“Vaguear pelo mundo, sem se possuir nada e sem ter necessidade de coisa alguma, a não ser do pão de todos os dias; não humilhar ninguém; percorrer a terra, tranquilamente e sem ninguém nos conhecer! ...Também eu quero viver assim.” A mãe, Maxim Gorki.
Continuo, então, ao que andava a te contar,
Foi em uma madrugada que encontramos o acampamento da tribo de Igor no pé da serra Geral: umas quatro carroças rodeando uma tenda enorme, o toldo descorado pelo sol e pelas chuvas, puído, mais ao fundo, separadas tendas menores – uma aqui e outras ali -, no meio da praça, perto da grande barraca de lona, uma fogueira ainda acesa – o fogo minguando de cansado de alumiar a escuridão para espantar a onça suçuarana que não apareceu, dois cachorros magros, costelas à mostra, ladraram forte, bravos, dentes à mostra e Igor ralhou bravo: quieto listrado, se esqueceu do dono? e foi só ouvir a voz grave de Igor que listrado e o outro cachorro, ganiram um caim! caim! longo, os rabos girando forte, os pintos não segurando a urina, se mijaram todo, e das tendas foram saindo gentes: ciganos com os olhos remelentos, mulheres com os negros cabelos despenteados, peitos desnudos, uma velha de cabelos brancos: meu filho, meu filho! e todo aquele povo acordou barulhento, a fogueira teve seu fogo reanimado com sabugos de milho, os tocos de angico se abrasearam vermelhos e soltaram chamas amarelas, o caldeirão com água para ferver colocado no centro da fogueira, sorrisos, abraços: e por onde esteve por tão longo tempo?; andei ficando preso; e te soltaram?; não: fugi da cadeia com a ajuda destes dois aqui; e foi só então que fomos – Militão e eu – notados pelo bando de ciganos.
O dia foi clareando devagarmente, dando tempo para que a tribo de ciganos se visse toda acordada e o silêncio da madrugada foi sendo quebrado – pouco de antes dava para ouvir o barulho das minhocas fazendo tuneizinhos dentro da terra - por uma crescente onda de misturados sons, uma algazarra infernal de vozes, sorrisos, gargalhadas, cantos, um rapaz pegou o violão e ponteou uma música alegre, Igor entrou em sua barraca e ficou por lá em amores com as moças que havia roubado e enquanto um velho cigano afiava a faca para matar o cordeiro, outro colocava mais tocos de angico na fogueira e o sol apareceu – plenamente - na barra do horizonte.
Uma senhora, cabelos brancos, peitos caídos, chegou até onde Militão e eu estávamos - eu um pouco desorientado, já desacostumado que andava de ouvir tanto barulho, monte de cores, gentes, alegrias – e ofereceu a cada um caneca com café quente – ralo, doce – e perguntou pelo nosso nome - me chamo Luiza, disse - , e apontou para duas tendas que ficavam debaixo de um pé de jenipapo: estão vazias, querendo descansar...Terminei de tomar o café e senti bater em todo dentro de mim uma canseira boa, o café tirou o amargo de losna que tinha na boca, um rapazinho cigano desarreava os cavalos, senti uma preguiça boa de nada fazer, fechar os olhos e dormir, um nada pensar, desculpe-me pensando que o mundo gira de qualquer jeito, tanto faz eu estar aflitamente pensando quanto lerdamente quieto, ocioso no pensar e no fazer, e deitei na tenda debaixo do pé de jatobá e dormi.
Dormi fundo, pesado e acordei com o barulho de música lá fora, senti o delicioso cheiro da carne do carneiro assada na fogueira, os ciganos cantavam, bebiam festejadamente, não cabiam em si de felicidades, dançavam, os homens com olhares para os corpos morenos das mulheres que volteavam, rodopiavam - sensualmente – ao ritmo de uma música alegre, libertadora, e aproveitei para ficar apreciando aquilo tudo de dentro da tenda, quieto, sentindo que aquele mundo não era o meu, o mundo dos gerais, das veredas, um mundo mais quieto e talvez um pouco mais triste e contido. Saí da tenda, comi carne de carneiro assada, me ofereceram e tomei goles e goles de uma forte bebida, me senti embriagado, a língua grossa dentro da boca e os ouvidos, mais sensíveis, trazendo a música para dentro da alma e os olhos fixos nos corpos das ciganas que rodopiavam em volta da fogueira, as chamas amarelo avermelhadas dos troncos de angico subindo e queimando o ar, aquecendo meu ventre, e surge uma grande necessidade de mulher, de tocar em morenos corpos, beber seios, roçar lábios, sugar salivas, sentir as ondas de dois corpos unidos, acho que o domina o homem é o que tem no meio das pernas...Voltei, cambaleando, para a tenda e tornei a dormir.
