Margoso é uma pequena vila, incrustada, feito um presépio, no meio do verde das árvores e do negro acinzentado das enormes e pesadas rochas da serra do Alto Porã. Foi lá, no Margoso, que encontrei o Seu João de Barros e Dona Lúcia, sua mulher.
Ele, Seu João, muito magro, costelas à mostra sob a camisa de algodão, com uma verruga enorme, marrom, pouco acima dos bigodes grisalhos e logo abaixo dos olhos brilhantes, vivos, azuis. Seus cabelos, brancos, passado do grisalho, quase não se vê, enfiados, sempre, sob o chapéu de camurça. Conta suas histórias com a voz grave, melodiosa, que parece sair do fundo do peito, bolindo, para cima e para baixo, com o pomo de Adão no pescoço escuro marcado pelo sol; nas pausas de suas histórias, fazendo o papel de vírgula, seu dedo minguinho alisa a verruga e os olhos azuis se fecham , saboreando o intervalo silencioso, ganhado tempo para pensar nos fins de suas histórias.
- “Margoso, de antes, era bem diferente. No lugar desta, agora, igreja branca com sino e tudo, o que tinha, mesmo, era uma pequena capela; mais embaixo, a duas quadras da praça, onde se tem o Grupo Escolar era a escolinha municipal, que foi onde encontrei Lúcia, minha mulher de há mais de cinqüenta anos. E sabe o senhor que foi na antiga capelinha que nos casamos? Pois foi: Lúcia, sempre muito bonita em seu vestido branco de organdi, eu com paletó de gabardine, gravata apertando o pescoço e o padre, solenemente paramentado, dando sua benção. No final do casamento, junto e mesmo depois dos cumprimentos, no jardim frente à porta da igreja, teve fogos e foguetes; e se quer saber mais ainda doutor, eu digo que também que foi nesta casa, onde estamos agora tomando café com leite e comendo bolo de fubá que sempre vivemos e criamos nossas filhas? Faz já muito tempo isso tudo. Nossas vidas... Daqui do Margoso até a cidade mesmo, com cartório, banco, cadeia e outras coisas se gasta mais de quatro horas se for a cavalo, e umas duas se for de trator, jipe ou caminhão, pois, sabe, doutor, que automóvel com seus luxos, ainda não passa por aqui: estrada com muitos buracos, subidas fortes e curvas perigosas feitas para desviar dos negros e profundos tembés rochosos, que arrodeiam toda a serra. Pois eu fui lá, na cidade, durante toda a minha vida, duas vezes e por necessidade pura: uma vez fui para acertar, no cartório, a papelada do sítio que herdei de meu pai e outra vez chamado pelo juiz para ser testemunha em júri no fórum da cidade: crime de morte. E foi só: por demais não gosto e penso que não careço de ver mais longe que do Margoso. Para mim, daqui do alto da serra do Alto Porã, dá para enxergar o longe, bem longe e já está bom demais.”
Cheguei em Margoso - e veja só quem lê esta história: se realmente eu contasse imitando direitinho a fala do pessoal de Margoso, teria escrito que cheguei "no" Margoso, mas deixa isso para lá - ao fim do dia, quase noite, depois de andar uns trinta e poucos quilômetros, em mais uma de minhas intermináveis caminhadas pelo interior de Minas Gerais. A casa de Dona Lúcia e Seu João é o pouso indicado aos andarilhos que se aventuram por aquela região; lá se encontra cama limpa, banho, comida caseira e muita prosa. Para aproveitar a luz do dia, que ainda tinha, fui, antes mesmo das prosas, para o tanque no quintal, coberto com folhas de palmito, com uma torneira de água clara e farta, escova de piaçava, bola de sabão de pedra, feito com soda e mamona; carecia lavar as botas e as meias imundas de tanto pó, a bermuda e a camiseta marcadas pelo suor do dia quente e pelas alças da pesada mochila.
