O tremor e o arrepio que me passaram pelo corpo foram iguaizinhos aos que havia sentido quando, depois de dois dias de procura, havia encontrado o pai morto, estendido no meio do mato, na beira do córrego, mordido por cascavel. Senti, naquele momento, o mesmo tremor e arrepio ao ouvir, lá longe, os berros de Maria, a minha mulher, que subia desesperada o morro, pelo caminho do velho cafezal. Gritava feito louca.
Certeza de que era o meu filho. Era o terceiro, de sete anos, que tinha gemido de dor e febre durante todo o dia de ontem e não tinha dormido nada nesta noite para amanhecer o dia de hoje. Estava, já há uma semana, doentinho: não teve chá, nem mesmo remédios velhos de farmácia, que a gente tinha em casa, que conseguisse tirar a febre e o mal de que o pequeno Fabiano estava sofrendo.
Maria, esbaforida e cansada da correria de casa até a roça do cafezal:
- “Tem que ir à cidade, na farmácia, comprar remédio. Menino não tá bom não.”
O frio percorreu mais uma vez o meu corpo e a descida, serra abaixo, para chegar em casa, foi rápida e desesperada. Deixei Maria para trás; a intenção era pegar logo o cavalo no pasto e levar o pequeno ao doutor: “melhor que comprar, por conta, remédios na farmácia do Seu Nelson.”
O bendito cavalo, sempre tão obediente, naquele dia não atendia aos assobios de chamada. “Que será que houve?” Tinha, com certeza, pulado a cerca e ido longe, para o pasto do serrado, à procura de comida mais farta. O jeito era ir buscá-lo no serrado e levar o cabresto, voltar montado em pêlo para chegar mais rápido para casa; depois, era lavar o rosto, trocar de roupa e enfrentar umas três horas de estrada até o doutor, na cidade, porque com o menino, assim, ruinzinho, não ia dar para trotar forte.
Cavalo arriado, eu e o menino trocados de roupa, montei e Maria me passou o Fabiano. Ajeitei o filho na frente do arreio e seu corpo, frágil e magro, ajustado ao meu, de tão quente de febre, queimava a minha barriga e me envolvia em uma tristeza sem fim, junto com um carinho doce e forte.
“Por que sofrer uma criança assim, que, de mal, mesmo, só vez ou outra, mata um ou ouro passarinho e que até já gosta de me ajudar nas plantações da roça?”, pensava.
Quando curvei o corpo para abrir a primeira porteira, aproveitei para ver o rosto do pequeno: os olhinhos fechados, a cabecinha tombada em cima do peito e a pele queimada de tanta quentura de febre. Uma dor imensa inundou todo o meu corpo. Então rezei e fiz uma promessa: “Se Fabiano sarar e ficar bom, juro, por Deus do céu, não mato mais caça, que também é filha de Deus”.
Uma barra escura no céu, acima da serra, anunciava as pesadas chuvas de dezembro. Tinha sido um ano de seca brava. Colheita de arroz ruim e o café não floriu. Mas, “tudo isso agüento se o menino sarar logo”.
Fiz um pacto com Deus: combinamos que o menino só morreria depois de crescido e de ter me dado netos para eu brincar na velhice; ganharia tempo, assim, para amá-lo. O trato me reconfortou, cheguei a sorrir e, também, reconheci que não tinha forças, naquele momento, para enfrentar a sua morte.
Metade do caminho já havia sido percorrido: o Taquari e a Fazendinha tinham ficado prá trás e, do alto da serra, já dava para ver o Rio Grande lá embaixo, margeado pela pequena vereda.
O corpo do menino continuava se apoiando totalmente na minha barriga. Queria fumar um cigarro, mas não dava: uma mão ocupada em segurar as rédeas do cavalo e o outro braço cruzado no corpo do menino, segurando-o firme. Sua cabecinha, tombada, apoiada em meu braço.
Agora, sentia que a febre já passara. Minha barriga já não mais fervia de quente com o calor do Fabiano. O braço forte, de tanto capinar café e roçar pastos, apertava o corpinho magro, atendendo a um apelo que não sabia de onde vinha: queria sentir seu coraçãozinho bater e seu peito inchar e desinchar com a respiração.
Nada!
Meu corpo se enrijeceu e, de novo, o tremor tomou conta de mim.
O cavalo, Brotinho, trotava obediente, em uma marcha leve, parece que querendo fazer a viagem melhor para o menino: nada de seus costumeiros refugos. Queria, mas não tinha coragem, parar o animal, descer e olhar direito para o Fabiano e me garantir que estava tudo bem, que ele tinha sarado, que a febre já tinha ido: Deus havia prometido - e ia cumprir - que ele ainda me daria netos. Era a esperança!
