quarta-feira, 31 de julho de 2013

AS TRÊS MARIAS–V–NEGO E PITOCO, AMOR À QUINTAS-FEIRAS E O SARAU DE MOACIR E CIDONA!

2009 Caminho da fé 003 

Foi um presente do seu Justo, pai de Cidona, para Didinha: Nego, um elegante e teimoso pássaro preto, veio preso em gaiola - caprichosamente feita por ele - de delicadas varetas de bambu, com três poleiros, no alto uma janelinha para meter comida sem risco do passarinho fugir e mais embaixo a porta maior que dava para tirar e pegar o Nego com as mãos, acariciar a sua cabeça, passear com ele nos ombros – cabeça arrepiada, longos trinados - pelo quintal, sentir seu cheirinho, sentir-se sua mãe. Agora o Pitoco, um vira lata pequeno, marrom claro, meio vinagre, focinho delicado, olhinhos negros, pernas compridas, corpo elegante, latidos finos com os dentes à mostra, bravo com estranhos e com os gatos, dócil e lambedor com Didinha e seus amigos e portanto carinhoso também com o pássaro preto Nego; Pitoco, rabinho cortado tão logo nasceu e que por isso não vai conseguir, por toda a vida, atravessar as pinguelas de madeira, mas isso nunca se sabe se é lenda, imaginação ou se o rabo dos cachorros funciona mesmo como ponto de equilíbrio necessário para atravessar pinguelas escorregadias, mas como ia dizendo Pitoco foi presente do irmão Irineu, que trouxe lá da fazenda onde Nicota teve uma ninhada de oito filhotes, dos quais cinco foram metidos no saco de linhagem – juntos com duas pedras pesada para afundar logo - e jogados ao rio e os três restantes, todos machinhos espertos – e sortudos - assim que desmamaram dos peitos rosados de Nicota foram distribuídos para amigos e parentes.

A gaiola com o Nego dentro ficava pendurada em um grosso prego, protegida do sol do meio dia pela cumeeira do telhado, ao lado da porta que dava para a rua, e assim Nego via e vigiava de sua fortaleza a rua, as carroças que passavam, os cavalos e as charretes, os vira-latas da cidade - em fila - atrás de cadelas no cio, via o carteiro Getúlio que diariamente descia a rua entregando as poucas cartas e o jornal O Estado de São Paulo que vinha pelo trem da Mogiana e como tinha que passar por baldeações em Campinas e Ribeirão Preto chegava sempre dois dias depois, com as notícias atrasadas, já conhecidas e comentadas nos bancos da praça frente à igreja, trazidas pelo ar, sem baldeação, mas com alguns chiados causados pelo vento ou fortes chuvas , pelas ondas da Rádio Nacional, porque os que podiam comprar jornal tinham também potentes rádios de válvulas ; já o local de moradia e repouso do Pitoco era um caixote de madeira, forrado com um cobertor xadrez velho, colocado junto da porta da cozinha, nos fundos da casa: era dali, de seu caixote-casa, que ele via e vigiava o fundo do quintal cercado por um grosso muro de adobe, via os canteiros de alface de couve e o de cebolinha, o pé de limão galego, um pé de pinha e, mais ao fundo, a casinha – fedida - onde tinha o fosso da privada.

Apertada estava a vida de Didinha: a divisão da fazenda entre os irmãos herdeiros resultou em pequenas e improdutivas propriedades, a crise do café com o governo dando ordem de queimar as sacas estocadas no porto de Santos, a seca prejudicando a safra de arroz...Deus do céu, o que será de mim?

Neste meio tempo foi quando Dom Bento, bispo da arquidiocese, veio até a cidade para a cerimônia da crisma: veio com sua mitra, reafirmar o batismo, jogar mais água benta no corpo das crianças e pedir a Deus e a Virgem Maria que ajudasse seus filhos a não cair na tentação e fugir da santa proteção da Igreja; e para que a crisma fosse o sucesso que o bispo almejava, afinal o santo bispo, com sua vida tão ocupada, vinha de longe para a pequena paróquia por não querer nenhum cordeiro desgarrado do rebanho, Frei João trabalhou duro e firme: discursou no alto falante explicando o significado do sacramento e pedindo atenção para o dia e a hora e mandou esparramar pelas vilas, distritos e fazendas centenas de folhetins que mandou imprimir na gráfica e até as porteiras foram usadas e com letras grandes – escritas com brocha e cal - com a data e a hora do crisma, apagando a anterior propaganda feita com tinta das casas pernambucanas; fogos, foguetes e rojões foram comprados, trazidos de longe e preparados para o grande dia, o bispo com a casula vermelha e roxa, o anel enorme, que todos deveriam beijar com os olhos fechados, e sua mitra, um chapéu enorme parecendo uma torre e suas alvas brancas, estolas bordadas a ouro.

Flores – hortênsias azuis, vermelhos antúrios, brancos copos de leite e margaridas de todas as cores – decoravam a igreja e a forrando a grade de madeira que separava a nave da igreja do santo altar, uma toalha de linho, tão ricamente bordada que chamou a atenção do bispo: quem bordou? e Frei João, se enervou, preocupado em levar pito do bispo – famoso pelo temperamento de italiano, o rosto se avermelhando até ficar roxo por qualquer contrariedade, berrando palavrões em latim e em português: quem bordou foi Didinha uma fiel aqui de minha paróquia e pelo trabalho nada cobrou; e o bispo: mas que coisa mais bela, que delicadeza, veja se ela não borda, com tanto esmero, as alvas, as casulas e as estolas dos padres de minha diocese; e frei João, aliviado percebendo que o bispo havia gostado: acho que borda sim, ela anda carecendo de trocados, ficou viúva, o pai morreu e anda em dificuldades; a diocese pode pagar pelo trabalho, disse o bispo; e frei João: logo depois da cerimônia procuro por ela; e assim ficou combinado.

