Caatingas, serrados e agreste: meu mundo; os horizontes, longínquos, que emolduraram – tal qual a dourada e rococó moldura do retrato em preto e branco, margeando e prendendo dentro dela um austero e severo velho de enormes bigodes, olhos negros amendoados, lábios finos, cabelos negros escorridos – minha vida teve, nos de sempre, páramos agrestes, céu de poucas nuvens e sol forte, ardente, torrando o chão de áridas terras, vincando, enrugando e bronzeando a pele amarela que ganhei da mãe – uma índia da tribo dos tapuias -; minha vida? uma vida mais de vaqueiro a andar sempre - como um mascate – mas meio sem rumo, sem precisão de retornar ás antigas casas, um sempre andar, andar, a cada dia, a cada ano, nas secas e nas invernadas: carência de sair à busca pastos cada dia mais distantes, os tão necessários pastos com ramas e matos para alimentar os gados do patrão, dar ao gado força - ao menos - o suficiente para que as brancas vacas de longos chifres, tetas pequenas, dessem crias o mais poder, pois de cada quatro crias uma é minha, e minhas vacas e meus bezerros e meu cavalo e meu jegue precisando de pasto e eu a cada ano indo mais longe, me afundando sertão afora à busca de menos pobres e raspados pastos. O sal: o sal comprava do patrão; cada cabeça de gado que sobrevivia às durezas da caatinga aumentava a carência de sal (conheci um vaqueiro mineiro, vindo dos lados do Jequitinhonha, que pronunciava “sali” e não sal, “bassoura” ao invés de vassoura e “meli di abeia” e não mel de abelha, muito amigo, virou meu compadre, compadre Bié, que gostava de contar, com seu palavreado musical, histórias de assombração e da mula sem cabeça que, segundo Bié, existiam e ainda existem, em grande número no vale do Jequitinhonha) aumentava mais ainda a dívida com o patrão, seu Ramalho que contava - mais quando bebia umas pingas era que o patrão soltava a língua, no normal era de poucas falas, calado, rídico, apenas vez ou outra um “tá tudo bão com as vacas?”, “então tá bom” – que era descendente direto do bravo João Ramalho, português safado de esperto, casado em regime de temericó com mais cinquenta índias, não sei como dava conta de tantas, semelhava, este português João Ramalho, ao boi inteiro no pasto de tantas vacas ou do galo no terreiro de muitas galinhas, e eu pensava, quando seu Ramalho contava essas histórias, e na maioria das vezes concluía - comigo mesmo, em silêncio sem comentar – que isso, de ficar casado com mais de cinquenta índias era igual as histórias de mula sem cabeça do amigo Bié: não passa de invencionice da mente humana, nada de fato ocorrido de verdade, onde já se viu uma mula sem cabeça, por onde ia conseguir enxergar? pelos buracos traseiros, sujos de cocô ou de amarela urina?, pura invenção, nada real, mas continuando o que antes falava: a cada ano que passava, menos eu via o patrão e suas histórias; vez ou outra, por puro acaso a gente se encontrava nas vaquejadas de junho ou julho: bom dia, Nenzão!; e eu, cerimoniosamente retirava o chapéu de coro da cabeça: bom dia, meu patrão, senhor Ramalho!; e quantas cabeças nós temos agora Nenzão?; pois acho que mais de cem, meu patrão, coisa de cento e oito se não errei nas contas; errou não, Nenzão, o Quinzinho recontou as cento e oito que você criou que se juntaram a outros e mais outros tantos e se constituiu uma grande boiada – minha – que Quinzinho e mais uma comitiva de vaqueiros está levando para vender na capital e comprar sal e remédios; careço de sal, meu patrão: os pastos cada vez mais longe, poucas aguadas e é o sal segura a boiada perto dos currais para dar leite e lamber as crias; Quinzinho vai trazer sal e você paga com cabeças de gado, o sal anda cada dia mais caro, uma carestia infernal, estamos em tempo de vacas magras, vaqueiro Nenzão; e então a gente se separava na festança da vaquejada, vaqueiros e peões de um lado os patrões do outro, eles falando de políticas e entre nós se contava de vacas, de mulheres, da seca brava e se contava histórias acontecidas ou não e se escutava os cantadores que ralhavam a viola afinada e com a garganta molhada de pinga, bucho cheio de farinha e rapadura que cantavam:
“Tornou a dizer de novo
Ali aos seus camarada:
- Boi e vaca que morrer
Hoje, de perna quebrada,
Tudo isso é para comer
A mim não se deve nada.
Ficou o povo animado
Com as palavras do patrão
- Vamo agora comer muito
Farofa, carne e pirão...
Até eu estive lá
Também dei meu empurrão.” (*)
(*) Luís da Câmara Cascudo, Vaqueiros e Cantadores.
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