Foi um presente do seu Justo, pai de Cidona, para Didinha: Nego, um elegante e teimoso pássaro preto, veio preso em gaiola - caprichosamente feita por ele - de delicadas varetas de bambu, com três poleiros, no alto uma janelinha para meter comida sem risco do passarinho fugir e mais embaixo a porta maior que dava para tirar e pegar o Nego com as mãos, acariciar a sua cabeça, passear com ele nos ombros – cabeça arrepiada, longos trinados - pelo quintal, sentir seu cheirinho, sentir-se sua mãe. Agora o Pitoco, um vira lata pequeno, marrom claro, meio vinagre, focinho delicado, olhinhos negros, pernas compridas, corpo elegante, latidos finos com os dentes à mostra, bravo com estranhos e com os gatos, dócil e lambedor com Didinha e seus amigos e portanto carinhoso também com o pássaro preto Nego; Pitoco, rabinho cortado tão logo nasceu e que por isso não vai conseguir, por toda a vida, atravessar as pinguelas de madeira, mas isso nunca se sabe se é lenda, imaginação ou se o rabo dos cachorros funciona mesmo como ponto de equilíbrio necessário para atravessar pinguelas escorregadias, mas como ia dizendo Pitoco foi presente do irmão Irineu, que trouxe lá da fazenda onde Nicota teve uma ninhada de oito filhotes, dos quais cinco foram metidos no saco de linhagem – juntos com duas pedras pesada para afundar logo - e jogados ao rio e os três restantes, todos machinhos espertos – e sortudos - assim que desmamaram dos peitos rosados de Nicota foram distribuídos para amigos e parentes.
A gaiola com o Nego dentro ficava pendurada em um grosso prego, protegida do sol do meio dia pela cumeeira do telhado, ao lado da porta que dava para a rua, e assim Nego via e vigiava de sua fortaleza a rua, as carroças que passavam, os cavalos e as charretes, os vira-latas da cidade - em fila - atrás de cadelas no cio, via o carteiro Getúlio que diariamente descia a rua entregando as poucas cartas e o jornal O Estado de São Paulo que vinha pelo trem da Mogiana e como tinha que passar por baldeações em Campinas e Ribeirão Preto chegava sempre dois dias depois, com as notícias atrasadas, já conhecidas e comentadas nos bancos da praça frente à igreja, trazidas pelo ar, sem baldeação, mas com alguns chiados causados pelo vento ou fortes chuvas , pelas ondas da Rádio Nacional, porque os que podiam comprar jornal tinham também potentes rádios de válvulas ; já o local de moradia e repouso do Pitoco era um caixote de madeira, forrado com um cobertor xadrez velho, colocado junto da porta da cozinha, nos fundos da casa: era dali, de seu caixote-casa, que ele via e vigiava o fundo do quintal cercado por um grosso muro de adobe, via os canteiros de alface de couve e o de cebolinha, o pé de limão galego, um pé de pinha e, mais ao fundo, a casinha – fedida - onde tinha o fosso da privada.
Apertada estava a vida de Didinha: a divisão da fazenda entre os irmãos herdeiros resultou em pequenas e improdutivas propriedades, a crise do café com o governo dando ordem de queimar as sacas estocadas no porto de Santos, a seca prejudicando a safra de arroz...Deus do céu, o que será de mim?
Neste meio tempo foi quando Dom Bento, bispo da arquidiocese, veio até a cidade para a cerimônia da crisma: veio com sua mitra, reafirmar o batismo, jogar mais água benta no corpo das crianças e pedir a Deus e a Virgem Maria que ajudasse seus filhos a não cair na tentação e fugir da santa proteção da Igreja; e para que a crisma fosse o sucesso que o bispo almejava, afinal o santo bispo, com sua vida tão ocupada, vinha de longe para a pequena paróquia por não querer nenhum cordeiro desgarrado do rebanho, Frei João trabalhou duro e firme: discursou no alto falante explicando o significado do sacramento e pedindo atenção para o dia e a hora e mandou esparramar pelas vilas, distritos e fazendas centenas de folhetins que mandou imprimir na gráfica e até as porteiras foram usadas e com letras grandes – escritas com brocha e cal - com a data e a hora do crisma, apagando a anterior propaganda feita com tinta das casas pernambucanas; fogos, foguetes e rojões foram comprados, trazidos de longe e preparados para o grande dia, o bispo com a casula vermelha e roxa, o anel enorme, que todos deveriam beijar com os olhos fechados, e sua mitra, um chapéu enorme parecendo uma torre e suas alvas brancas, estolas bordadas a ouro.
