Dr. Paulinho era o novo delegado de Sete Barras. Recém-formado, prestara concurso para delegado e fora muito bem classificado. Somente o desejo de retornar à sua região fez com que escolhesse as delegacias de Sete Barras e Eldorado para iniciar sua carreira. Alternadamente, dava plantões de dois e três dias por semana em cada uma daquelas pequenas e pacatas cidades.
Chegou à delegacia, abriu sua sala e percorreu com os olhos os papéis colocados sobre a mesa: uma queixa de roubo de galinha, outra de excessos de bebida e barulho, no baile do sábado, e uma, esta sim, grave: tentativa de enforcamento. Leu a queixa com atenção e, face ao dia tranqüilo que pensava ter, lamentou ter que tomar providências.
Chamou Molina, soldado que prestava serviço na cidade já há uns dois anos. Procurou ser o mais formal possível:
- “Soldado Molina, busque preso, no Bairro de Votupoca, o Ganga.”
- “Sim, senhor delegado. O senhor me permite saber o porque da ordem de prisão?”
- “Vá com a Rural da delegacia e volte antes do meio dia; tenho compromissos à tarde e vou precisar da perua.”
- “Sim senhor, seu Delegado.”
Molina era um jovem soldado, com seus trinta anos de idade. Solteiro, muito alto, pele clara e cabelos loiros, era um sucesso com as mulheres da cidade e fazia bom uso de seu charme. Pegou a chave e os documentos da velha Rural e partiu para cumprir as ordens do Delegado. Da cidade ao Bairro de Votupoca eram mais ou menos 14 quilômetros, por uma estradinha de terra que ladeava, no sentido de Eldorado, a margem esquerda do rio Ribeira de Iguape.
Molina sabia que Ganga não morava no Bairro de Votupoca. Na verdade, pensava, conclusivamente, “Ganga não mora em lugar nenhum: é um dia aqui, dois ali, uma semana do lado de cá do Ribeira e duas do lado de lá; parece cigano”.
A única certeza era a de que estava sempre acompanhado de Ritinha, sua mulher.
Ganga era um homem feio. Baixo, troncudo, braços excessivamente grossos e curtos, a pele escura marcada por sinais de catapora, os cabelos pixains, sempre sujos; os lábios grossos formavam uma boca com poucos dentes e os olhos, remelentos, debaixo de ralas sobrancelhas, eram pequenos, perto do enorme e gordo nariz. Andava com passos curtos, pernas meio abertas de tão grossas, braços balançando: parecia estar sempre imitando um macaco enorme. A fama era de que possuía uma força descomunal; chegavam a dizer que, certa vez, atravessara o Ribeira a nado, carregando nos dentes uma canoa. Os que diziam que era verdade e que haviam visto ação de tanta força eram contestados por outros que diziam que Ganga nem nadar sabia. Perguntar a ele pouco adiantava: quase não falava. Gostava mais era de dizer sim ou não.
Ritinha, sua mulher, carregava sempre a trouxa com a panela, uns garfos, faca e um velho e encardido cobertor. Acompanhava Ganga e trabalhava com ele nas lidas da roça, usando sempre o mesmo surrado vestido de chita e um pano sujo que lhe cobria os cabelos. Era mais clara que Ganga e, também, quase não possuía dentes na boca. Ambos estavam sempre descalços e tinham grossos calos nos calcanhares rachados.
Percorridos uns seis quilômetros, Molina pára na primeira chiboca à beira da estrada e pergunta aos caiçaras que lá estavam se haviam visto Ganga.
- “Não senhor. Deve estar prá frente, talvez no sítio do Nerso”.
Molina pôs a perua a andar e lá ficaram os caiçaras, curiosos. O que Ganga havia aprontado? E cada um tinha lá sua resposta: para um velho negro, Ganga tinha, com certeza, roubado alguém; o que coloca outro, logo, em defesa de Ganga, que ele conhecia muito bem: que nunca havia roubado e que nunca roubaria nada de ninguém, que Ganga tinha brios e que só não gostava, mesmo, era de, como nós, ter patrão fixo. A conversa prosseguia, mais uma rodada de pinga animava a roda de amigos e o assunto logo mudou.