Dona Lúcia, bem falante, é fisicamente, o oposto do marido: cheia de carnes recheando e dando formas arredondadas ao corpo, seios abundantes, quadris largos no alto de suas pernas curtas e grossas. Bonita e, pela tintura dos cabelos e pelas unhas esmaltadas, vaidosa em seus mais de cinqüenta anos. Rigorosa e prestativa, ao ver meu pouco caso em lavar as botas e a camiseta toma meu lugar:
- “Posso lavar para o senhor? Acho melhor...”, disse ao mesmo tempo em que recolhia do varal a camiseta que, embora lavada teimava em mostrar manchas escuras provocadas pelo suor, pó e atrito com as alças da mochila; e enquanto lavava:
- “Amanhã vai ser dia de festa na igreja. É dia da Padroeira e vai ter quermesse com leilão de prendas logo depois da missa rezada pelo padre. Por que não fica? Gosta de festa?”
Me comove, na verdade me fascina, festas singelas, sem cheiros de modernidade! Uma outra vez, também em uma pequena cidade de Minas, numa dessas festas tive a oportunidade de saborear, em plena praça da igreja, uma canja de galinha cozida em enorme panela de ferro, servida com fartura em prato fundo; e foi assim, com o prato cheio de canja repousado no colo, uma colher, um banco de jardim, lua e estrelas ao céu, o zunzum de gentes falando ao redor e mais ao fundo, de dento da igrejinha, a voz do padre dizendo a missa, com a sopa aquecendo a garganta e o estômago, que me lembrei do que diz uma amiga que se tornou cozinheira famosa: canja é uma comida que fortalece a alma.
Mas para não encompridar mais ainda está história: aceitei imediatamente ao convite, acertei o preço de mais um almoço, uma jantar e uma noite na pousada da Dona Lúcia e foi assim, por causa de uma festa na igreja, que passei em Margoso um domingo ensolarado e quente.
Acordei cedo e dei de cara com o Seu João na sala, os olhos grudados em uma televisão com imagens em branco e preto e o som quase no zero para não fazer barulho, provavelmente preocupado em não me incomodar. Na tela um programa rural falando de pescaria de fieira.
E você, leitor, já ouviu falar de pescar de fieira? Deixando de lado a preocupação em esticar mais ainda esta história , vou contar. Muito simples: é um tipo de pesca possível de ser realizada apenas em pequenos córregos pedregosos, onde haja fartura de gambeva e pequenos mandis, melhor dizendo, manditingas. O instrumento de pesca, em vez da tradicional vara e anzol, é uma forquilha tirada de qualquer árvore, não precisa ser de jabuticabeira ou de goiabeira, as melhores para forquilha de estilingue, e linha destas de costura, sendo melhor as mais grossas, número cinqüenta, se não me engano. Pois então, pega-se as minhocas, bastante, e com a ajuda de uma agulha, “costura-as” na linha, como que vestindo-a, tendo sempre o cuidado de deixar pontinhas para, nelas, as gambevas ou manditingas “mamarem” para serem fisgadas. E assim, depois de vestida de minhocas, é que se amarra a linha nas pontas do Y da forquilha, fixando-a bem. Depois , acertado o poço onde será realizada a pescaria, vai-se até alguns metros acima do mesmo e com enxada ou um pequeno enxadão joga-se bastante terra na água turvando-a ponto de impedir que as gambevas, ou manditingas, com seus olhinhos miúdos e negros, enxerguem o pescador, seu algoz. Tomada estas precauções vai-se à pesca propriamente dito: mergulha-se a fieira com as minhocas nas águas barrentas do poço e depois de alguns segundos ergue, silenciosa e suavemente, a fieira acima do nível da água; a fieira vem, então, carregada de gambevas ou manditingas dependuradas, que, sentindo a falta d´água caem em uma bacia ou peneira colocada sob a forquilha. Pega-se o bastante para a mistura de uma refeição, porque mais não precisa: tanto gambeva como a manditingas fritas são deliciosas, tenras, carne branca sob a pele escura, sem escamas.
Voltando a nossa história, percebo que tirei o sossego do Seu João que, ao me ver de pé, imediatamente desliga a televisão e:
- “Bom dia! Estou indo à padaria buscar pão. Em um momento já estou de volta para o café.”
- “Posso ir junto?”, pergunto por perguntar, e o acompanho rua abaixo.
- “ ´dia seu João.”