Finda a cerimônia, dezenas de crianças, de mãos dadas com seus padrinhos e madrinhas de crisma, foram saindo da igreja em fila, ordeiramente, e lá fora uma bateria de foguetes, rojões estalavam no ar, assustando as rolinhas da praça e as duas corujas brancas que moravam na torre da igreja. Tão logo cessou a barulheira nos céus Frei João assuntou Didinha a respeito do trabalho dos bordados para o bispo e ela prontamente aceitou necessitada que estava de trabalho para enfrentar a solidão que se juntava à dificuldade de ordem mais prática de acertar as contas da caderneta do empório do Seu Juca.

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E semanas se passaram, meses se foram e mais um aniversário anual da mudança da capital para a pequena cidade se aproxima. Maria de Lourdes combinou com Moacir que fariam, no domingo, um almoço para celebrar aquela passagem e como já dominava o dia a dia da cidade contratou os serviços de dona Ernestina, cozinheira e doceira famosa: frango com orapronobis, leitão pururuca, angu de fubá mimoso, queijo curado, doce de goiaba cascão com queijo fresco de sobremesa; era a comida do almoço confirmando a aceitação da nova vida que estavam levando e Moacir todo contente: leitão pururuca? então vou querer limão galego para pingar em cima da gordurinha e da pele torrada, vou me empanturrar; e quem a gente convida? perguntou Maria de Lourdes; e Moacir: convida a Dona Jacira, mulher do Juiz e seu marido, convida também o seu Abílio, diretor do grupo e vou dar um palpite: convide a Cidona; e ela: Cidona, a passadeira? e ele: Sim, Cidona a Diva, a Norma de Belline em sua versão negra; vou pensar, disse ela; mas Moacir a conhecia e sabia que Cidona seria convidada.

Na cidade, agora, todos já sabiam o motivo da vinda de Maria de Lourdes para dar aulas, ensinar as crianças ali naqueles chapadões e brejões perdidos e ninguém mais tinha dúvidas, tanto em pensamentos como em palavras, quando a viam passar vaidosa - com seus coloridos vestidos, seu elegante chapéu, de braços dados com Moacir - para assistir a missa das nove; todos sabiam o que tinha trazido a professora de pele clara, olhos negros, óculos de tartaruga: foi o amor. Todos – até mesmo os mais velhos, despreocupados com o dia a dia e se preparando para as vidas futuras – sabiam o que trouxe para aquelas bandas Lourdes, a professora Lurdinha: veio atrás de homem casado, diziam as amargas e roxas línguas; veio atrás de seu amor, afirmavam as línguas doces e rosas: cada um pensa o que quer, é assim no mundo de deus.

E Lourdes vivia sua vida! Os encontros semanais, as quintas, às oito horas da noite, com seu amor aconteciam em um segredo compartilhado por toda a cidade e Sebastião, o vizinho de frente, deixava de ouvir no rádio o final da Hora do Brasil, apagava a luz da sala para, escondido, ficar espiando pelas frestas da veneziana o arrastar dos passos de Vicente ao se aproximar da janela do quarto de dormir de Lourdes, a janela aberta, escancarada, sinalizado que sim, que ela o esperava ansiosa para o amor, e ainda pela fresta da veneziana via a guinada de Vicente da calçada para o corredor da casa, o corredor escuro tudo escondia, mas ele continuava com os olhos nas frestas da veneziana e ouvia o barulho da porta de duas folhas se abrirem e ai nada mais ouvia, e via mas Sebastião ficava ali, rosto colado na veneziana, pálido a imaginar os beijos, os abraços, o desnudamento dos dois, os peitos de Lourdes sendo sugado pelo afoito Vicente, e vislumbrava Lourdes com os olhos fechados, desmaiada, se entregando e então as ondas circulares do prazer saiam do quarto, atrasavam a rua e chegavam, elétricas, até corpo de Sebastião que deixava a janela e buscava o quarto onde sua mulher Terezinha fingia dormir, e as ondas do amor se esparramavam pelo seu quarto, os corpos se livrando do pijama listrado e da camisola de renda, os dois se vendo nus, um sobre o outro e os gemidos e palavras de amor se misturavam nas duas casas, enchendo aquele canto de rua de uma sinfonia de calorosos ais e uis que varavam quarteirões, contagiando a cidade de amor.

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Foi assim que Cidona – atendendo a solicitação de Moacir – escreveu com sua letra redonda, meio caída para a direita, em um caderno brochura enquanto ouvia a ária da Diva Norma e isso aconteceu quando - depois de vários pedidos e de uma falsa relutância – a negra passadeira resolveu acatar o pedido de Moacir para ensaiarem, ambos, os papéis de Norma e Pollione da ópera Norma. E a partir de seu sim, as tardes de terça e quinta feira, tão logo as roupas eram passadas a ferro de brasa, a sala de estar se inebriava de música, a rádio vitrola em alto volume com os dois concentrados ouvindo o LP da ópera e, Cidona, enquanto cantava ia anotando – para melhor gravar a letra - os trechos de Norma que cantaria com Moacir fazendo o mesmo, com sua afinada voz de tenor, nos cantos de Pollione, o pro cônsul romano.

Mas tem-se que falar da inicial relutância de Cidona, relutância não por birra – era uma boa alma não afeita a enjoamentos e birras – mas fruto do que vou contar, narrando os motivos da relutância.