Flores – hortênsias azuis, vermelhos antúrios, brancos copos de leite e margaridas de todas as cores – decoravam a igreja e a forrando a grade de madeira que separava a nave da igreja do santo altar, uma toalha de linho, tão ricamente bordada que chamou a atenção do bispo: quem bordou? e Frei João, se enervou, preocupado em levar pito do bispo – famoso pelo temperamento de italiano, o rosto se avermelhando até ficar roxo por qualquer contrariedade, berrando palavrões em latim e em português: quem bordou foi Didinha uma fiel aqui de minha paróquia e pelo trabalho nada cobrou; e o bispo: mas que coisa mais bela, que delicadeza, veja se ela não borda, com tanto esmero, as alvas, as casulas e as estolas dos padres de minha diocese; e frei João, aliviado percebendo que o bispo havia gostado: acho que borda sim, ela anda carecendo de trocados, ficou viúva, o pai morreu e anda em dificuldades; a diocese pode pagar pelo trabalho, disse o bispo; e frei João: logo depois da cerimônia procuro por ela; e assim ficou combinado.
Finda a cerimônia, dezenas de crianças, de mãos dadas com seus padrinhos e madrinhas de crisma, foram saindo da igreja em fila, ordeiramente, e lá fora uma bateria de foguetes, rojões estalavam no ar, assustando as rolinhas da praça e as duas corujas brancas que moravam na torre da igreja. Tão logo cessou a barulheira nos céus Frei João assuntou Didinha a respeito do trabalho dos bordados para o bispo e ela prontamente aceitou necessitada que estava de trabalho para enfrentar a solidão que se juntava à dificuldade de ordem mais prática de acertar as contas da caderneta do empório do Seu Juca.
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E semanas se passaram, meses se foram e mais um aniversário anual da mudança da capital para a pequena cidade se aproxima. Maria de Lourdes combinou com Moacir que fariam, no domingo, um almoço para celebrar aquela passagem e como já dominava o dia a dia da cidade contratou os serviços de dona Ernestina, cozinheira e doceira famosa: frango com orapronobis, leitão pururuca, angu de fubá mimoso, queijo curado, doce de goiaba cascão com queijo fresco de sobremesa; era a comida do almoço confirmando a aceitação da nova vida que estavam levando e Moacir todo contente: leitão pururuca? então vou querer limão galego para pingar em cima da gordurinha e da pele torrada, vou me empanturrar; e quem a gente convida? perguntou Maria de Lourdes; e Moacir: convida a Dona Jacira, mulher do Juiz e seu marido, convida também o seu Abílio, diretor do grupo e vou dar um palpite: convide a Cidona; e ela: Cidona, a passadeira? e ele: Sim, Cidona a Diva, a Norma de Belline em sua versão negra; vou pensar, disse ela; mas Moacir a conhecia e sabia que Cidona seria convidada.
Na cidade, agora, todos já sabiam o motivo da vinda de Maria de Lourdes para dar aulas, ensinar as crianças ali naqueles chapadões e brejões perdidos e ninguém mais tinha dúvidas, tanto em pensamentos como em palavras, quando a viam passar vaidosa - com seus coloridos vestidos, seu elegante chapéu, de braços dados com Moacir - para assistir a missa das nove; todos sabiam o que tinha trazido a professora de pele clara, olhos negros, óculos de tartaruga: foi o amor. Todos – até mesmo os mais velhos, despreocupados com o dia a dia e se preparando para as vidas futuras – sabiam o que trouxe para aquelas bandas Lourdes, a professora Lurdinha: veio atrás de homem casado, diziam as amargas e roxas línguas; veio atrás de seu amor, afirmavam as línguas doces e rosas: cada um pensa o que quer, é assim no mundo de deus.
E Lourdes vivia sua vida! Os encontros semanais, as quintas, às oito horas da noite, com seu amor aconteciam em um segredo compartilhado por toda a cidade e Sebastião, o vizinho de frente, deixava de ouvir no rádio o final da Hora do Brasil, apagava a luz da sala para, escondido, ficar espiando pelas frestas da veneziana o arrastar dos passos de Vicente ao se aproximar da janela do quarto de dormir de Lourdes, a janela aberta, escancarada, sinalizado que sim, que ela o esperava ansiosa para o amor, e ainda pela fresta da veneziana via a guinada de Vicente da calçada para o corredor da casa, o corredor escuro tudo escondia, mas ele continuava com os olhos nas frestas da veneziana e ouvia o barulho da porta de duas folhas se abrirem e ai nada mais ouvia, e via mas Sebastião ficava ali, rosto colado na veneziana, pálido a imaginar os beijos, os abraços, o desnudamento dos dois, os peitos de Lourdes sendo sugado pelo afoito Vicente, e vislumbrava Lourdes com os olhos fechados, desmaiada, se entregando e então as ondas circulares do prazer saiam do quarto, atrasavam a rua e chegavam, elétricas, até corpo de Sebastião que deixava a janela e buscava o quarto onde sua mulher Terezinha fingia dormir, e as ondas do amor se esparramavam pelo seu quarto, os corpos se livrando do pijama listrado e da camisola de renda, os dois se vendo nus, um sobre o outro e os gemidos e palavras de amor se misturavam nas duas casas, enchendo aquele canto de rua de uma sinfonia de calorosos ais e uis que varavam quarteirões, contagiando a cidade de amor.