- “ ´dia seu André. Hoje, tem andarilho aqui em casa; então quero seis pãezinhos; manteiga já temos e o leite trouxe do sítio, não carece.”
- “Tá certo...vai na quermesse, seu João?”
- “Ocha se vou, e o senhor aqui do lado, o andarilho, também. Viu o programa de pesca na televisão seu André?”
- “Vi sim, pesca de fieira; e olhe que deu sorte pelo tanto de gambevas que o danado pegou.”
- “Gambeva, não, seu André, foi manditinga.”
- “Me pareceu gambeva, seu João: pele negra, barbatana comprida. A manditinga ...”
Seu João desconversou:
- “Bem, ta´qui o dinheiro do pão, tenho que ir; mas foi manditinga, sim, conheço bem peixe.”
No caminho de volta por duas vezes Seu João resmungou em voz baixa:
- “Foi manditinga ..., conheço bem de peixe.”
No café da manhã, além dos pãezinhos, leite, café amargo, bolo de fubá e banana da terra frita. Enquanto comíamos, os três, conversávamos. E o Seu João, insistindo:
- “Pois então Lúcia, na televisão hoje teve pesca de fieira; se lembra o tanto que a gente pescou de fieira no córrego do Bom Jesus. Lá se pegava gambeva, mas no programa de hoje o que pescaram foi manditinga.”
- “Para mim tudo igual: parecido demais, difícil de saber. O que sei é que gosto delas fritas, depois de passadas no fubá.”
- “Bem diferentes. A gambeva tem a pele mais...”
E agora quem desconversou foi dona Lúcia:
- “Tá bom João, mas é muita precisão. E o bolo de fubá, está de seu gosto? E o senhor andarilho, pronto para a quermesse?”
Depois do café saí a caminhar pela vila do Margoso. Em um banco do jardim, frente à igreja, fico assistindo o movimento das pessoas terminando de montar as barraquinhas para a quermesse.
A praça, pequena, vai se povoando das gentes do lugar. As mulheres em seus vestidos de domingo, os homens, todos de chapéu, com camisas bem passadas, botinas limpas de barro, crianças pelas mãos...Fila de mulheres, dentro da igreja, para a confissão. Os homens de fora, esperando a hora da missa começar.
Conversam:
- “Acho igual ao Seu João, que foi manditinga o que pescaram na fieira; pele mais clara que gambeva.”, fala do alto de seu mais de um metro e oitenta o seu Ricardo, fazendeiro e velho morador do Margoso.
- “Acho não. Sei que a manditinga tem a pele mais clara, pois daí é que vem seu nome, tirado do tupi: mandi + -tinga (tupi 'tinga 'branco, claro'), mas a da pesca de hoje na televisão foi gambeva, mesmo.”, replica, garboso em sua profissão de professor de português, o Álvaro.
Nisso o padre, sai à porta da igreja e chama a todos para a missa que vai começar.
Bom ir logo porque depois da missa vai ter quermesse com leilão de muitas prendas: frango assado, bolo, garrafas de vinho e, segundo, Dona Lúcia, até uma paca assada pela mulher do seu Higino.
Ele, Seu João, muito magro, costelas à mostra sob a camisa de algodão, com uma verruga enorme, marrom, pouco acima dos bigodes grisalhos e logo abaixo dos olhos brilhantes, vivos, azuis. Seus cabelos, brancos, passado do grisalho, quase não se vê, enfiados, sempre, sob o chapéu de camurça. Conta suas histórias com a voz grave, melodiosa, que parece sair do fundo do peito, bolindo, para cima e para baixo, com o pomo de Adão no pescoço escuro marcado pelo sol; nas pausas de suas histórias, fazendo o papel de vírgula, seu dedo minguinho alisa a verruga e os olhos azuis se fecham , saboreando o intervalo silencioso, ganhado tempo para pensar nos fins de suas histórias.