Foi assim. Cidona andava a ajudar Didinha no trabalho de bordar os paramentos do Bispo e uma tarde, pouco depois do acontecido na casa de Moacir, quando estimulada por ele se viu cantando a ária da ópera e foi efusivamente saudada pelo Moacir: bravo, bravíssimo e o ferro de passar roupa caindo de suas mãos, e as brasas se espalhando pela mesa e pelo assoalho, mas o que que tem isso a ver com a relutância? Pois tem! Estavam - Cidona e Didinha - centradas no trabalho de bordar os finos e delicados paramentos quando o Nego trinou seu canto avisando da chegada de gente no portão e Pitoco, nervoso, dentes à mostra, correu rápido de seu posto no fundo da casa e avançou até o portão, latindo, dentes à mostra e o carteiro berrando: xô cachorro de merda, sai vira lata do inferno e Didinha gritando Pitoco! já pra dentro, Pitoco, vamos; e recebeu do assustado carteiro um outro caderno com modelos dos bordados mandado pelo bispo; e Didinha contou para Cidona que o Pitoco adivinhava o canto do Nego: se não é amigo ou conhecido que o Nego vê chegar ao portão ele canta de um jeito que o Pitoco vem feito uma bala, querendo morder, mas quando o Nego vê chegar pessoa conhecida – você, Luzia, Assunção – ele canta lá de um jeito diferente e Pitoco sai do seu caixote, vem correndo latindo mas com o seu toco de rabo balançando feito ventilador, querendo dizer com isso que não vai morder que a visita é bem-vinda; só que Cidona, para mim, o trinado do canto é o mesmo, só mesmo Pitoco sabe diferenciar. E Cidona combinou que iria prestar atenção no que Didinha lhe contou e as duas ficaram a torcer para que chegasse gente no portão para o Nego cantar para atentarem para o latido bravo ou amigo do Pitoco; e como nas histórias as coisas sempre acontecem, logo, logo chega Assunção para um café com as amigas, bate palmas e Cidona toda atenta ao canto do Nego, enfia as notas do canto dentro de seu miolo para guardar assim como fazia com os introitos e com os kyries. Tomaram café, comeram bolinho de chuva e conversaram da vida delas, dos outros e da falta de chuva e dos ventos de agosto. Logo depois de sair para ir embora Assunção, toda gorda, balançando a bunda rumo a sua casa, chega ao portão o louco manso Diquinho, pedinte usual, mesmo sabendo que na casa em que ia pedir pouco se tinha, ou tinha apenas o que era para o sustento de uma viúva virgem. Nem bem bateu palma, fracas palmas de mãos magras e Nego, vendo a chegada de Diquinho trinou seu alerta e Pitoco, como um foguete, sai do caixote e avança: agora um Pitoco do rabo erguido, o cuzinho à mostra, os dentes ferozes querendo atacar as pernas de Diquinho e Didinha gritou: xou Pitoco, pra dentro e atirou um pedaço de pedra e Cidona guardou as notas do trinado em seu miolo e disse: eu sei a diferença dos cantos e brincaram de apostar seguinte: Didinha iria cobrir os olhos de Cidona e ela teria que adivinhar, pelo canto do Nego, se era amigo ou estranho quem batia palmas no portão da casa. E não é que Cidona realmente reconhecia a diferença dos cantos, talvez por uns míseros tons uns décimos oitavos a menos ou a mais nas notas trinadas, a mesma estrutura musical ancestral do Nego afetada pela emoção para avisar ao cachorro Pitoco de quem se aproximava da casa dos dois: amigo ou desconhecido.

E então de um lado a Didinha admirada da competência de Cidona e esta achando aquilo tudo muito simples, bastava ouvir com atenção e foi quando que – absorta na música do Nego - errou os pontos cheios que bordava, enchendo de azul claro uma cruz no paramento, tendo que tudo refazer porque era para fazer o ponto cruz e Didinha dizendo: não foi nada, acontece! e ela: venho para ajudar a apressar o trabalho e acabo atrasando! E naquela noite Cidona sonhou que enquanto estava a passar uma blusa de linho da professora Lourdes, bordada com ponto cruz e ponto cheio quando Moacir ligou a rádio vitrola, colocou o elepê, aumentou o volume e a música tomou conta dela e ela, de tudo se esquecendo, queimou a blusa com o ferro de passar e chorou porque para pagar blusa tão cara teria que passar roupa por anos e anos... e assim na semana seguinte ao bravo, bravíssimo Cidona pediu a Didinha que fosse ela passar as roupas de linho e Didinha explicou ao Moacir que Cidona estava adoentada e que aquele dia não poderia vir passar roupa, por causa do calor do ferro de brasa, da força que tinha que fazer com os braços e Moacir: mas o que ela tem? doença mais séria ou doença de mulher? e Didinha se envergonhou com a doença de mulher e disse: acho que é gripe forte e passou a roupa com a rádio vitrola desligada, o LP de Norma descansando – a capa negra para cima – e Moacir em seu escritório, quieto, colocando em ordem a pasta com recortes do diário oficial. Na semana seguinte, outra vez, Didinha veio passar roupa encompridando a doença de Cidona. Moacir, educado, esperto e desconfiado pergunta aqui, cutuca ali e Didinha, com medo de queimar uma blusa de linho, assentou o ferro de passar no rabo do fogão e contou a história do canto do Nego e das avançadas do Pitoco, do sonho de Cidona e do seu medo de – distraída pela beleza da música – queimar as roupas de linho e que estava decidida em não mais passar roupa e Moacir: fala para ela vir, a vitrola vai ficar desligada.