Acordei, já escuro, o gosto de losna amargo tomando outra vez conta da boca, a saliva grossa, o ar carregado e fedido dentro da barraca, saí para mijar, tudo já escuro, as estrelas dominavam o céu negro, uma estrela caiu e fiz um pedido: quero mulher, e me lembrei das moças da rua Aurora, nas noites do dia de pagamento, na sala, um sofá vermelho e a gente bebia cerveja gelada, as moças gostavam de beber cinzano, faziam amor com hora marcada, sentavam em meus joelhos e me chamavam de Bem, Benzinho, vamos logo meu bem! Voltei para a tenda e deitei, os olhos fechados para pegar novamente no sono: senti no escuro da noite um vulto clareado pela luz das estrelas que entrava na tenda e senti delicadas mãos tocando meu corpo, se enfiando abaixo da camisa, lábios grossos – carnudos - procurando os meus, os seios firmes, grandes e longas pernas tomando conta de meu corpo, as mãos pequenas ousando liberdades maiores, se enfiando calça a dentro e acariciando minhas partes, eu querendo cegamente tatear o rosto e desvendar sua beleza, e ela fugindo do meu tocar, só ela se dando ao direito de tudo fazer, as roupas atiradas ao lado dos corpos nus, quem seria? mulher casada ou moça virgem? quem seria que quietamente me dominava, mas isso de saber quem era em alguma importância? naquela tribo eu só conhecia Igor e a velha de peitos caídos que me ofereceu café, aqui seios fortes, redondos, e dava para eu escutar o seu respirar ofegante e o meu coração batendo forte, fora do compasso de tempo, batendo apressado, e o seu tum! tum! tum! chacoalhando meus ouvidos. E, silenciosamente, tal como havia entrado o corpo saiu nu da tenda em direção à fogueira, as nádegas fortes, os longos cabelos chegando às costas, e com o andar silencioso, amassando as moitinhas de capim com o peso de seus miúdos pés e foi sumindo, devagar se evaporando pela noite, não olhou para trás, lá fora a música foi diminuindo e se escutava o coaxar de um sapo e o cricri!...cri! de um grilo noturno, até que o silêncio voltou a dominar o mundo!
De madrugada Igor chegou na tenda em que dormia e vi que ele já vinha acompanhado de Militão e acordei com seu falar: temos que palestrar, Arcebides!; e os meus olhos – acomodados com a escuridão da madrugada - se recusando a obedecer a ordem de abrir, queriam continuar descansando fechados; Militão boliu sorrindo com minha preguiça: tem vergonha não? tanta preguiça que nem parece mineiro; e Igor, agachou-se, sentou em cima dos calcanhares e com sua voz grave e calma: tenho que fugir senão logo a polícia morde meu calcanhar; nós, ciganos, resolvemos que iremos para o norte, região dos Goiás, comigo sempre um ou dois dias à frente da tribo e agora vocês é que decidem se vão mais uns tempos comigo ou se querem pegar outro caminho, sozinhos; os cavalos, agora três, estão selados, prontos, vamos?
E foi assim que o silêncio e o descanso da madrugada deu-se por finado: um pouco em antes dava para escutar o cair do sereno para orvalhar as plantas, e agora, tão de repente, ainda escuro, o céu coalhado de estrelas, e já vem a brava necessidade de se tomar decisões, para onde vou? será que acompanho, mais o Militão, o cigano Igor nessa fuga sem fim, indo agora para o norte e eu querendo ir para o leste? mudo eu o meu rumo? deus do céu, careço de repouso de tanto fugir; e eu comigo mesmo ali pensando e os olhos de Igor exigindo respostas; o Militão, ali do meu lado, tomou a iniciativa de falar: qualquer paixão me diverte, até a hora que eu encontrar um circo para eu poder cantar e dançar eu sigo vocês para qualquer ponto cardeal; então vamos, falei e concordei por fora, mas comigo mesmo decidido que o que eu carecia era de um ou dois dias para eu saber tomar um rumo mais meu, de acordo com o que eu queria, só que eu não tinha certezas do que queria e tinha então que resolver um rumo a tomar, mesmo sem certezas de saber o que, realmente, eu queria.
O rapaz que tocava alegres músicas no violão chegou com três cavalos arriados; Igor tomou as rédeas do maior, um cavalo negro, montou e do alto do animal nos olhava pedindo pressa: embora antes que clareie o dia!
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