A festa do casamento ia terminando devagar: o bolo de três andares defeito, derrubado tal qual uma tapera implodida pelas chuvas de São José, a toalha de coloridas balas de coco, agora rendada, deixando aparecer o negro da madeira de jacarandá, seus nódulos, suas rugas. As conversas iam diminuindo de altura, de tom, de entusiasmo: e a Didinha, toda linda ainda em seu vestido de organdi, acendia nos homens ancestrais desejos e uma imensa vontade de ir para casa satisfazê-los; naquela noite escura, estrelada e fria de julho, protegidos por mantas tecidas com lã de carneiro, cada quarteirão da cidade iria viver momentos de amor.
E a casa foi ficando vazia com a ajuda de Dona Cecília que, sem papas na língua, falava para quem quisesse ouvir: vamos deixar os nubentes – ela achava lindo dizer nubentes – sossegados, estão cansados e foi ela e Cidona, que havia confeitado o bolo e ajudado a servi-lo, que se sentiram damas de honra, ou pajens em histórias de princesas, ajudando Didinha a se desvencilhar do vestido branco de organdi e a desocupar o leito dos nubentes dos presentes embrulhados em brilhantes papéis coloridos.
Despediram-se desejando boa noite e Didinha se viu só no quarto, sentada na beira da cama sem seus presentes, vestida com um peignoir branco, rendado, decote delineando os seios fartos e belos, o cinto confirmando a cintura delgada, as redondas e firmes nádegas e as longas e bem torneadas pernas.
Na sala, Eduardo conferia os presentes e tossia!
Didinha sentia-se confusa: não era tola e sabia o que deveria acontecer entre os dois e, a bem da verdade, ansiava por isso. Seus encontros anteriores com Eduardo foram sempre vigiados: ora pelo olhar secreto de jesus e da virgem maria – que atravessava os telhados e infiltrava alma a dentro – , ora pelo pigarrear do pai no quarto ou pelo barulho da vassoura de Emerenciana na cozinha; nada de ousadas liberdades: apenas uma vez Eduardo, mais corajoso, beijou-lhe rapidamente a face e ela dormiu sentindo os lábios do namorado, molhados, úmidos em seu rosto: teve um bom sono, lembra-se bem. Agora, ali, só, ascendiam em todo o corpo ondas ardentes, circulares, abrasando suas partes íntimas - uma única vez tocada por uma mão de homem - e a solidão aumentava sua ansiedade, seus desejos e foi assim que permaneceu: sentada na beirada da cama esperando que o acesso de tosse de Eduardo acalmasse para ele aparecer no quarto, pijama de flanela, listras azuis, os grandes olhos esverdeados um pouco tristes, as mãos enormes... E foi assim mesmo que aconteceu: tão logo cessou mais um ataque da rouca e molhada tosse, Didinha ouviu o ranger da porta do quarto e o andar silencioso de Eduardo se aproximar, viu sua sombra – enorme – cobrir a parede oposta do quarto e ela ir adivinhando – pelo desenho da sombra na parede – seus movimentos calmos, o colchão ceder ao seu peso magro, logo ali ao seu lado e sua mão esquerda, com a aliança de ouro amarela brilhando no dedo, procurar a sua e quando achou sua pequena e gorda mão parou, quieta, quente: Didinha ousou olhar para o marido e viu um rosto em brasa, febril, congestionado, indagando auxílio: o que foi? estou tão mau; o que você tem, alguma dor? sim, demais: dói o peito e tenho uma fraqueza que bambeia minhas pernas; quer um chá? não se preocupe agora Didinha, é a nossa noite; Eduardo você está pegando fogo de febre, tenho que chamar o médico; não aguarde até amanha, me faça então um chá. E Didinha foi ao quintal, colheu folhas de erva-cidreira e acendeu o fogo com sabugos de milho e gravetos para ferver depressa a água, fez o chá forte de erva, adocicou com melado de cana e ofereceu a xícara ao marido que entre um acesso e outro de tosse bebeu. Eduardo queimava de febre: suores, calafrios e tremores agitavam o corpo magro e Didinha protegeu suas costas com uma manta de lã e pousou suas mãos sobre as do marido que exausto dormiu meio sentado, as costas apoiadas na cabeceira da cama.