- “Margoso, de antes, era bem diferente. No lugar desta, agora, igreja branca com sino e tudo, o que tinha, mesmo, era uma pequena capela; mais embaixo, a duas quadras da praça, onde se tem o Grupo Escolar era a escolinha municipal, que foi onde encontrei Lúcia, minha mulher de há mais de cinqüenta anos. E sabe o senhor que foi na antiga capelinha que nos casamos? Pois foi: Lúcia, sempre muito bonita em seu vestido branco de organdi, eu com paletó de gabardine, gravata apertando o pescoço e o padre, solenemente paramentado, dando sua benção. No final do casamento, junto e mesmo depois dos cumprimentos, no jardim frente à porta da igreja, teve fogos e foguetes; e se quer saber mais ainda doutor, eu digo que também que foi nesta casa, onde estamos agora tomando café com leite e comendo bolo de fubá que sempre vivemos e criamos nossas filhas? Faz já muito tempo isso tudo. Nossas vidas... Daqui do Margoso até a cidade mesmo, com cartório, banco, cadeia e outras coisas se gasta mais de quatro horas se for a cavalo, e umas duas se for de trator, jipe ou caminhão, pois, sabe, doutor, que automóvel com seus luxos, ainda não passa por aqui: estrada com muitos buracos, subidas fortes e curvas perigosas feitas para desviar dos negros e profundos tembés rochosos, que arrodeiam toda a serra. Pois eu fui lá, na cidade, durante toda a minha vida, duas vezes e por necessidade pura: uma vez fui para acertar, no cartório, a papelada do sítio que herdei de meu pai e outra vez chamado pelo juiz para ser testemunha em júri no fórum da cidade: crime de morte. E foi só: por demais não gosto e penso que não careço de ver mais longe que do Margoso. Para mim, daqui do alto da serra do Alto Porã, dá para enxergar o longe, bem longe e já está bom demais.”
Cheguei em Margoso - e veja só quem lê esta história: se realmente eu contasse imitando direitinho a fala do pessoal de Margoso, teria escrito que cheguei "no" Margoso, mas deixa isso para lá - ao fim do dia, quase noite, depois de andar uns trinta e poucos quilômetros, em mais uma de minhas intermináveis caminhadas pelo interior de Minas Gerais. A casa de Dona Lúcia e Seu João é o pouso indicado aos andarilhos que se aventuram por aquela região; lá se encontra cama limpa, banho, comida caseira e muita prosa. Para aproveitar a luz do dia, que ainda tinha, fui, antes mesmo das prosas, para o tanque no quintal, coberto com folhas de palmito, com uma torneira de água clara e farta, escova de piaçava, bola de sabão de pedra, feito com soda e mamona; carecia lavar as botas e as meias imundas de tanto pó, a bermuda e a camiseta marcadas pelo suor do dia quente e pelas alças da pesada mochila.
Dona Lúcia, bem falante, é fisicamente, o oposto do marido: cheia de carnes recheando e dando formas arredondadas ao corpo, seios abundantes, quadris largos no alto de suas pernas curtas e grossas. Bonita e, pela tintura dos cabelos e pelas unhas esmaltadas, vaidosa em seus mais de cinqüenta anos. Rigorosa e prestativa, ao ver meu pouco caso em lavar as botas e a camiseta toma meu lugar:
- “Posso lavar para o senhor? Acho melhor...”, disse ao mesmo tempo em que recolhia do varal a camiseta que, embora lavada teimava em mostrar manchas escuras provocadas pelo suor, pó e atrito com as alças da mochila; e enquanto lavava:
- “Amanhã vai ser dia de festa na igreja. É dia da Padroeira e vai ter quermesse com leilão de prendas logo depois da missa rezada pelo padre. Por que não fica? Gosta de festa?”
Me comove, na verdade me fascina, festas singelas, sem cheiros de modernidade! Uma outra vez, também em uma pequena cidade de Minas, numa dessas festas tive a oportunidade de saborear, em plena praça da igreja, uma canja de galinha cozida em enorme panela de ferro, servida com fartura em prato fundo; e foi assim, com o prato cheio de canja repousado no colo, uma colher, um banco de jardim, lua e estrelas ao céu, o zunzum de gentes falando ao redor e mais ao fundo, de dento da igrejinha, a voz do padre dizendo a missa, com a sopa aquecendo a garganta e o estômago, que me lembrei do que diz uma amiga que se tornou cozinheira famosa: canja é uma comida que fortalece a alma.