Apertei forte o peito do filho e senti os ossos de suas costelas debaixo das poucas carnes. As mãozinhas pequenas, com as unhas grandes e sujas -“de luto”-, pousadas e quietas em minha perna: imóveis e amarelas.
Um frio monstruoso apoderou-se dos dois corpos. Apertei e apertei o peito do menino querido. Nada de sentir. Achei consolo pensando que talvez estivesse respirando fraco e que seu coraçãozinho nunca bateria tão forte, que desse para eu sentir o seu “toc” “toc” no meu braço que cruzava e segurava o seu peito.
“Não, morto não está. Não gemeu e antes de morrer se geme, sempre. E também tem o trato com Deus. E, desta vez, Ele sabe que vou mesmo cumprir.” Fabiano devia era estar dormindo, cansadinho; a febre tinha passado; tudo como combinado e acertado com Deus.
Ele é pai e entende minha dor, pensava. Logo, logo chegaria à cidade, o doutor dava consulta no menino, eu comprava os remédios na farmácia; tudo ia se resolver: Fabiano ia voltar a correr pelos pastos atrás do Brotinho, ir para a escola para aprender a ler e eu, juro por Deus, não mais caçaria, não brigaria mais com a mulher, só beberia uma cachacinha ou outra nos domingos ou em dias de festas e não bateria mais nas criações; me tornaria um homem bom e puro; desta vez, cumpriria, Senhor, podia confiar, não seria como das outras vezes.
Aí me deu uma vontade louca de ver o rosto do menino, mas a coragem era pouca. Os dois corpos colados, frios, obedeciam ao ritmo da marcha do cavalo. Lágrimas desciam pelo meu rosto. O cavalo, conhecedor dos caminhos, seguia por sua conta e risco; eu já não tinha mais atenção para guiá-lo. Para distrair, olhava as árvores à beira da estrada e, ao longe, elas desenhavam, em suas copas negras, monstros horrorosos, de pôr medo em qualquer cristão temente a Deus.
Então, num ato máximo de coragem e para provar para mim e para o mundo que Fabiano vivia e respirava - que a febre é que tinha passado em seu corpinho agora frio - segurei firme as rédeas, assobiei o costumeiro “psiu” e Brotinho, obediente, parou.
Com cuidado, apeei do cavalo e o corpo da criança me acompanhou, pequeno, duro, inerte.
Morto!
Desesperado, sentei no barranco da estrada com o filho no colo e chorei.
Como, na hora, não sabia direito como chorar, uivava forte e meu peito sacudia em soluços incontroláveis, doloridos e sem ritmo.
Tudo tão fatal, tão irrecuperável, tão sem volta.
Não queria mais saber se seria bom ou ruim, se matava ou não matava mais caças, se beberia ou não beberia: Deus não havia cumprido o combinado.
Olhava Fabiano e sabia-o morto.
Foi daí que me culpei, culpei a mulher, culpei os outros filhos, os tios, a professora de Fabiano, a vida, enfim, tudo; tinha que achar quem era o culpado por uma morte tão imerecida.
“Agora, com Fabiano assim defuntinho, vão se arrepender das maldades que fizeram com ele; vão sofrer de remorsos.” E chorei ainda mais pela surra que dei no menino no dia em que ele comeu toda a mistura que Maria tinha colocado na marmita. Sabia que, a partir dali, com tanta desgraça, não teria, nem mesmo, mais fome.
Abracei o corpo frio e montei de novo no cavalo, agarrando o pequenino filho defunto. Trotei rumo à cidade, para mostrar, e para que todos vissem, o filho morto e a minha dor.
“Não”, pensei, “vou voltar para casa e tomar as providências para o velório: quero lhe dar um caixãozinho branco”.
“Não, vou antes até a cidade?”
Resolvi e fui: assim, até voltar para casa, alongava mais a distância e o tempo de ficar sozinho, abraçado com aquele meu corpinho morto.
3 comentários:
Caro Orlando,
Passo sempre por aqui. E agora com comentário. Não sobre mais uma história, mas para passar-lhe uma tarefa da comunidade blogueira, um tal de meme das meias dúzias. Em resumo, você terá de: visitar meu Boteco e ver lá o meme, informar seis coisas sobre você,indicar mais seis memes,continuar a corrente por meio de seu blog.
Veja o que fazer em
http://jarbas.wordpress.com/2009/01/18/meme-de-meias-duzias/
Abraço,
Jarbas
Olá Orlando,
Conforme conversamos, estou te fazendo uma visitinha.
Abraços
Daniel
Orlando...uma história pungente essa da morte do menino Fabiano. Lembra os "causos" de Guimarães Rosa. De "cortar o coração" como dizia minha avó, uma "caipira da gema"!
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