício alto, com a pequena queda d´água e, lá no fundão, onde Guimarães Rosa jogou o Augusto, com pedras enormes e o pequeno poço...”
- "E você dizia que, se fosse mesmo lá o lugar onde teriam atirado o Augusto,ele não teria escapado, não?” procurei recordar-lhe.
- " Sim, desde que ele não tivesse acordado da surra levada no meio do tombo e tivesse tido forças para jogar o peito para o alto, como uma pássaro, e aliviar a queda, aterrisando devagar.”
Não pude conter o riso: " Você e sua mania de voar. Continua acreditando que pode? Pense em seu joelho quebrado, por tentar saltar de “pára-quedas”, com um guarda-chuva, do alto do pé de eucalipto...Se lembra, também, que não descansou enquanto não me levou ao tembé, me fazendo descer pelas escorregadias ladeiras, até seu fundo e encantado, realmente, é muito bonito visto debaixo, me dizer: o Guima passou por aqui, é certeza...bons tempos.”
- "Sim, muito lindo o tembé. Lembra-se que a professora de português reclamou porque dei a uma narração esse título? Tive que procurar no dicionário e comprovar que, apesar de indígena, a palavra existia e era correta sua aplicação? Pois então, Antônio Henrique, hoje eu vou lá no tembé?”
- "Fazer o que lá, rapaz ?", perguntei
- "Relembrar e ver se sei, mesmo, voar.”
- "Tá louco!”, disse-lhe e me ofereci para ir com ele.
- "Prefiro ir só. À noite a gente se encontra na pensão do Baca e tomamos uma cerveja, certo?”
- “ Você é quem sabe.” Fumamos mais um cigarro e nos despedimos, com o compromisso de nos encontrarmos depois do jantar.
- “Quando o relógio da matriz bateu oito vezes, e ele não aparecia na pensão, tive maus pressentimentos e resolvi te procurar no bar do Nenzinho. Lá, falei de minhas preocupações e você disse para eu não me preocupar, e que tomaria as providências. Depois disso, Dr. Edmundo, o que ocorreu já teve a sua participação. Fomos na viatura até o tembé e encontramos, na beira do precipício, a barba e a peruca postiças, e o papel dobrado, com meu nome.“
- “O bilhete de despedida vai ser anexado ao depoimento?”, argüiu Nenê?
- “Você é quem sabe, Antônio Henrique; é um bilhete pessoal. Se quiser, podemos transcrevê-lo e você fica com o original.”
- “Gostaria de tê-lo comigo.”
- “Então leia-o”, disse Nenê.
- “Vou ler:"
- “Antônio Henrique: Vou voar. Vou saltar no tembé e começar logo a contar, no pensamento, até três, bem rápido, e, logo que chegar no três, vergar bem forte o peito para cima, desafiar a lei da gravidade e aterrisar, devagarzinho no pocinho da cachoeira ou sobre as enormes pedras negras. Já completei os meus cem anos e preciso, urgente, deste voar."

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