Didinha deitou ao seu lado e contra sua vontade – descontroladamente desobediente - seu pensamento rememorou uma tarde, quase noite, quando o Odílio – vaqueiro na fazenda de seu pai, quando ainda moravam na roça – veio com a charrete busca-la na cidade e perto da Fazendinha ela sentiu que ele olhava para seus seios, os olhos esbugalhados de estranho carinho, e entendeu o que acontecia quando ele parou a charrete debaixo do pé de manga e suas mãos calejadas do trabalho de carpir café, agora delicada, foram invadindo seu vestido, desabotoando sua blusa e os dois desceram da charrete, suas pernas tremiam, as mãos e os lábios de Odílio procurando os bicos dos seios, ela em estado meio de vertigem sentiu as mãos calejadas descendo, procurando seu ventre, tocando suas tão íntimas partes, que respondia esparramando caldos, e ela disse: vamos? e Odílio continuava a tocar suas partes, seus seios, beijar os bicos e os dois, em transe, caíram na grama, ele pesado e leve, duro e macio em cima dela, os seios descobertos protegidos do sol da tarde pela sombra da mangueira, a saia levantada, pernas à mostra ; e tudo o que para ela parecia não ter fim – paraíso de prazeres - terminou repentinamente: em num salto, repentino, exigindo sobre humano esforço, Odílio desvencilhou-se dos amores, de seus seios, de suas pernas e voltou para a charrete, os olhos febris – igual ao do Eduardo há pouco - e pediu ordenando: vamos para casa, isso não pode e não conte para seu pai. E Didinha, ali deitada ao lado do marido, percebeu – horrorizada - quando tocou a calcinha que suas partes estavam umedecidas e rezou pedindo perdão pelo pecado do pensamento.
Na madrugada os acessos de tosse se tornaram mais fortes e constantes. Eduardo levantou-se, foi para o quintal onde o frio cortante do mês de julho se juntou à febre e ordenou que ele retornasse para o quarto e ali continuou a tossir e manchou o lençol de catarro e sangue. Na manha seguinte Didinha, conforme costume, lavou o lençol e pendurou no varal de arame confirmando sua primeira noite com um homem.
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Passado o mês de agosto – mês de cachorro louco - o vento deu tréguas e, naquela manha de domingo, o sino badalou forte, chamando os filhos de deus para a missa das nove: os dem de le lém ressoaram na praça com o sol brilhante penetrando os ipês, esquentando o chão colorido de amarelo pelas flores caídas durante a noite. As crianças de terninhos novos querendo brincar de pisar e amassar as flores sob os bravos alertas dos pais: não vai me sujar a roupa nova, vamos logo para dentro da igreja rezar, pedir que deus dê saúde para nossa família e os pequenos não gostavam da obrigação de assistir as missas aos domingos e dias santos de guarda: faltava ar na igreja, alguns desmaiavam e o padre dizia que era fome porque estavam em jejum para receber em seus corpos pequenos o corpo de deus menino mas o médico da cidade dizia diferente: era o ar rarefeito e impuro a causa dos desmaios dos pequenos e, às vezes, de adultos, sendo que entre estes os que costumavam desmaiar eram os mais velhos.
A missa das nove era a missa dos ricos: tinha canto, órgão tocando no coro e o padre, elegantemente paramentado, subia ao púlpito para e pregar os evangelhos e a palavra do senhor com microfone ligado a alto-falantes que explodiam as santas palavras por toda a cidade, o que desagradava aos espíritas e aos poucos batistas presbiterianos que tinham na cidade uma minúscula igreja.
Dona Lourdes e seu Moacir, agora não mais no único hotel ou pensão da cidade, mas já com a mudança feita, morando em casa alugada, uma boa casa, perto da praça, em uma travessa da rua principal; a mudança chegou de São Paulo nos vagões do trem da Mogiana, tudo muito bem embrulhado, empanados em grossos cobertores: móveis, camas, uma cristaleira e outras novidades como uma enorme geladeira branca e uma rádio vitrola RCA ; para impor respeito e mostrar as posses, seu Moacir chegou choferando o Ford Bigode 29: azul escuro com lonas amarelas cobrindo os bancos de couro.