Mas para não encompridar mais ainda está história: aceitei imediatamente ao convite, acertei o preço de mais um almoço, uma jantar e uma noite na pousada da Dona Lúcia e foi assim, por causa de uma festa na igreja, que passei em Margoso um domingo ensolarado e quente.
Acordei cedo e dei de cara com o Seu João na sala, os olhos grudados em uma televisão com imagens em branco e preto e o som quase no zero para não fazer barulho, provavelmente preocupado em não me incomodar. Na tela um programa rural falando de pescaria de fieira.
E você, leitor, já ouviu falar de pescar de fieira? Deixando de lado a preocupação em esticar mais ainda esta história , vou contar. Muito simples: é um tipo de pesca possível de ser realizada apenas em pequenos córregos pedregosos, onde haja fartura de gambeva e pequenos mandis, melhor dizendo, manditingas. O instrumento de pesca, em vez da tradicional vara e anzol, é uma forquilha tirada de qualquer árvore, não precisa ser de jabuticabeira ou de goiabeira, as melhores para forquilha de estilingue, e linha destas de costura, sendo melhor as mais grossas, número cinqüenta, se não me engano. Pois então, pega-se as minhocas, bastante, e com a ajuda de uma agulha, “costura-as” na linha, como que vestindo-a, tendo sempre o cuidado de deixar pontinhas para, nelas, as gambevas ou manditingas “mamarem” para serem fisgadas. E assim, depois de vestida de minhocas, é que se amarra a linha nas pontas do Y da forquilha, fixando-a bem. Depois , acertado o poço onde será realizada a pescaria, vai-se até alguns metros acima do mesmo e com enxada ou um pequeno enxadão joga-se bastante terra na água turvando-a ponto de impedir que as gambevas, ou manditingas, com seus olhinhos miúdos e negros, enxerguem o pescador, seu algoz. Tomada estas precauções vai-se à pesca propriamente dito: mergulha-se a fieira com as minhocas nas águas barrentas do poço e depois de alguns segundos ergue, silenciosa e suavemente, a fieira acima do nível da água; a fieira vem, então, carregada de gambevas ou manditingas dependuradas, que, sentindo a falta d´água caem em uma bacia ou peneira colocada sob a forquilha. Pega-se o bastante para a mistura de uma refeição, porque mais não precisa: tanto gambeva como a manditingas fritas são deliciosas, tenras, carne branca sob a pele escura, sem escamas.
Voltando a nossa história, percebo que tirei o sossego do Seu João que, ao me ver de pé, imediatamente desliga a televisão e:
- “Bom dia! Estou indo à padaria buscar pão. Em um momento já estou de volta para o café.”
- “Posso ir junto?”, pergunto por perguntar, e o acompanho rua abaixo.
- “ ´dia seu João.”
- “ ´dia seu André. Hoje, tem andarilho aqui em casa; então quero seis pãezinhos; manteiga já temos e o leite trouxe do sítio, não carece.”
- “Tá certo...vai na quermesse, seu João?”
- “Ocha se vou, e o senhor aqui do lado, o andarilho, também. Viu o programa de pesca na televisão seu André?”
- “Vi sim, pesca de fieira; e olhe que deu sorte pelo tanto de gambevas que o danado pegou.”
- “Gambeva, não, seu André, foi manditinga.”
- “Me pareceu gambeva, seu João: pele negra, barbatana comprida. A manditinga ...”
Seu João desconversou:
- “Bem, ta´qui o dinheiro do pão, tenho que ir; mas foi manditinga, sim, conheço bem peixe.”
No caminho de volta por duas vezes Seu João resmungou em voz baixa:
- “Foi manditinga ..., conheço bem de peixe.”
No café da manhã, além dos pãezinhos, leite, café amargo, bolo de fubá e banana da terra frita. Enquanto comíamos, os três, conversávamos. E o Seu João, insistindo:
- “Pois então Lúcia, na televisão hoje teve pesca de fieira; se lembra o tanto que a gente pescou de fieira no córrego do Bom Jesus. Lá se pegava gambeva, mas no programa de hoje o que pescaram foi manditinga.”
