quarta-feira, 10 de junho de 2009
Caminho da Fé, o retorno: mais histórias
Desta vez, para escrever esta história, tive o cuidado de rever o mapa do Caminho da Fé para relembrar direitinho onde houve este acontecido; assim evito ficar escrevendo que penso se o que quero contar ocorreu ali, ou se foi acolá, que não me lembro mais o nome da cidade, o que é uma vergonha, se bem que o que mais me importa ultimamente é, parafraseando Borges, “a manifestação de um anseio, não a história de fato”.
Pois bem: aqui o acontecido se deu em uma manhã em que eu caminhava de Estiva em direção a Consolação. Como sempre, procuro sair cedo, tão logo o sol desponta: ver os primeiros raios do sol surgirem no alto das montanhas de Minas é indescritível, ainda mais nesta época do ano, quando os raios se misturam e furam os flocos de neblinas brancas que encobrem os morros e as montanhas. Muito bonito.
Creio que já havia caminhado por volta de uma meia hora ou um pouco mais, quando percebo que uma mulher, a Emanoelina, lutava com dificuldades para fechar um cochete à beira da estrada. Caminhar é, por demais, reviver: não me lembrava mais da existência de cochete; assim moderno leitor, se eu, nascido e criado no meio da roça, não me lembrava mais do que é cochete, acho que vale a pena esta explicação: cochete é, segundo Houaiss, uma “porteira feita com arame farpado esticado por mourões leves, fechada por um pau roliço cujas extremidades são enfiadas em argolas de arame”. Mas continuando a história: como todo e qualquer macho gentil, me preparava para ajudá-la, quando a mesma conseguiu por fim ao seu intento e, aliviada, com o cochete fechado, levanta a cabeça me vê e pergunta:
- “Tem horas, senhor peregrino?”
Olho para o relógio e respondo:
- “São seis e quarenta, cedo ainda.”
Emanoelina é uma típica mulher mineira. Baixa estatura, morena, ombros largos, braços curtos e o olhar desconfiado; tinha, naquele dia , os cabelos crespos e longos amarrados logo abaixo do pescoço, formando um pequeno rabo de cavalo sobre os ombros. Estava, com toda certeza, vestida com “roupas de ir à missa”: nada de vestido de chita e chapéu de palha; vestia, a nossa Emanoelina, calças jeans desbotadas, usava tênis e para se proteger do frio um desses indefectíveis agasalhos de nylon, provavelmente produzido na China.
- “Posso pegar uma carona com o senhor até a Parada do Chiquito?”
- “Claro”, respondi sem a menor idéia de onde seria a Parada do Chiquito, mas me lembrei, na hora, de um e-mail que recebi de um amigo quando o mesmo soube que eu planejava percorrer, sozinho, o Caminho da Fé: “Desta vez, o contador de histórias vai virar um peregrino curtido no silêncio da estrada, a não ser que arrume uma peregrina que te dê consolo nas subidas e alegria nas descidas... Boa caminhada!”
Pois então amigo: o possível consolo nas subidas e alegria nas descidas será oferecido não por uma peregrina, mas por uma mineira "com ferro no sangue", como diria Drumond.
Emanoelina caminhava devagar, provavelmente acompanhando meu ritmo: passos pequenos, mãos enfiadas nos bolsos do agasalho chinês e respondia, educadamente, às perguntas que eu lhe fazia. Foi assim que descobri que morava ali por perto, que ficara viúva e tornara a se casar com um também viúvo e que cultivavam morangos para ganhar a vida...
Percebi, também, que Emanoelina, a todo o momento olhava para trás e para os lados como procurando ou vigiando se havia alguém no meio do cafezal, da plantação de morangos ou por perto da velha porteira. Essa sua busca e vigilância recorrentes me intrigavam: “o que esta mulher anda procurando no meio destas roças? Será que é medo de vaca brava?”
Nada de vaca brava: a resposta veio assim que acabamos de passar por um pequeno capão de mato, rodeado por uma plantação de morangos; do alto do barranco da estrada, inesperadamente, surge uma voz:
- “Emanoelina, mulher do cão, que faz por aqui? Não tem vergonha de tirar o sossego do peregrino?”
Parei imediatamente a fim de tomar pé da situação. Emanoelina estacou-se ao meu lado. Vimos então, descer do barranco, um homem com mais ou menos minha altura, com seus cinqüenta e poucos anos, moreno, vestido como um moderno caipira dos dias de hoje. Bié, logo após vim saber que era este o seu nome, era o viúvo casado com a Emanoelina.
A minha recente companheira de caminhada ao ver o Bié descer do barranco em nossa direção passa, rapidamente, para o meu lado esquerdo evitando a proximidade com o marido, me deixando como a mortadela no sanduíche: prensado de um lado pelo Bié e do outro pela Emanoelina.