Logo depois da terceira curva da estrada, depois da chiboca, Molina pára a perua para perguntar do Ganga a um grupo de crianças que, uniformizadas e com seus embornais cheios de livros e cadernos, iam para a escola. Molina pára a perua e pergunta:
- “Escuta, vocês viram o ...”
Foi só. Como um bando de preás perseguidos por cachorro bravo, a ,turminha, como um raio, se enfiou pelo meio do bananal e sumiu; logo, logo, não se ouvia um pio.
- “Cagões, medrosos, filhos da...”, reagiu Molina, e tocou em frente a perua, que, na estrada de terra e com tempo seco, deixava atrás de si uma nuvem vermelha de poeira.
Pouco depois, viu na curva da estradinha que um cavaleiro se aproximava. Molina torcia para que este não saísse correndo como aquele bando de meninos filhos da puta e lhe desse alguma informação de Ganga, a quem já estava começando a odiar: estava dando muito trabalho. O cavaleiro era Miguel, que, garboso, puxa as rédeas, parando Trovão, seu belo e arisco cavalo.
- “Bom dia, Sr. Molina. Em que posso servir?”
Miguel era um grande e temido valentão, com fama que ia de Eldorado até Juquiá. Conhecia Molina, já tinha sido preso outras vezes e havia estado, durante certo tempo, por mais de um ano, preso, por assassinato.
- “Viu Ganga por aí?”
- “Vi não e graças a Deus, porque se eu pego aquele nego, não sei o que faço dele. Mas, se conheço aquele filho da puta, deve estar na chiboca do Félix, bebendo pinga, fiado, porque dinheiro para pagar não tem, não.”
A chiboca do Félix era logo depois da escola de Votupoca. Molina toca a perua e Miguel segue estrada, comendo o pó deixado pela Rural. “Que será que aprontou aquele macaco prá polícia tá atrás dele? Tomara que prendam o desgraçado. Prá mim, melhor não existe que sumam com ele”. Seu último encontro com Ganga tinha sido em um domingo, no campo de futebol de Votupoca. Tinha lá um torneio, entre times de Juquiá, Eldorado e Sete Barras. Todo o povo da região presente para ver a tarde de jogos. Miguel havia bebido um pouco mais que o necessário e, do alto de seu cavalo Trovão, provocou Ganga, ameaçando lhe dar com o chicote que empunhava. Ganga quieto. Miguel, valente e orgulhoso de sua valentia, continuou a troçar de Ganga. Armou o chicote e ameaçou. Ganga segurou e, com força, puxou o chicote que estava preso no punho de Miguel; e, junto com ele, cavalo abaixo, veio Miguel. Ganga, como um tatu, emborcou-se sobre Miguel, que sentiu sua força descomunal quase lhe tirando a força de respirar. Foram precisos uns dez homens para tirar Ganga, em seu abraço de tamanduá, de cima de Miguel: a turma do “deixa disso” e mais um polícial que viera acabar com o tumulto. Miguel continua a esbravejar que vai matar, que vai dar uma surra, na próxima vez em que encontrar Ganga, mas, esperto, deixa que o carreguem para longe. Ganga, no mesmo instante, torna a sentar no chão e, como se nada tivesse acontecido, se põe, admirado, a ver o jogo, que havia parado e que recomeçara.
A perua com Molina alcança a fazenda Boa Esperança, do Minoru.
Minoru, japonês de Juquiá, tinha várias fazendas de banana, mas Boa Esperança era uma das maiores. Moderna, produzia banana tipo exportação e possuía até administrador, que era o Ezupério.
Ezupério, o administrador da Boa Esperança, era um galego alto, com quase dois metros e pouca prosa. O que se falava em toda a região era que, louco por um rabo de saia, dormia com todas as mulheres dos homens que trabalhavam na Boa Esperança. Assim ficava falado quem, casado, trabalhava na Boa Esperança.