- “Para mim tudo igual: parecido demais, difícil de saber. O que sei é que gosto delas fritas, depois de passadas no fubá.”
- “Bem diferentes. A gambeva tem a pele mais...”
E agora quem desconversou foi dona Lúcia:
- “Tá bom João, mas é muita precisão. E o bolo de fubá, está de seu gosto? E o senhor andarilho, pronto para a quermesse?”
Depois do café saí a caminhar pela vila do Margoso. Em um banco do jardim, frente à igreja, fico assistindo o movimento das pessoas terminando de montar as barraquinhas para a quermesse.
A praça, pequena, vai se povoando das gentes do lugar. As mulheres em seus vestidos de domingo, os homens, todos de chapéu, com camisas bem passadas, botinas limpas de barro, crianças pelas mãos...Fila de mulheres, dentro da igreja, para a confissão. Os homens de fora, esperando a hora da missa começar.
Conversam:
- “Acho igual ao Seu João, que foi manditinga o que pescaram na fieira; pele mais clara que gambeva.”, fala do alto de seu mais de um metro e oitenta o seu Ricardo, fazendeiro e velho morador do Margoso.
- “Acho não. Sei que a manditinga tem a pele mais clara, pois daí é que vem seu nome, tirado do tupi: mandi + -tinga (tupi 'tinga 'branco, claro'), mas a da pesca de hoje na televisão foi gambeva, mesmo.”, replica, garboso em sua profissão de professor de português, o Álvaro.
Nisso o padre, sai à porta da igreja e chama a todos para a missa que vai começar.
Bom ir logo porque depois da missa vai ter quermesse com leilão de muitas prendas: frango assado, bolo, garrafas de vinho e, segundo, Dona Lúcia, até uma paca assada pela mulher do seu Higino.
Bom demais.
Missa rezada e a praça, de novo, torna-se toda povoada das diversas pessoas: pais, mães, filhos, solteiros, casados, moças e rapazes e até dos soldados e do vice-prefeito que vieram, de jipe, da cidade, prestigiar a festa da padroeira.
Fogos e foguetes. Bum! Bum! Rolinhas voam assustadas!
Começa o leilão das prendas para arrecadar fundos para a pintura da igreja.
Dona Lúcia, amiga do padre, inventa um jeito e me coloca como a pessoa que, ao lado do leiloeiro, segura a prenda para que a mesma fique no alto, mais à vista de todos.
E o leiloeiro com sua voz forte, sonora:
- “E aqui, a primeira prenda, um frango assado, todo recheado, oferta da família Santana. Quanto me dão por este delicioso frango?”
E eu lá, com a obrigação de erguer o frango desfilando-o bem visível aos interessados.
- “Damos dez.”, responde um grupo sentado em uma das mesas, com garrafas de cerveja abertas, alegres, falantes.
- “Quinze”, responde o outro grupo, “cobrimos com quinze, e vamos, nós, comer este frango.”
E o leiloeiro:
-“Quinze, oferece o pessoal da mesa à nossa esquerda. E é só? Quem dá mais?...
- “Vinte...damos vinte, para comer agora, com a cerveja gelada.”, grita alto o pessoal da primeira mesa, na qual estava o Seu João.
E a disputa correu solta: deu para perceber que na mesa do Seu João estavam os que achavam que o peixe pescado na fieira foi manditinga e, na outra mesa, os que defendiam que havia sido gambeva, o peixe pescado.
Era o que dava para ver, do alto do coreto, junto ao leiloeiro, segurando o cheiroso frango assado, ainda quentinho, envolto em papel celofane .
- “Vinte..” grita o leiloeiro e, com seu martelinho improvisado, batendo forte sobre a mesa, “dou-lhe uma!...Vinte! E dou-lhe duas...”
- “Vinte e cinco, nós é que vamos comer”, cobre a oferta, Seu João.
- “Trinta! Comam manditinga, que nós vamos comer é frango”, responde a mesa do pessoal da gambeva.
E o leiloeiro:
- “Trinta! Trinta! Trinta!...Quem dá mais? Dou-lhe uma, trinta! Dou-lhe duas. Trinta! Trinta pelo frango! E dou lhe....Quem dá mais? Ninguém? É pouco, o frango vale, quem dá mais? Ninguém? Então dou-lhe três! Quem come o frango é pessoal da gambeva.”