E na semana seguinte Cidona chegou envergonhada e sem o batom vermelho na boca, parecia mais negra e mais magra, as costas mais curvadas pelo peso da altura do corpo, a voz baixa: boa tarde, o senhor e a professora me desculpem! e Moacir: desculpar do que Cidona? doença não escolhe corpo; veja o monte de roupa que sobrou para você passar... e não ligou a rádio vitrola mas ficou ali ao lado, escutando o chiii! do ferro ao encontrar o tecido gomado, conversando com Cidona e ela no inicio retraída, desconfiada, não acostumada com homem tão rico a falar com tanto respeito com mulher pobre, negra, mas foi se soltando e falou da diferença do canto do Nego para avisar Pitoco de quem chegava ao portão e Moacir entusiasmado: sabe o que você tem Cidona? e ela preocupada com alguma doença: não, não sei, não senhor; e ele: ouvido absoluto Cidona, um fenômeno, poucos têm, um ouvido como o seu: muito, mas muito mais sensível aos sons!

E a rádio vitrola voltou a funcionar, o LP de trinta e três rotações girando calmo, devagar e Moacir se emocionando ao ouvir Cidona: a perfeição da pronúncia da letra – em italiano – com a métrica e a doçura de sua voz lhe causando pequenas e doces taquicardias, iguais às que tinha quando, no Municipal, ouvia belas árias: a voz humana o encantava sobremaneira.

E os dois – Norma e Pollione – cantavam e anotavam ao som da rádio vitrola e enquanto descansavam dos cantos, Moacir, delicado e sensível, direcionava a interpretação de Cidona , contando-lhe a trama do libreto, traduzindo do italiano para o português e passaram a ensaiar para um sarau musical!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

AS TRÊS MARIAS -IV - A SOLIDÃO DE DIDINHA, A ENCARNAÇÃO DA VULGÍVAGA E A VINGANÇA DE NORMA.

2009 Caminho da fé 074retoc

E mortes, enterros e lutos se acumularam, deus me livre e guarde! Em seis meses de mulher casada - vestida com seu branco e comprido vestido de organdi - saias e blusas e vestidos tiveram que ser costurados, às pressas, em negros tecidos comprados na loja do Mansur: Dona Hercília tirando as medidas e costurando entre choros, lágrimas e suspiros.

Primeiro o pai: morreu, não se sabe se de tristeza, o governo mandando queimar sacas e sacas de café no porto de Santos, dívidas com bancos, a saúde da esposa piorando a cada dia e assim, sem mais, em uma tarde quando voltava da fazenda, caiu morto do alto do arreio do cavalo Tiziu, um manso cavalo, batizado com este nome de tiziu pela cor negra o e não pelos acrobáticos saltos que o passarinho dá, se mostrando todo o exibido nas moitas de capim, assobiando fino tiziu! tiziu! tiziu! Morreu, sem nenhum aviso, o pai. Já Eduardo, o marido, precavidos avisos foram fornecidos: o primeiro veio da ordem de ir para Campos de Jordão, viagem apressada em ambulância, acompanhado apenas do médico da cidade, o doutor Vicente, que comentou: uma esperança para o grave estado do Eduardo; quinze dias depois, chegou mensagem no telégrafo da estação da Mogiana: “Sr. Eduardo nas últimas pto. Avisar família pto.buscar urgte pto. Dr. Cabral Sanatório CJ” e lá foi de volta a ambulância, obediente ao telegrama, trazendo de volta Eduardo vestido em um corpo quase sem vida, febril, pulmões ocados pela tuberculose: morreu uma semana depois, em casa.

E no guarda-roupa de Didinha os cabides com vestidos e saias e blusas pretas foram empurrando para o canto os outros coloridos, brancos, rendados: luto de seis meses pela morte do pai que se juntou a mais seis meses pela morte do marido. Pena de se ver o guarda-roupas, agora sem as roupas de Eduardo – queimadas, medo de a doença passar -: o negro apertando para um canto o colorido, espremendo e amassando o branco vestido de filha de maria e sua fita azul, o véu branco de virgem, que ainda era.

O sinal da solidão foi dado depois da missa de sétimo dia da morte de Eduardo: na missa, todos de negro, reviu as primas que tinham vindo para o enterro, Didinha foi tocada pela concretude da morte em si como um evento, a não volta, meio a tantos abraços e confortos: meus pêsames, mas você é forte e vai vencer; meus pêsames: estou ao seu lado; pêsames Didinha: a vida continua, fé em deus...e os abraços e as lágrimas umedeciam sua blusa negra – escorridas de seus olhos e misturadas às lágrimas reconfortantes de primas, tias, da Cidona – e a saída da igreja, o silêncio da praça e as impossíveis esperanças de retorno, de que tudo era um sonho foram se esmaecendo, a vida continua, e Didinha achando que sua vida não continuava, que estava parada como a de um relógio quebrado, querendo conserto e se viu só, imensamente só e triste.

A prima que havia ficado com ela até aquele dia da missa de sétimo dia se despediu – qualquer coisa que precisar, me chame, a vida continua – e Didinha retornou para sua pequena casa: sala, cozinha, quarto com cama de casal, os presentes de casamento ainda sem uso, embrulhados em cima do guarda roupa com as roupas negras invadindo o espaço, sufocando os colorido, os rendados brancos.

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Sobre a mesa da cozinha, grande toalha branca de linho, jarra com água, panelas e pratos! Moacir e Lourdes jantam, os dois, um quente angu de fubá mimoso com frango e quiabo e vão beber, após o jantar, café coado por Moacir: tempo demais para prosas e olhares amigos com os corpos aquecidos do frio e do vento que entrava zunindo, assobiando, pelas frestas da porta de duas folhas da sala de entrada da casa, agora reformada com confortos rememorados da casa dos Campos Elísios, na Alameda Nothman.