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“Cedicionevocidi guerra
Avixialzariatenta
Preçoalaradeldio”
Foi assim que Cidona – atendendo a solicitação de Moacir – escreveu com sua letra redonda, meio caída para a direita, em um caderno brochura enquanto ouvia a ária da Diva Norma e isso aconteceu quando - depois de vários pedidos e de uma falsa relutância – a negra passadeira resolveu acatar o pedido de Moacir para ensaiarem, ambos, os papéis de Norma e Pollione da ópera Norma. E a partir de seu sim, as tardes de terça e quinta feira, tão logo as roupas eram passadas a ferro de brasa, a sala de estar se inebriava de música, a rádio vitrola em alto volume com os dois concentrados ouvindo o LP da ópera e, Cidona, enquanto cantava ia anotando – para melhor gravar a letra - os trechos de Norma que cantaria com Moacir fazendo o mesmo, com sua afinada voz de tenor, nos cantos de Pollione, o pro cônsul romano.
Mas tem-se que falar da inicial relutância de Cidona, relutância não por birra – era uma boa alma não afeita a enjoamentos e birras – mas fruto do que vou contar, narrando os motivos da relutância.
Foi assim. Cidona andava a ajudar Didinha no trabalho de bordar os paramentos do Bispo e uma tarde, pouco depois do acontecido na casa de Moacir, quando estimulada por ele se viu cantando a ária da ópera e foi efusivamente saudada pelo Moacir: bravo, bravíssimo e o ferro de passar roupa caindo de suas mãos, e as brasas se espalhando pela mesa e pelo assoalho, mas o que que tem isso a ver com a relutância? Pois tem! Estavam - Cidona e Didinha - centradas no trabalho de bordar os finos e delicados paramentos quando o Nego trinou seu canto avisando da chegada de gente no portão e Pitoco, nervoso, dentes à mostra, correu rápido de seu posto no fundo da casa e avançou até o portão, latindo, dentes à mostra e o carteiro berrando: xô cachorro de merda, sai vira lata do inferno e Didinha gritando Pitoco! já pra dentro, Pitoco, vamos; e recebeu do assustado carteiro um outro caderno com modelos dos bordados mandado pelo bispo; e Didinha contou para Cidona que o Pitoco adivinhava o canto do Nego: se não é amigo ou conhecido que o Nego vê chegar ao portão ele canta de um jeito que o Pitoco vem feito uma bala, querendo morder, mas quando o Nego vê chegar pessoa conhecida – você, Luzia, Assunção – ele canta lá de um jeito diferente e Pitoco sai do seu caixote, vem correndo latindo mas com o seu toco de rabo balançando feito ventilador, querendo dizer com isso que não vai morder que a visita é bem-vinda; só que Cidona, para mim, o trinado do canto é o mesmo, só mesmo Pitoco sabe diferenciar. E Cidona combinou que iria prestar atenção no que Didinha lhe contou e as duas ficaram a torcer para que chegasse gente no portão para o Nego cantar para atentarem para o latido bravo ou amigo do Pitoco; e como nas histórias as coisas sempre acontecem, logo, logo chega Assunção para um café com as amigas, bate palmas e Cidona toda atenta ao canto do Nego, enfia as notas do canto dentro de seu miolo para guardar assim como fazia com os introitos e com os kyries. Tomaram café, comeram bolinho de chuva e conversaram da vida delas, dos outros e da falta de chuva e dos ventos de agosto. Logo depois de sair para ir embora Assunção, toda gorda, balançando a bunda rumo a sua casa, chega ao portão o louco manso Diquinho, pedinte usual, mesmo sabendo que na casa em que ia pedir pouco se tinha, ou tinha apenas o que era para o sustento de uma viúva virgem. Nem bem bateu palma, fracas palmas de mãos magras e Nego, vendo a chegada de Diquinho trinou seu alerta e Pitoco, como um foguete, sai do caixote e avança: agora um Pitoco do rabo erguido, o cuzinho à mostra, os dentes ferozes querendo atacar as pernas de Diquinho e Didinha gritou: xou Pitoco, pra dentro e atirou um pedaço de pedra e Cidona guardou as notas do trinado em seu miolo e disse: eu sei a diferença dos cantos e brincaram de apostar seguinte: Didinha iria cobrir os olhos de Cidona e ela teria que adivinhar, pelo canto do Nego, se era amigo ou estranho quem batia palmas no portão da casa. E não é que Cidona realmente reconhecia a diferença dos cantos, talvez por uns míseros tons uns décimos oitavos a menos ou a mais nas notas trinadas, a mesma estrutura musical ancestral do Nego afetada pela emoção para avisar ao cachorro Pitoco de quem se aproximava da casa dos dois: amigo ou desconhecido.
