Não é nada de maria vai com as outras! Esta é a história de três marias, nenhuma delas tipo maria vai com as outras: cada uma das marias tão diferentes em seus corpos e em suas almas, em seus sonhos e em suas pesadas realidades.
A primeira maria, Maria de Fátima: forte e sacudida como uma mineira gosta de ser: tem na pele do rosto meio amarelada, nos negros e lisos cabelos e nos olhos amendoados a marca de sua avó bugre, pega no laço, e usada por seu avô para fazer filhos enquanto buscava diamantes em rios pedregosos. No mais uma mulher de peitos grandes, duros, lembrando um par de mamões bicudos, as nádegas gordas, macias, embora duras e firmes acima de pernas bem torneadas, redondas, fortes e belas. Belas pernas, belo corpo e belo rosto que gostava de mostrar por completo e para isso enrolava os cabelos em um coque bem feito, preso com ramonas negras, firmes e tudo, claramente, se mostrava, se via: sua boca com lábios grossos e dentes brancos, as delicadas orelhas com o pequeno brinco de ouro que foi presente de crisma do padrinho Olívio, pai de seu marido, o Eduardo.
Ficou mulher casada por pouco tempo, coisa de uns seis ou oito meses, menos de um ano, isso com certeza. A tuberculose levou seu marido, deixando-a viúva aos dezenove anos, sem ter provado a contento as delicias da carne, mais fogosas nos inicios do casamento; lindamente viúva, jovem, pouco mais que uma criança e já com o véu negro a cobrir sua cabeça durante a missa das seis.
Maria de Fátima, Dindinha para seus pais - o casal Juca e Olívia Junqueira - e para seus cinco irmãos mais velhos, com quem morava na casa caiada de branco, telhado alto de longas telhas feitas, de barro, nos joelhos, e com todas as portas e janelas tingidas de azul, na fazenda Santa Luzia. Casa grande, bonita, plantada logo abaixo da serra, córrego do Baguaçu correndo forte abaixo do pomar: corria musical para o Rio Grande com cristalinas águas, uma pequena cachoeira, lambaris do rabo vermelho, samambaias, avencas e flor de São João enfeitando suas margens. Mas foi então que a saúde de sua mãe foi se tornando frágil, mais delicada, deixando-a sem forças o suficiente para cumprir com as obrigações e seu Juca resolveu que o melhor era comprar uma casa menor na cidade para onde, logo depois da colheita do café, se mudaram. Mudança que durou um dia: no carro de boi as pesadas coisas: camas, armários, mesa e cadeiras de grossas tábuas de jacarandá, arcas de couro; na carroça, puxada por dois burros, foram as roupas e louças da cozinha. Na charrete Dona Olívia e Dindinha com seu pai ao lado, montado no Mossoró. Os irmãos mais velhos, solteiros, ficaram na fazenda tomando conta de tudo e Dona Olívia ia se livrar, não por preguiça, mas pela saúde fraca, das lidas com a casa grande da fazenda: tratar da criação de porcos e galinhas, fazer queijo com o leite tirado no curral, cuidar do pomar de mangueiras e laranjeiras, e ainda se enfiar na cozinha, fogão a lenha, para diária e rotineiramente – não nas misturas e nos temperos que variava sempre – fazer comida para a família e agregados: muita boa comida. Tanto trabalho e preocupações estavam se mostrando por demais para dona Olívia e sua negra ajudante Emerenciana. Foram, então, para a cidade: pai, mãe, Dindinha e Emerenciana.