Gosto do sabor do frango caipira, dizia Lourdes e ele: tem um pouco o cheiro de quintal, de cocô, assim como o leite gorduroso daqui: cheiro de fezes, de curral; seu paladar é muito apurado e sensível, Moacir, ou é uma forma de resistência; resistência a que?; à que? oras à falta de óperas, de concertos, de ilustrados saraus; é pode ser, talvez seja, responde em voz baixa, pensativo; e ela: tenho claro o que me trouxe para cá e sempre, você sabe disso mais que eu, que sem você eu não teria vindo, mas tenho dificuldade de entender o porquê de você ter concordado com mudança tão radical em sua vida; me sentia um pouco preso e asfixiado pelos saraus e querelas intelectuais e além disso, aceitei por admirar e querer saber até onde ia sua coragem e disposição para permanecer, contra tudo e todos, ao lado, ou pelo menos mais perto do seu amado; o mais difícil foi deixar meu filho com meus pais: no mais, a capital, para mim, sem Vicente, não tinha o menor sentido, ou melhor, a vida para mim, só tem sentido com a possibilidade de Vicente por perto, não juntos, mas acessível; é o que me faz te respeitar e admirar; não me envergonhe com suas palavras amigo, apenas corro atrás do que me é importante; você, Lourdes, abre buracos e frestas tornando as paredes do inconsciente tules perfurados; e lá vem você e suas análises: procuro apenas viver, Moacir, meu caro amigo; sem sentir nenhuma culpa, sem nenhum arrependimento?; penso que arrependimento e culpa todos temos: pecadoras como eu e santos como o Agostinho: a diferença é que me arrependo por reais e concretos atos e Agostinho por pensamentos; deixa o Freud saber disso, amiga; sei que você respeita por demais Freud, de quem só sei o que você – nas horas dos nossos jantares – e o Vicente – após longas e extasiantes horas de carnal amor, cansado – me falam: e ele, o Vicente, penso, mais para justificar a si mesmo a imensurável força animal que nos une; não te falo, Lourdes: Freud é um dos pilares da compreensão da alma humana, quer café? ; sim, vamos ao café porque a noite promete.

A casa em que moravam tinha, a partir da reforma, uma serpentina que passava pelo forno do fogão a lenha, e aquecia água para banhos quentes de chuveiro: agora não mais os fios d’água caindo do chuveiro elétrico, que diminuía a força das lâmpadas, queimava fusíveis e obrigava o corpo a ginásticos e cansativos contorceres para esparramar o fiozinho de água quente pelas costas, pelas coxas e pelo pescoço, e enquanto esquentava uma parte esfriava a outra: agora não, com fartura de água quente se derramando pelo corpo, dando adeus aos contorcimentos que geravam câimbras no pescoço e pior ainda, quando o fusível queimava, o término do banho em bacia e canequinha, um horror, mais ainda nos frios meses de inverno.

Saboreado o café quente, cooperativamente os dois recolheram os pratos e as comidas, amontoando as panelas e pratos cima do fogão e dobraram a tolha branca, desnudando a mesa de jacarandá!

Ao banho quente! falou Lourdes enquanto, ainda na sala, se desnudava sensualmente. Banhou-se, inundando o banheiro com uma nuvem de quentes e perfumados vapores: amigo Moacir, meu querido, declame Vulgígava para mim! cantarolou Lourdes, rosronenta como uma gata, saindo do banho, o corpo quente, gotas d’água escorrendo dos ombros para as pernas, para as nádegas redondas, da cabeça para o pescoço fino e delgado e para os peitos empinados.

Moacir enrolou a toalha sobre os ombros nus e molhados da mulher e declamou:

“Não posso crer que se conceba

Do amor senão o gozo físico!

O meu amante morreu bêbado,

E meu marido morreu tísico!

Não sei entre que astutos dedos

Deixei a rosa da inocência.

Antes da minha pubescência

Sabia todos os segredos...”

Tá bom, chega Moacir, estes dois versos são suficientes; se quiser declamo o resto, não gosto de cantar o Manoel Bandeira pelas metades; e ela: não está bom, e sabe Moacir, que se eu fosse espírita teria certeza absoluta que eu sou uma encarnação dessa poesia; e ele: mas você sabe quais foram os astutos dedos, minha linda; sim, sei e hoje eu os terei novamente.

Moacir deixou Lourdes enrolada na toalha no quarto de banho: o corpo redondo, ancas largas, coxas curtas, grossas, torneadas, os pelos negros do ventre sobressaindo no corpo branco; os seios redondos - sujeitos à flacidez da idade e da amamentação – com os bicos rosados e o pescoço delicado davam a Lourdes um ar qualquer da Vênus.

Atravessou a rua e viu sua casa de frente. Olhando para a direita era a terceira casa até chegar na esquina, casas separadas uma das outras por pequenos corredores de metro e pouco, sem jardim de frente, sem alpendres, com amplos e compridos quintais nos fundos: a frente da casa com três janelas venezianas, duas do quarto de dormir de Lourdes e outra do pequeno escritório de Moacir; a entrada da casa era pelo corredor onde havia a porta principal, azul, de duas folhas, pé direito de mais de três metros.

Quando as duas venezianas do quarto de dormir de Lourdes se abriram, Moacir, na calçada frente sua casa, caminhou a passos lentos para o lado direito; na calçada da esquerda viu Vicente, que caminhava a passos de gato para evitar barulho e sorriu ao ver as duas venezianas abertas e então, respondeu ao sinal das venezianas abertas: pigarreou baixinho, limpando a garganta enquanto deixava a calçada e entrou pelo corredor a dentro à busca de Lourdes.