Foram apenas alguns segundos de indecisão: me pus a andar e os dois me acompanharam.
Bié retoma o seu “diálogo” com Emanoelina:
- “Volta pra casa, e logo, mulher.”
Um pequeno preâmbulo: um dos “jogos” que aprecio fazer quando estou em caminhadas longas é contar os passos para marcar determinadas distâncias. Assim, por exemplo, se uma subida íngreme atemoriza um corpo cansado, um dos recursos para amenizar o desgaste é calcular o percurso da subida em passos: “daqui até o topo deve dar uns duzentos passos...” e vou contando os passos e quando menos se espera chego ao alto da subida e aí é só fazer as contas e verificar se acertei a previsão, ou se faltaram, ou sobraram passos da tentativa de adivinhação que havia feito.
A demora de Emanoelina em responder ao seu marido Bié me levou a jogar o jogo de contar os passos: aqui não para aliviar o corpo de qualquer cansaço, tendo em vista que era início da jornada, mas para aliviar a tensão da excessiva demora da companheira de caminhada em responder às questões de seu marido.
Assim, me pus a contar os passos no pensamento: um, dois, três...vinte e dois.
- “Volto não”, resolveu, finalmente, responder Emanoelina.
Bié passou para o lado esquerdo de meu corpo buscando, sem sucesso, proximidade com a mulher, que, ao mesmo tempo toma seu lugar à minha direita.
- “Desde ontem já tinha te falado que não deixava você ir; então trate de voltar para casa, é melhor, para você, me obedecer”, fala Bié.
Pela muda expressão de Emanoelina prevejo um silêncio demorado antes da resposta e assim dou início à contagem dos passos: um , dois, três....nove, quando Bié:
- “Indo para Aparecida, senhor peregrino? Veio de onde?”
Continuei minha contagem, no pensamento, enquanto respondi:
- “Sim, estou indo para Aparecida, hoje saí de Consolação e quero chegar a Estiva”, ...dez, onze, doze...vinte e cinco.
- “Volto não Bié, já te disse. Vou ver minha filha em Pouso Alegre, você deixando ou não” respondeu Emanoelina.
A demora de Emanoelina em responder ao marido e sua determinação em não obedecê-lo causava, em mim, uma certa tensão: “e eu que só busco sossego em caminhadas; sei não, mas isso está me cheirando encrenca”, pensei.
Por iniciativa de Bié há outra “troca” de lados dos dois: Emanoelina volta para a minha esquerda.
- “Melhor voltar, e logo, já te disse, Emanoelina”, fala Bié enquanto acende um cigarro de palha.
E eu inicio a contagem: um, dois, três, quatro.....oito, quando sou, novamente, interrogado pelo Bié:
- “Se mal lhe pergunto, de onde o senhor é?”
- “Sou de São Paulo”, repondo e continuei: nove, dez, onze, doze...
- “O senhor é casado?”, argúi Bié.
- “Sim, sou casado, já sou avô e minha mulher está passando uns dias com uma filha e nosso neto”, treze, quatorze, quinze...vinte e sete, vinte e oito.
Emanoelina resolveu não esperar eu chegar aos trinta passos:
- “Bié, você é uma boa pessoa e todo mundo só fala isso. Me trata bem, não me falta comida nem roupa...gosto da nossa vida, mas agora esta sua birra por modi eu querer ver minha filha é errado e não concordo. Você diz que é porque ela já é grande, casada, mas filha é filha e eu preciso muito de ver ela e meu neto. Você visita sua filha e eu não falo nada...vou e pronto.”
Tantas palavras ditas sem nenhuma interrupção, sem nenhuma alteração de voz, educada e respeitosamente, embora de modo tão decidido, me surpreendeu: “que mineira mais porreta”.
Bié continuava tragando seu cigarro de palha esparramando por toda a estrada o desagradável cheiro de fumo de corda: “imagino o quanto as pessoas devem ter me xingado nos tempos em que eu que fumava estes fedidos cigarros de palha”, pensei com meus botões.
Para ganhar tempo, Bié deu, então, uma tragada mais forte, aspirou um montão de fumaça capaz de encher os dois pulmões e, começou a soltá-la devagarzinho pelo canto da boca e para o alto soprando o bigode grisalho:
- “Mas, Manuelina, se você está gostando da vida comigo, volta então para casa, você tem que me obedecer.”
Reinicio a contagem. Um, dois...agora, realmente, uma forte subida tem seu início e calculo que até o seu alto deverão ser de uns duzentos a duzentos e cinqüenta passos....só espero que a Emanoelina não aguarde até o topo da subida para responder ao Bié... doze, treze, quatorze...vinte e três, vinte e quatro...
- “Vai voltar não?” resmunga Bié.