A segunda maria: Maria Aparecida, Cidona: negra, alta, magérrima; um pouco desagradável de pensar, mais ainda de falar, mas feia: sim não era uma mulher bonita, de chamar atenção dos homens quando passava pela calçada fazendo toc toc toc com seus sapatos de salto alto. Pernas finas lembrando uma seriema, negra mulher, reta da cabeça aos pés, sem os deliciosos contornos que os peitos e a bunda deixam as mulheres tão especiais com seus caminhares balançosos, requebrantes, sensuais aos olhos dos homens cobiçosos. No negro rosto a boca em forma de concha, os lábios grossos, tingidos sempre de um vermelho escuro, como que segurando os dentes separados que não cabendo direito dentro da boca e inconformados com a prisão dos lábios grossos, apontavam para fora querendo fugir ; o nariz aquilino, a testa larga e os cabelos pichainhos completavam o rosto que se equilibrava - delicado - no alto do pescoço grande e fino, tudo tão em comum com o resto do corpo: fino, frágil, alto, curvado nas costas. Menino é bicho mau e quando Cidona passava pela rua, e o jogo de futebol com bola de pano tinha de ser interrompido diziam: a cobra cipó raspou as pernas da Cidona: por isso é seca, assim! explicando: é que se acreditava que a cobra cipó, dos campos gerais, quando raspava um corpo deixava um veneno que a tudo secava; pouca malvadeza não cabia nas almas dos meninos que continuavam: não vai poder ter filhos porque não tem peitos para dar de mamá! E Cidona passava alheia: limpa, o sorriso quieto, angelical, o olhar viajando para o infinito, para fora do real mundo, buscando visagens, sonhos e felicidades lá longe - depois das serras azuis que cercavam a cidade -; andava sempre a passos lentos, flutuantes, sem requebros, com seu magro e fino corpo. Feliz mesmo é quando cantava: registro de voz de soprano, soprano coloratura, como diria mais tarde Seu Moacir, a linda voz alcançando os altos graves e os baixos agudos com facilidade e potência; nas cerimônias de sexta feira santa, cobria a cabeça com um manto roxo e era uma negra Madalena a cantar o sabat mater; nas missas de domingo – missa das nove – no coro, com Frei Elias no órgão, cabeça coberta com o véu branco da congregação das virgens filhas de maria, deliciava os ouvidos de todos com o tantun ergun, os kyries e os sanctus sanctus. Assistia a duas missas aos domingos: na das seis, crente, comungava o santo corpo de deus e cumpria o preceito de ir às missas aos domingos; terminada a missa das seis, quando o sermão era mais curto, lá pelas sete horas, voltava para casa para acabar como o santo jejum: bebia café com leite, comia bolo de fubá, realizava suas necessidades matinais e fazia um pouco de hora, conversando à beira do fogão com sua mãe, acariciando o gato Neném, que ronronava em seus braços e voltava para a igreja, para a missa das nove: era a missa dos ricos e ela ia para cantar, feliz. Era a vida: da igreja para casa, da casa para a igreja: caseira a Maria Aparecida, a magra negra Cidona!
A terceira maria: Maria de Lourdes. Professora normalista, dona da cadeira no Grupo Escolar da cidade, fama de boa professora, exigente ao ensinar aos alunos do quarto ano os afluentes do lado direito do rio Amazonas, as capitais dos estados e as regras de acentuação das palavras oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas. Mãe de um único filho, que morava e estudava na capital e o que se falava nas esquinas e quintais e nas salas das casas da cidade, mas bem que pode ser coisa de quem não tem o que fazer, porque poucos sabiam mesmo as verdades, mas ali, naqueles silêncios da cidade pequena, cercada por montanhas cinzentas todos gostavam de assuntar a vida alheia, mas o que se dizia de Sérgio, seu filho, que muito pouco aparecia na pequena cidade, é que era fruto de uma desenfreada paixão de dona Lurdinha – era assim que era chamada – por um médico, este já casado pela segunda vez, a primeira mulher morrera, e pai de seis filhos com essas suas duas mulheres. Cochichavam que foi no baile de formatura das normalistas do Caetano de Campos, que Lurdinha dançou a valsa e se apaixonou por Doutor Vicente e que mais tarde se engravidou e sua importante família acomodou a situação casando-a com seu Moacir. Branca, nem alta nem baixa, olhos negros escondidos debaixo de grossas lentes que corrigiam a miopia de mais de quatro graus, cabelos negros, curtos, rosto redondo, boca sensual. O corpo? Bonito em sua fina cinturinha, elogiada até por ciumentas mulheres, médios peitos firmes, bicos negros, pernas redondas, fortes e a bunda com ancas amplas e uma total ausência de barriga. Bem vestida, comprava roupas na capital, onde passava as férias de julho e se dizia que já tinha ido a Paris mais de uma vez, que tinha viajado de transatlântico, que lia livros escritos em francês e gostava de contar dos concertos de orquestra e ópera que, de chapéu cobrindo chiquemente a cabeça, assistia na capital. Se falava, mesmo, que palestrava em francês com maestros, tenores e pianistas de fora. Sabe-se lá: tudo se fala e pensar não é pecado, ainda mais quando não se pensa coisas feias, pecados mortais, veniais. Pequena a cidade para onde veio - por amor - e onde vivia – por amor- : peixe fora d’água no providencialismo estreito e moralista da cidade à beira da serra que a tudo cercava, fechava e cegava: visões, sonhos tampados e impedidos de alcançarem o além serra.
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