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Cidona passava as camisas e os ternos e os vestidos de linho na sala de visitas; a mesa de jantar transmutada em mesa de passar: sai a toalha rendada branca, o vaso com rosas e o jacarandá se vê coberto por um grosso cobertor de lã e sobre ele um lençol branco que evita que os fiapos da lã se enredem pelos delicados tecidos de linho das roupas que serão passadas. Cidona gira, como o turíbulo para liberar incensos , o pesado ferro de passar a brasa: pelos buraquinhos se vê os carvões avermelhados , pequenas faíscas caem sobre o lençol e têm que ser, rapidamente, retiradas com as mãos ou com fortes sopros e o calorento e pesado ferro de passar roupa passa a soltar pelo seu pelo bico, invejoso da locomotiva de trem, um suor fumacento, cinzento tão logo seu fundo – agora quente - toca o tecido das roupas úmidos de goma, truque usado por Cidona para deixar ainda mais liso os vestidos, as camisas e os ternos de linho.

Cidona trabalhava o seu ofício de exímia passadeira cabisbaixa, quieta, aspirando a fumaça quente exalada pelo ferro de brasa.

Moacir colocou na vitrola o que ele costumava chamar o seu LP “do momento”: importado de Portugal, a ópera Norma, tendo Joan Sutherland no papel de Norma e John Alexnder no papel de Pollione. Ligou a vitrola, ajeito o LP, colocou cuidadosamente a agulha no início das arranhaduras do disco e aumentou o volume o suficiente para o som cobrir a fumaça espalhada pelo ferro de passar roupa e, voltou para sua cadeira no escritório, onde – quieto, ficou menos a ouvir – conhecia aquela ópera como a palma de sua mão, fez testes no Municipal no papel de Pollione e não foi aprovado - e mais para ver como Cidona reagiria à voz doce da cantora e à bela melodia de Belline. Tinha, Moacir, seus pressentimentos, suas premonições: vamos ver!

A música inundou a sala! Oroverso e os druidas aguardando a chegada de Noma...

Fingindo despreocupação como se nada tivesse na sala a não ser a música, no exato momento em que findou a ária da Casta diva, Moacir foi até a vitrola e, cuidadosamente, ergueu o braço colocando a agulha exatamente no ponto onde a ária se iniciava, reiniciando o canto da ária. Agora, de pé ao lado da vitrola, repetiu esta operação por duas vezes, bisando e rebisando a ária: na segunda repetição , fingindo estar só na sala, acompanhou a ária assoviando afinado, imaginando que, com este gesto, estimularia Cidona a cantarolar a melodia. Ao final da terceira repetição, colocou a agulha no início da ópera, voltou para sua cadeira e aguardou!

Cidona, absorta no trabalho, mergulhada na névoa de vapores do ferro, ajeitava uma camisa de linho: dobrava as mangas e desdobrava os colarinhos; as longas mãos negras ora ocupada em alisar o tecido já passado, ora em umedecer com o pano úmido de goma o restante do tecido e continuando o trabalho de alisar, forçando o ferro quente sobre o tecidos em movimentos de vai e vem: a fumaça subia pela sala e quando menos esperava se ouviu cantando e a voz de Cidona se uniu à de Joan Sutherland cantarolando a melodia:

“Sedizioze voci, voci di guerra

avvi chi alzarsi attenta

presso all’ ara del dio...?”(*)

Finda a ária Moacir aplaudiu: Bravo! e Cidona, assustada, sem entender o que ocorria, assustou-se, o ferro caiu de suas mãos – brasas se esparramaram pela sala a dentro, corre até a cozinha e pega uma vassoura para juntar as brasas antes que queimassem as tábuas do assoalho e Moacir ajudando e Cidona pálida, o rosto perdendo a negritude, esbranquiçando, mãos trêmulas e o LP continuava rodando na vitrola, o som alto, as vozes, o coro!

Agachados no chão à cata das últimas brasas que teimavam em permanecer acesos, Moacir e Cidona, os corpos pertos, os rostos a pouco mais de meio metro um do outro, a vitrola ainda inundando a sala de música: Linda demais sua voz Cidona, disse Moacir e Cidona disfarçava a timidez procurando no chão as últimas brasas, pedindo a deus que o mundo acabasse ali, naquela hora, envergonhada; obrigada, bondade do senhor.

(*) vozes deliciosas, vozes de guerra,

quem ousa elevá-las

perante o altar do deus?”

quarta-feira, 3 de julho de 2013

AS TRÊS MARIAS -III - A PRIMEIRA NOITE DE DIDINHA E A PRIMEIRA MISSA DA PROFESSORA MARIA DE LOURDES!

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A festa do casamento ia terminando devagar: o bolo de três andares defeito, derrubado tal qual uma tapera implodida pelas chuvas de São José, a toalha de coloridas balas de coco, agora rendada, deixando aparecer o negro da madeira de jacarandá, seus nódulos, suas rugas. As conversas iam diminuindo de altura, de tom, de entusiasmo: e a Didinha, toda linda ainda em seu vestido de organdi, acendia nos homens ancestrais desejos e uma imensa vontade de ir para casa satisfazê-los; naquela noite escura, estrelada e fria de julho, protegidos por mantas tecidas com lã de carneiro, cada quarteirão da cidade iria viver momentos de amor.

E a casa foi ficando vazia com a ajuda de Dona Cecília que, sem papas na língua, falava para quem quisesse ouvir: vamos deixar os nubentes – ela achava lindo dizer nubentes – sossegados, estão cansados e foi ela e Cidona, que havia confeitado o bolo e ajudado a servi-lo, que se sentiram damas de honra, ou pajens em histórias de princesas, ajudando Didinha a se desvencilhar do vestido branco de organdi e a desocupar o leito dos nubentes dos presentes embrulhados em brilhantes papéis coloridos.

