sexta-feira, 22 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS -7- A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE BOADICÉIA E CARÁTACO - I- APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS: BOADICÉIA.

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Quero contar um pouco a fantástica história de Boadicéia.


Estou a falar de uma mulher de seus quarenta e poucos anos, alta e magra, mas não aquelas magras esqueléticas tipo modelo; Boadicéia é magra, mas recheada de curvas e saliências, que diminuem um pouco a dureza da face e do olhar negro, desconfiado, desafiador. Seus longos cabelos grisalhos, soltos, lisos, pendentes, cobrem o pescoço delgado e emoldura a face com a boca bem feita, maçãs do rosto proeminentes, grandes olhos negros, delicadas sobrancelhas grisalhas.


Uma linda mulher?


Sim e não.


Mas digo que é impossível não se sensibilizar com a beleza estranha de Boadicéia, com seu corpo escultural, seu andar com passos delicados, corpo sempre ereto e o balançar ritmado dos quadris largos, sustentado por longas e bem torneadas pernas. Há, no entando, em momentos indefinidos, que uma expressão dura e máscula, traveste toda a beleza do corpo e do rosto severo, embora, extremamente delicado quando olhado com atenção maior.


A primeira vez que a vi foi, salvo engano, em Hontanas.


Havia saído ainda madrugada, dia escuro, de Burgos, e andado por volta de trinta quilômetros até Hontanas, passando antes por Hornillos Del Camino. Cheguei a Hontanas por volta das duas horas da tarde: um pequeno povoado medieval, com menos de cem habitantes e que vive, do ponto de vista econômico, em função do Caminho de Santiago e seus peregrinos.


Aproveito para abrir um longo parêntese. Uma de minhas principais motivações em fazer o Caminho de Santiago era a de conhecer e pernoitar em povoados medievais. Me fascinava, enquanto planejava a viagem ao Caminho, ou mesmo, quando cansado de caminhar nas dunas para fortalecer os músculos das pernas, eu vislumbrava a possibilidade de conhecer, conversar com os moradores, fazer as refeições e dormir nos pequenos povoados medievais que, até então, só conhecia através do soberano guia “El Ca mino de Santiago em Tu Mochila”. Pois Hontanas, em seu silêncio, no escuro de suas casas feitas de pedras, em suas ruas tortuosamente planejadas e em sua pequena igreja foi a concretização de tão sonhado desejo. Me alojei no albergue Municipal me preparando para realizar mais uma de minhas manias: penso que só realmente conheço um lugar se nele pernoito: foi assim com as belíssimas Ouro Preto, Tiradentes e Diamantina. Acordar durante a noite e, na cama ou na rua, ouvir o silêncio, ver estrelas e a lua, ouvir pequenos estalos no telhado, ver ou ouvir os gatos miando a procura de amantes, os latidos dos cachorros defendendo suas propriedades, aquecem meu coração; enfim: acho que só conheço um lugar depois de nele dormir. E não é coisa de velho: sempre fui assim. Fecham-se os parentes.


E em Hontanas, ao sair do albergue a procura de um “menu Del peregrino”, vi chegar Boadicéia. Na maioria dos albergues do caminho há um local especial para guarda dos cajados e para o recolhimento das botas, neste caso para evitar o odor das mesmas nos aposentos. Boadicéia, primeiro tirou suas botas, guardou-as para só depois colocar seu cajado no local apropriado: juntou, então, aos tantos cajados que haviam sido depositados na caixa, um galho de árvore de mais de dois metros; seu cajado tinha uma forquilha na ponta, na qual uma flor amarela, que lembra um pouco nosso hibisco, havia sido amarrada. E então seu cajado, alto e comprido, com a flor na ponta da forquilha, despontava orgulhoso na companhia dos outros tão ordinários, simples e industriais cajados.


Feito isso entrou no albergue sem olhar para os lados; passou por mim, que ainda estava observando-a na porta, e não me viu, claro. Dirigiu-se ao “hospitaleiro”, apresentou sua credencial, que foi carimbada, pagou a taxa e subiu para o alojamento.


Esqueci um pouco a fome e a busca até um local com oferta do “menu Del peregrino”, e, curioso demais para minha idade, fui à mesa da recepção e, no livro de registro, descobri seu nome e sua nacionalidade. Sei que o que fiz é feio e pouco recomendável: o correto é matar a curiosidade perguntando à própria pessoa o seu nome, sua nacionalidade, travando amizade, falando de você, do país de onde veio, de onde partiu nesta caminhada; é assim que é mais educado, e é o que se espera de um peregrino, mas não foi o que fiz.


Ao fim do dia tornei a vê-la e vi Boadicéia transformada.


Vestia-se como uma “hippie” dos anos setenta: bata indígena, saia longa de seda, sandália de couro e uma tiara na cabeça, segurando o cabelo repartido ao meio; e ali, naquele fundão de mundo, em pleno Caminho de Santiago, aquela figura tão hippie fez bem a minha imaginação, que voou para os festivais de Woodstock, para Jimi Hendrix, Joan Baez, Ravi Shankar, Janes Joplin e, como não podia deixar e ser, revivi as manhãs de domingo na feira hippie em nossa Praça da República.


Acordei de madrugada, como sempre, e me preparei para seguir o Caminho.


Uma hora ou mais, depois de minha saída, de Hontanas rumo a Castrojeriz, uma agradável surpresa: alcancei Boadicéia que estava a colher flores na beirada do caminho para fazer, com elas, um desenho no centro da trilha.


Cumprimentei-a e fui cordialmente convidado a colher flores para ajudá-la a completar a construção de seu desenho.


Colhi papoulas e lhe ofereci.


Boadicéia, então, terminou seu desenho: 14:05


Olhou o desenho, aprovou-o com um gesto e um sorriso e, estava tudo pronto, disse-me ela, para a primeira foto do dia.


Retirou sua pequena e antiga câmera fotográfica do bolso da mochila e fotografou o seu calendário florido. Era o seu truque para, repetindo a mesma cerimônia todas as manhãs de seu caminhar, suprir a deficiência de sua ultrapassada câmera, que tão velha, não tinha o calendário automático embutido.


- “Assim que clareia o dia, disse-me, colho flores, pequenas folhas que uso para anotar, no caminho, o dia que se inicia.”, ao mesmo tempo em olhava a tela de sua máquina para ver a foto do dia quatorze de maio.


Aprovou e me informou, emocionada, que mais tarde, em sua casa, em seu distante país, ao rever as fotos, saberia o dia em foram tiradas.




2 comentários:

Morales disse...

Orlando...talvez tenha sido proposital, mas não informou a nacionalidade da Boadicéia. Que boa idéia a da moça, data com flores no chão! Mui lindo, diriam aos espanhóis!

Orlando disse...

Olá Tonhão,
Sim:"mui lindo", como diriam os primos do Pablo, aquelas flores marcando os dias de caminhada.
O Caminho me surpreendeu.
Abração,
Orlando.