E o casal, elegantemente vestido, partiu para a primeira missa na, agora, sua pequena cidade. Ele paramentado com um terno de linho branco, camisa e gravata, sapatos de couro alemão e ela, Dona Lourdes, vestida com um tailleur azul escuro, também de linho, sapatos de salto alto, meias finas e chapéu sobre a cabeça, tantas novidades para a pacífica e morna pequena cidade. Na praça, esperando o horário da missa chegar, cochichos : pra que chapéu? o sol não está tão quente assim. besteira homem, o chapéu é mais coisa de moda, de elegância.
Para atravessar a rua o casal olhou para os dois lados, ainda não esquecidos do movimento de carros da rua Barão de Itapetininga, que atravessavam para ir aos concertos e óperas do Teatro Municipal, esquecidos de que aqui o movimento é pouco, uma ou duas charretes e dois Fordes bigodes, sendo que um, o mais novo e brilhante, era justamente do seu Moacir. Ela se apoiava aos braços fortes do marido, ambos com os olhares para o alto, cientes da elegância: estão todos te olhando Maria de Lourdes; e ela: acho que você chama mais atenção por me oferecer o braço.
E ao iniciar a subida das escadas da igreja cada um se pôs a rememorar!
Seu Moacir vendo a elegância da mulher, talvez até exagerada para aquele fundão de mundo, lembrou de seu casamento, acertado – se bem que ele de pleno acordo – entre as famílias para tentar, em parte, diminuir o falatório da gravidez de Maria de Lourdes, moça solteira, professora formada pelo Instituto Caetano de Campos que se engravidou e teve um filho, agora um belo rapaz de dezesseis anos, fruto de sua louca paixão por Vicente, médico casado com filhos com quase a mesma idade da linda e amada professorinha. E um congresso de Psiquiatria, no Rio de Janeiro, selou o amor entre ambos: na viagem – que ela realizou sem a autorização e contra a vontade dos pais - no luxuoso trem noturno São Paulo - Rio de Janeiro, e os dias seguintes no elegante Palace Rio – onde o congresso se realizou – o amor se fez e Lourdes se engravidou. Depois veio o casamento combinado, a viagem para a Europa, o filho nascido em Portugal; mas, é bom que se diga, que nada arrefeceu sua paixão pelo querido Vicente: continuavam a se encontrar para orgias amorosas, ela esquecida dos pedidos dos pais para que evitasse o amado e este esquecido dos eternos “prometo que não vou mais encontrá-la” - promessas nunca cumpridas, ao retornar nas madrugadas, o dia clareando - à mulher que o esperava chorosa, deitada no sofá da sala, clamando por respeito a ela e aos filhos.
E Dona Maria de Lourdes pensava, subindo elegantemente os degraus da escada da igreja. Belo homem o seu amigo e marido Moacir: alto, moreno, olhos castanhos, cabelos negros, fartos, elegante em seu vestir, educado e culto, figura respeitada e presente no mundo das artes da capital, agora ali, por vontade dela, metido em seu belo terno de linho, indo para uma missa das nove. Moacir, seu formal marido, sempre havia despertado – por sua beleza, educação e posição social – interesse em belas e bem posicionadas moças da sociedade de São Paulo e mesmo do Rio de Janeiro e de seus pais para que com ele se casassem; Moacir que era, o que se costumava dizer, um bom partido - bem apessoado e com futuro garantido pela fortuna dos pais - jamais manifestou interesse por mulher; sou, como Fernando Pessoa, assexuado, disse à sua amiga Lourdes quando a proposta de casamento lhe foi apresentada, e ele se casou não só pela sua cega obediência aos pais, mas por se ver, de modo definitivo, livre das sempre presentes solicitações e insinuações dos pais para que se casasse e constituísse família.
Cabisbaixos entraram na igreja e ocuparam um lugar bem à frente, próximo ao altar.
Ao final da missa, quando desciam a escadaria da igreja, passa pelos dois Cidona, que havia cantado os kyries e os sanctus na missa das nove e Dona Lourdes ficou impressionada com o capricho do vestido branco de algodão da magra negra e seu Moacir encantado com o timbre de voz: poderia cantar no Municipal, ou mais ainda, até no Scalla!, disse, cantarolando, junto ao ouvido de Lourdes.
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