Na sede da Boa Esperança, havia a chiboca do Ezupério. Sua mulher tomava conta, vendendo, para os agregados da fazenda e para outros, além de boa pinga, outras necessidades: banha de porco, arroz, farinha e querosene. Molina pára a perua, desce para tomar água e aproveita para saber do Ganga. Do paradeiro do Ganga não ficou sabendo, mas descobriu que a queixa de tentativa de enforcamento partiu de Ezupério.
Havia, na Boa Esperança, a uns cinco quilômetros da sede, um lugar que os caiçaras chamavam de “pantano”. Talvez uma antiga mudança de percurso do Ribeira, o “pantano” era uma região movediça e a sua travessia se dava sobre paus de eucaliptos, que, com em uma pinguela, eram colocados, verticalmente, sobre uma base de outros eucaliptos colocados transversalmente. À beira do “pantano”, havia uma cabana e uns pés de laranja e mexerica do rio. Lugar ermo e, segundo os mais medrosos, assombrado: “lá mora o saci”, dizem uns, enquanto que, para outros, no pé de guatambu, em frente à cabana, “já ficou amarrada a mula sem cabeça”.
Tomada a água e sem saber de Ganga, Molina segue em frente. Sai da Boa Esperança e chega ao sítio do Seu Benedito, velho e respeitado morador da região. O sítio do Sr. Benedito era vizinho da escola de Votupoca. Em frente à escola, lá, parado, fumando, estava o Sr. Benedito. Respeitoso, Molina cumprimenta e procura saber do Ganga.
- “Trabalhou pra mim, na semana que passou. Alguma coisa com ele?”
- “Uma queixa do Ezupério, se não me engano. Tentativa de enforcamento. Coisa séria.”
- “Sei dele não. Talvez na chiboca do Félix, logo na frente.”
Sob a fina poeira deixada pela perua, o Sr. Benedito fica ensimesmado, pensando. Ganga havia, do nada, aparecido na região, já há uns cinco anos, e até então tinha se comportado bem. Trabalhava hora para um, hora para outro; com o que recebia, comprava lá seus mantimentos, sua pinga e não bulia com ninguém, sempre respeitoso e quieto consigo mesmo.
Oscar deve saber. Chama o filho Oscar, que vivia mais a fim de pescar e caçar curiós e bicudos do que de trabalhar. Por suas andanças à toa, de tudo sabia.
- “Polícia passou procurando pelo Ganga, queixa do Ezupério. Sabe de alguma coisa?”
- “Sei, sim pai. Fui eu que desamarrei o homem do pé de guatambu, lá no “pântano”. O Ganga pegou serviço com ele, ele buliu com a Ritinha e se danou. O Ganga amarrou ele, com o cabresto do cavalo, lá no pé de guatambu, isso no dia de ontem.”
Foi assim que aconteceu. Ganga viu quando Ezupério apeou de seu cavalo branco e amarrou o animal no guatambu, frente à cabana onde estava Ritinha, fazendo a comida do almoço. Ezupério, primeiramente, foi até uma moitinha de banana, frente à casa, e se pôs a mijar, descaradamente, virado para a porta da cabana. Ritinha, de dentro da velha cabana, via e não estava, em sua singeleza, entendendo nada. Confiante, Ezupério arria as calças até o chão, com o enorme sexo teso seguro em uma das mãos e, sorridente, se aproxima da cabana. Com a outra mão, segurava as calças arriadas, quase no chão, com as enormes pernas brancas à mostra.
Entra na cabana e, do alto de seus quase dois metros, procura abraçar a pequena Ritinha, com seus metro e meio, que, ainda sem nada entender, coloca as mãos no rosto, procurando se proteger. Ezupério solta as calças no chão e, com as duas mãos livres, procura Ritinha. Respiração ofegante, olhos cerrados, a tara sem limites impediu de ver que, por trás, se aproximava Ganga, que, como um tamanduá, agarrou-o e o tirou da cabana para fora. Ezupério esperneava, as longas pernas brancas balançavam no ar, tentando, com toda força, desvencilhar-se daquele abraço forçado. Suas costelas pareciam quebrar sob a força de Ganga. Com o cabresto do cavalo de Ezupério, que Ganga havia soltado, o galego é amarrado no pé de guatambu.