E então de um lado a Didinha admirada da competência de Cidona e esta achando aquilo tudo muito simples, bastava ouvir com atenção e foi quando que – absorta na música do Nego - errou os pontos cheios que bordava, enchendo de azul claro uma cruz no paramento, tendo que tudo refazer porque era para fazer o ponto cruz e Didinha dizendo: não foi nada, acontece! e ela: venho para ajudar a apressar o trabalho e acabo atrasando! E naquela noite Cidona sonhou que enquanto estava a passar uma blusa de linho da professora Lourdes, bordada com ponto cruz e ponto cheio quando Moacir ligou a rádio vitrola, colocou o elepê, aumentou o volume e a música tomou conta dela e ela, de tudo se esquecendo, queimou a blusa com o ferro de passar e chorou porque para pagar blusa tão cara teria que passar roupa por anos e anos... e assim na semana seguinte ao bravo, bravíssimo Cidona pediu a Didinha que fosse ela passar as roupas de linho e Didinha explicou ao Moacir que Cidona estava adoentada e que aquele dia não poderia vir passar roupa, por causa do calor do ferro de brasa, da força que tinha que fazer com os braços e Moacir: mas o que ela tem? doença mais séria ou doença de mulher? e Didinha se envergonhou com a doença de mulher e disse: acho que é gripe forte e passou a roupa com a rádio vitrola desligada, o LP de Norma descansando – a capa negra para cima – e Moacir em seu escritório, quieto, colocando em ordem a pasta com recortes do diário oficial. Na semana seguinte, outra vez, Didinha veio passar roupa encompridando a doença de Cidona. Moacir, educado, esperto e desconfiado pergunta aqui, cutuca ali e Didinha, com medo de queimar uma blusa de linho, assentou o ferro de passar no rabo do fogão e contou a história do canto do Nego e das avançadas do Pitoco, do sonho de Cidona e do seu medo de – distraída pela beleza da música – queimar as roupas de linho e que estava decidida em não mais passar roupa e Moacir: fala para ela vir, a vitrola vai ficar desligada.
E na semana seguinte Cidona chegou envergonhada e sem o batom vermelho na boca, parecia mais negra e mais magra, as costas mais curvadas pelo peso da altura do corpo, a voz baixa: boa tarde, o senhor e a professora me desculpem! e Moacir: desculpar do que Cidona? doença não escolhe corpo; veja o monte de roupa que sobrou para você passar... e não ligou a rádio vitrola mas ficou ali ao lado, escutando o chiii! do ferro ao encontrar o tecido gomado, conversando com Cidona e ela no inicio retraída, desconfiada, não acostumada com homem tão rico a falar com tanto respeito com mulher pobre, negra, mas foi se soltando e falou da diferença do canto do Nego para avisar Pitoco de quem chegava ao portão e Moacir entusiasmado: sabe o que você tem Cidona? e ela preocupada com alguma doença: não, não sei, não senhor; e ele: ouvido absoluto Cidona, um fenômeno, poucos têm, um ouvido como o seu: muito, mas muito mais sensível aos sons!
E a rádio vitrola voltou a funcionar, o LP de trinta e três rotações girando calmo, devagar e Moacir se emocionando ao ouvir Cidona: a perfeição da pronúncia da letra – em italiano – com a métrica e a doçura de sua voz lhe causando pequenas e doces taquicardias, iguais às que tinha quando, no Municipal, ouvia belas árias: a voz humana o encantava sobremaneira.
E os dois – Norma e Pollione – cantavam e anotavam ao som da rádio vitrola e enquanto descansavam dos cantos, Moacir, delicado e sensível, direcionava a interpretação de Cidona , contando-lhe a trama do libreto, traduzindo do italiano para o português e passaram a ensaiar para um sarau musical!