Despediram-se desejando boa noite e Didinha se viu só no quarto, sentada na beira da cama sem seus presentes, vestida com um peignoir branco, rendado, decote delineando os seios fartos e belos, o cinto confirmando a cintura delgada, as redondas e firmes nádegas e as longas e bem torneadas pernas.

Na sala, Eduardo conferia os presentes e tossia!

Didinha sentia-se confusa: não era tola e sabia o que deveria acontecer entre os dois e, a bem da verdade, ansiava por isso. Seus encontros anteriores com Eduardo foram sempre vigiados: ora pelo olhar secreto de jesus e da virgem maria – que atravessava os telhados e infiltrava alma a dentro – , ora pelo pigarrear do pai no quarto ou pelo barulho da vassoura de Emerenciana na cozinha; nada de ousadas liberdades: apenas uma vez Eduardo, mais corajoso, beijou-lhe rapidamente a face e ela dormiu sentindo os lábios do namorado, molhados, úmidos em seu rosto: teve um bom sono, lembra-se bem. Agora, ali, só, ascendiam em todo o corpo ondas ardentes, circulares, abrasando suas partes íntimas - uma única vez tocada por uma mão de homem - e a solidão aumentava sua ansiedade, seus desejos e foi assim que permaneceu: sentada na beirada da cama esperando que o acesso de tosse de Eduardo acalmasse para ele aparecer no quarto, pijama de flanela, listras azuis, os grandes olhos esverdeados um pouco tristes, as mãos enormes... E foi assim mesmo que aconteceu: tão logo cessou mais um ataque da rouca e molhada tosse, Didinha ouviu o ranger da porta do quarto e o andar silencioso de Eduardo se aproximar, viu sua sombra – enorme – cobrir a parede oposta do quarto e ela ir adivinhando – pelo desenho da sombra na parede – seus movimentos calmos, o colchão ceder ao seu peso magro, logo ali ao seu lado e sua mão esquerda, com a aliança de ouro amarela brilhando no dedo, procurar a sua e quando achou sua pequena e gorda mão parou, quieta, quente: Didinha ousou olhar para o marido e viu um rosto em brasa, febril, congestionado, indagando auxílio: o que foi? estou tão mau; o que você tem, alguma dor? sim, demais: dói o peito e tenho uma fraqueza que bambeia minhas pernas; quer um chá? não se preocupe agora Didinha, é a nossa noite; Eduardo você está pegando fogo de febre, tenho que chamar o médico; não aguarde até amanha, me faça então um chá. E Didinha foi ao quintal, colheu folhas de erva-cidreira e acendeu o fogo com sabugos de milho e gravetos para ferver depressa a água, fez o chá forte de erva, adocicou com melado de cana e ofereceu a xícara ao marido que entre um acesso e outro de tosse bebeu. Eduardo queimava de febre: suores, calafrios e tremores agitavam o corpo magro e Didinha protegeu suas costas com uma manta de lã e pousou suas mãos sobre as do marido que exausto dormiu meio sentado, as costas apoiadas na cabeceira da cama.

Didinha deitou ao seu lado e contra sua vontade – descontroladamente desobediente - seu pensamento rememorou uma tarde, quase noite, quando o Odílio – vaqueiro na fazenda de seu pai, quando ainda moravam na roça – veio com a charrete busca-la na cidade e perto da Fazendinha ela sentiu que ele olhava para seus seios, os olhos esbugalhados de estranho carinho, e entendeu o que acontecia quando ele parou a charrete debaixo do pé de manga e suas mãos calejadas do trabalho de carpir café, agora delicada, foram invadindo seu vestido, desabotoando sua blusa e os dois desceram da charrete, suas pernas tremiam, as mãos e os lábios de Odílio procurando os bicos dos seios, ela em estado meio de vertigem sentiu as mãos calejadas descendo, procurando seu ventre, tocando suas tão íntimas partes, que respondia esparramando caldos, e ela disse: vamos? e Odílio continuava a tocar suas partes, seus seios, beijar os bicos e os dois, em transe, caíram na grama, ele pesado e leve, duro e macio em cima dela, os seios descobertos protegidos do sol da tarde pela sombra da mangueira, a saia levantada, pernas à mostra ; e tudo o que para ela parecia não ter fim – paraíso de prazeres - terminou repentinamente: em num salto, repentino, exigindo sobre humano esforço, Odílio desvencilhou-se dos amores, de seus seios, de suas pernas e voltou para a charrete, os olhos febris – igual ao do Eduardo há pouco - e pediu ordenando: vamos para casa, isso não pode e não conte para seu pai. E Didinha, ali deitada ao lado do marido, percebeu – horrorizada - quando tocou a calcinha que suas partes estavam umedecidas e rezou pedindo perdão pelo pecado do pensamento.

Na madrugada os acessos de tosse se tornaram mais fortes e constantes. Eduardo levantou-se, foi para o quintal onde o frio cortante do mês de julho se juntou à febre e ordenou que ele retornasse para o quarto e ali continuou a tossir e manchou o lençol de catarro e sangue. Na manha seguinte Didinha, conforme costume, lavou o lençol e pendurou no varal de arame confirmando sua primeira noite com um homem.

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Passado o mês de agosto – mês de cachorro louco - o vento deu tréguas e, naquela manha de domingo, o sino badalou forte, chamando os filhos de deus para a missa das nove: os dem de le lém ressoaram na praça com o sol brilhante penetrando os ipês, esquentando o chão colorido de amarelo pelas flores caídas durante a noite. As crianças de terninhos novos querendo brincar de pisar e amassar as flores sob os bravos alertas dos pais: não vai me sujar a roupa nova, vamos logo para dentro da igreja rezar, pedir que deus dê saúde para nossa família e os pequenos não gostavam da obrigação de assistir as missas aos domingos e dias santos de guarda: faltava ar na igreja, alguns desmaiavam e o padre dizia que era fome porque estavam em jejum para receber em seus corpos pequenos o corpo de deus menino mas o médico da cidade dizia diferente: era o ar rarefeito e impuro a causa dos desmaios dos pequenos e, às vezes, de adultos, sendo que entre estes os que costumavam desmaiar eram os mais velhos.