E enquanto, batia forte o martelo na mesa, ordenou para que eu entregasse o frango ao pesssoal da mesa com o lance vencedor.
Então: Viva a gambeva, e acabou –se!
Missa rezada e a praça, de novo, torna-se toda povoada das diversas pessoas: pais, mães, filhos, solteiros, casados, moças e rapazes e até dos soldados e do vice-prefeito que vieram, de jipe, da cidade, prestigiar a festa da padroeira.
Fogos e foguetes. Bum! Bum! Rolinhas voam assustadas!
Começa o leilão das prendas para arrecadar fundos para a pintura da igreja.
Dona Lúcia, amiga do padre, inventa um jeito e me coloca como a pessoa que, ao lado do leiloeiro, segura a prenda para que a mesma fique no alto, mais à vista de todos.
E o leiloeiro com sua voz forte, sonora:
- “E aqui, a primeira prenda, um frango assado, todo recheado, oferta da família Santana. Quanto me dão por este delicioso frango?”
E eu lá, com a obrigação de erguer o frango desfilando-o bem visível aos interessados.
- “Damos dez.”, responde um grupo sentado em uma das mesas, com garrafas de cerveja abertas, alegres, falantes.
- “Quinze”, responde o outro grupo, “cobrimos com quinze, e vamos, nós, comer este frango.”
E o leiloeiro:
-“Quinze, oferece o pessoal da mesa à nossa esquerda. E é só? Quem dá mais?...
- “Vinte...damos vinte, para comer agora, com a cerveja gelada.”, grita alto o pessoal da primeira mesa, na qual estava o Seu João.
E a disputa correu solta: deu para perceber que na mesa do Seu João estavam os que achavam que o peixe pescado na fieira foi manditinga e, na outra mesa, os que defendiam que havia sido gambeva, o peixe pescado.
Era o que dava para ver, do alto do coreto, junto ao leiloeiro, segurando o cheiroso frango assado, ainda quentinho, envolto em papel celofane .
- “Vinte..” grita o leiloeiro e, com seu martelinho improvisado, batendo forte sobre a mesa, “dou-lhe uma!...Vinte! E dou-lhe duas...”
- “Vinte e cinco, nós é que vamos comer”, cobre a oferta, Seu João.
- “Trinta! Comam manditinga, que nós vamos comer é frango”, responde a mesa do pessoal da gambeva.
E o leiloeiro:
- “Trinta! Trinta! Trinta!...Quem dá mais? Dou-lhe uma, trinta! Dou-lhe duas. Trinta! Trinta pelo frango! E dou lhe....Quem dá mais? Ninguém? É pouco, o frango vale, quem dá mais? Ninguém? Então dou-lhe três! Quem come o frango é pessoal da gambeva.”
E enquanto, batia forte o martelo na mesa, ordenou para que eu entregasse o frango ao pesssoal da mesa com o lance vencedor.
Então: Viva a gambeva, e acabou –se!
2 comentários:
Gambeva ou manditinga?
Orlando,pesquei muito mandi escuro e branco nos rios lá de Trabiju quando era menino, mas por lá eram conhedidos apenas como mandis. O danado era perigoso, pois tinha um ferrão que cravava na mão do pescador incauto que não sabia segurá-lo para tirar do anzol(veja, lá pescávamos o danado com anzol coberto com minhoca mesmo!). Como pode ver sua história me lançou mais uma vez na infância, especialmente quando descreve a quermesse e a disputa pelo frango assado! Boas e prazeirosas lembranças!
Olá Tonhão,
Tem um pouco de “invencionice” nesta história.
Agora, manditinga eu vim a conhecer - pesquei muitas - quando trabalhei no Vale do Ribeira; elas lembram as negras gambevas de nossos pedregosos córregos, só que com uma cor que varia de um cinza claro, puxado para o marrom. Quando fisgada sai chorando e é um peixe abundante no rio Ribeira de Iguape: fritas são bem gostosas.
Abraços,
Orlando.
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