Ganga entra na cabana e comem lá o que havia sido preparado para o almoço. Não olha para Ezupério quando, de barriga cheia, parte, junto com Ritinha e sua trouxa, à procura de outro lugar. Se tivesse olhado, teria visto o enorme galego amarrado no pé de guatambu, agora com o sexo mole e encolhido no meio das pernas longas e brancas. Mas, não olhou e se foi. Aproveitou e passou na chiboca do Ezupério, pegou um litro de pinga, um de querosene e um pacote de macarrão.
Oscar andava à procura de curiós e bicudos lá pelas bandas do pântano e viu o cavalo de Ezupério, sem cabresto, pastando, selado, por perto. Sua curiosidade o levou até a cabana, onde encontrou Ezupério furioso, gemendo e dizendo intempéries, amarrado, com as calças arriadas. Desamarrado, Ezupério ergue as calças, chama o cavalo e volta para casa. Havia ficado ali desde a manhã e o sol já se estava indo embora . Escurecia.
As feridas feitas pelo cabresto deram origem à estória do enforcamento. O louco do Ganga, que não trabalhava direito, quase o enforcou, dizia. Sua mulher pegou o jipe e foi à cidade buscar mertiolato para passar nas feridas. Aproveitou e deu queixa na delegacia.
Ganga estava na chiboca do Félix. Molina deu ordem de prisão e ele quieto, como sempre, chamou Ritinha para entrar na perua. Molina recusou.
- “Preso é você e não sua mulher. Ela não vai.”
Em uma de suas mais longas frases já pronunciadas, Ganga diz, sério: “Antão tamém nun vô.”
Impasse criado. Félix aconselha Molina a levar também Ritinha.
E, pela primeira vez na vida, os dois andam em coisa que não fosse a pé, cavalo e carroça. Pelas janelas da perua, os dois se encantavam com a velocidade das bananeiras que passavam.
A perua retorna com os três para Sete Barras.
Era uma época de luta armada e os guerrilheiros, liderados pelo Lamarca, estavam na região. O Exército iniciava uma longa operação, visando liquidar com os guerrilheiros. Naquela tarde, Sete Barras, que nunca tinha visto tenente ou capitão, tinha, nada nada, dois coronéis do exército brasileiro, uma frota de mais de trinta jipes, alimentos e cobertores que seriam distribuídos para a população. O delegado Paulinho, lá, com tantos coronéis e capitães, esperava a perua para dar início à mega operação.
Ganga chega à delegacia e a queixa foi desconsiderada, por “absoluta falta de provas”.
À tardezinha, Ganga e Ritinha, de volta, passam frente à chiboca de Ezupério. Chegam até o sítio do Sr. Benedito e o encontram frente à escola.
- “Tem serviço prá mim?”
- “Sim, Ganga. Pode carpir o bananal lá dos fundos”.
Sabia que, por dois ou três dias, lá ficariam Ganga e Ritinha, carpindo seu bananal. Depois...
3 comentários:
gostei do desenho. Agora além de escritor e fotógrafo, é ilustrador!!??
Landin,
É por estas habilidades escondidas e por outras que que ainda descobriremos que tenho você como o tio mais querido de todos, e a quem sigo como exemplo de vida (Pessoal e profissional).
Parabéns pelo seu aniversário, que de cara te impõe o desafio de acertar a idade na página inicial do blog...
Muita mais saúde, muito mais paz e mutíssimo mais alegria para permanecer o jovem escritor, motociclista, marido, pai e avô sensacional que você é.
Um grande beijo,
Feijão
Feijão querido!
Desafio cumprido: troquei o quatro pelo cinco. Aliás, espero muito, trocar um montão de quatros, cinco, seis...Com a família e amigos que tenho acho, realmente, que a vida é boa de ser vivida.
Obrigado pela visita e obrigadíssimo pela lembrança.
Te amo,
Tio Landim.
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