A missa das nove era a missa dos ricos: tinha canto, órgão tocando no coro e o padre, elegantemente paramentado, subia ao púlpito para e pregar os evangelhos e a palavra do senhor com microfone ligado a alto-falantes que explodiam as santas palavras por toda a cidade, o que desagradava aos espíritas e aos poucos batistas presbiterianos que tinham na cidade uma minúscula igreja.

Dona Lourdes e seu Moacir, agora não mais no único hotel ou pensão da cidade, mas já com a mudança feita, morando em casa alugada, uma boa casa, perto da praça, em uma travessa da rua principal; a mudança chegou de São Paulo nos vagões do trem da Mogiana, tudo muito bem embrulhado, empanados em grossos cobertores: móveis, camas, uma cristaleira e outras novidades como uma enorme geladeira branca e uma rádio vitrola RCA ; para impor respeito e mostrar as posses, seu Moacir chegou choferando o Ford Bigode 29: azul escuro com lonas amarelas cobrindo os bancos de couro.

E o casal, elegantemente vestido, partiu para a primeira missa na, agora, sua pequena cidade. Ele paramentado com um terno de linho branco, camisa e gravata, sapatos de couro alemão e ela, Dona Lourdes, vestida com um tailleur azul escuro, também de linho, sapatos de salto alto, meias finas e chapéu sobre a cabeça, tantas novidades para a pacífica e morna pequena cidade. Na praça, esperando o horário da missa chegar, cochichos : pra que chapéu? o sol não está tão quente assim. besteira homem, o chapéu é mais coisa de moda, de elegância.

Para atravessar a rua o casal olhou para os dois lados, ainda não esquecidos do movimento de carros da rua Barão de Itapetininga, que atravessavam para ir aos concertos e óperas do Teatro Municipal, esquecidos de que aqui o movimento é pouco, uma ou duas charretes e dois Fordes bigodes, sendo que um, o mais novo e brilhante, era justamente do seu Moacir. Ela se apoiava aos braços fortes do marido, ambos com os olhares para o alto, cientes da elegância: estão todos te olhando Maria de Lourdes; e ela: acho que você chama mais atenção por me oferecer o braço.

E ao iniciar a subida das escadas da igreja cada um se pôs a rememorar!

Seu Moacir vendo a elegância da mulher, talvez até exagerada para aquele fundão de mundo, lembrou de seu casamento, acertado – se bem que ele de pleno acordo – entre as famílias para tentar, em parte, diminuir o falatório da gravidez de Maria de Lourdes, moça solteira, professora formada pelo Instituto Caetano de Campos que se engravidou e teve um filho, agora um belo rapaz de dezesseis anos, fruto de sua louca paixão por Vicente, médico casado com filhos com quase a mesma idade da linda e amada professorinha. E um congresso de Psiquiatria, no Rio de Janeiro, selou o amor entre ambos: na viagem – que ela realizou sem a autorização e contra a vontade dos pais - no luxuoso trem noturno São Paulo - Rio de Janeiro, e os dias seguintes no elegante Palace Rio – onde o congresso se realizou – o amor se fez e Lourdes se engravidou. Depois veio o casamento combinado, a viagem para a Europa, o filho nascido em Portugal; mas, é bom que se diga, que nada arrefeceu sua paixão pelo querido Vicente: continuavam a se encontrar para orgias amorosas, ela esquecida dos pedidos dos pais para que evitasse o amado e este esquecido dos eternos “prometo que não vou mais encontrá-la” - promessas nunca cumpridas, ao retornar nas madrugadas, o dia clareando - à mulher que o esperava chorosa, deitada no sofá da sala, clamando por respeito a ela e aos filhos.

E Dona Maria de Lourdes pensava, subindo elegantemente os degraus da escada da igreja. Belo homem o seu amigo e marido Moacir: alto, moreno, olhos castanhos, cabelos negros, fartos, elegante em seu vestir, educado e culto, figura respeitada e presente no mundo das artes da capital, agora ali, por vontade dela, metido em seu belo terno de linho, indo para uma missa das nove. Moacir, seu formal marido, sempre havia despertado – por sua beleza, educação e posição social – interesse em belas e bem posicionadas moças da sociedade de São Paulo e mesmo do Rio de Janeiro e de seus pais para que com ele se casassem; Moacir que era, o que se costumava dizer, um bom partido - bem apessoado e com futuro garantido pela fortuna dos pais - jamais manifestou interesse por mulher; sou, como Fernando Pessoa, assexuado, disse à sua amiga Lourdes quando a proposta de casamento lhe foi apresentada, e ele se casou não só pela sua cega obediência aos pais, mas por se ver, de modo definitivo, livre das sempre presentes solicitações e insinuações dos pais para que se casasse e constituísse família.

Cabisbaixos entraram na igreja e ocuparam um lugar bem à frente, próximo ao altar.

Ao final da missa, quando desciam a escadaria da igreja, passa pelos dois Cidona, que havia cantado os kyries e os sanctus na missa das nove e Dona Lourdes ficou impressionada com o capricho do vestido branco de algodão da magra negra e seu Moacir encantado com o timbre de voz: poderia cantar no Municipal, ou mais ainda, até no Scalla!, disse, cantarolando, junto ao ouvido de Lourdes.