Vinte e seis, vinte e sete...quarenta e dois, quarenta e três...o topo da subida ainda longe e todos nós com nossos passos curtos e lentos para vencer a subida forte; começo a sentir o peso da mochila, procuro ajeitá-la melhor em meus ombros, retiro de um de seus bolsos uma garrafinha d´água, ofereço aos dois, que não aceitam; tomo alguns goles...cinqüenta e quatro, cinqüenta e cinco, cinqüenta e seis... “deveria ter saído mais tarde da pousada, dormido um pouco mais, esta mania de madrugar para ver o sol nascer dá nisso”, pensei enquanto guardava a garrafa no bolso da mochila. Bié continuava a tragar seu cigarro de palha que , de tão pequeno, quase lhe queimava os lábios: “jogue esta merda fora, faz mal para a saúde e ainda vai te queimar os lábios” penso,... setenta e três, setenta e quatro, seten...ufa!:
- “Escuta de uma vez por todas Bié: só volto, se você quiser, depois que ver minha filha em Pouso Alegre. Se não quiser, me avise logo, que fico por lá. Querer voltar eu quero, mas depende de você querer.”
Novamente me impressionou a determinação da mineira sangue de ferro. Recomecei a contagem dos passos, agora pelo Bié: um , dois, três...; felizmente, após ter queimado seus lábios com o toquinho de cigarro, resolveu jogá-lo ao chão e pisá-lo, amassando-o com a botina de sola de pneu de caminhão. Vinte e três, vinte e quatro, vinte e cinco... olho para o alto da subida e penso: “deveria ter continuado a contagem dos passos independente das respostas, deve estar faltando ainda, uns setenta passos até o topo”... trinta e seis, trinta e sete. Dava para ver agora, no fim da subida, uma estrada que cortava perpendicularmente a estradinha pela qual íamos, onde esta terminava. “Espero que a tal Parada do Chiquito seja para o lado inverso para onde seguirei, seguindo as setas amarelas do Caminho da Fé; estes dois que se resolvam, chatice de papo”, sessenta e nove, setenta...No eucalipto à beira da estrada a seta amarela indica que meu caminho é à esquerda: “para que lado será a Parada do Chiquito?”penso.
Setenta e cinco, setenta e seis: chegamos ao topo.
- “Vou para aquele lado de lá”, disse apontando para a direita, “e vocês, para que lado fica a Parada do Chiquito?”.
- “Logo ali, senhor peregrino” responde rapidamente Emanoelina apontando uma pequena cobertura que ficava, também à direita, logo a uns sessenta passos.
Inicio a contagem até a Parada do Chiquito: um, dois, três... quarenta e cinco, quarenta e seis, e no quarenta e sete e chegamos na Parada do Chiquito: um banco de madeira sob uma pequena cobertura com velhas e sujas telhas.
- “Fico aqui, senhor peregrino. Boa viagem para o senhor”, disse Emanoelina.
- “Eu fico com Emanoelina até o ônibus passar; depois volto para casa tomar conta dos animais e dos morangos. Boa viagem senhor peregrino e reze por nós lá em Aparecida”, disse Bié.
- “Até...rezarei por vocês, sim. Faça uma boa viagem Emanoelina e dê um abraço forte em seu neto; estou com saudades do meu.”
Emanoelina sentou-se no banco e Bié ficou de pé procurando palha, fumo de corda e canivete para fazer um cigarro.
Segui meu caminho, contei até vinte e cinco e olhei par trás: Bié já havia sentado ao lado de Emanoelina, no banquinho de madeira da Parada do Chiquito.
Cerca de uma hora depois, em uma outra longa e íngreme subida, sou ultrapassado por uma jardineira velha e barulhenta. Nela vai a nossa Emanoelina que, tímida, mas resolutamente, me acena com um “tchau”.
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4 comentários:
Belíssima história, Orlando. Ficou-me uma dúvida: no mapa que há no site da cidade de Estiva, Consolação fica depois de Estiva, no sentido do Caminho da Fé para Aparecida. Você menciona que ia de Consolação para Estiva. O mapa está errado ou você inverteu a ordem das cidades?
Abraço. Chico de Moraes
Olá Chico,
Bom dia!
Será que é o frio ou a idade que me faz inverter a ordem das cidades...? E olhe que ainda tive o cuidado de rever o mapinha do caminho.
Você está correto: inverti o sentido e vou corrigir.
Mas, Chico, obrigado pelo elogio e pela advertência.
Orlando.
Diz o ditado: em briga de marido e mulher não se mete a colher! Você foi exemplar nesse sentido. E bela "personagem" a mineira "sangue de ferro". Êta mineirinha decidida, uai! Quem sabe em outra caminhada fica sabendo o que aconteceu com o casal?
Olá Tonhão,
Bom dia!
Você sabia que a próxima história, relativa ao Caminho da Fé, que planejava escrever era justamente a respeito dos "reencontros" que ocorreram nesta caminhada?
Vamos, então, ver e esperar que a próxima caminhada gere histórias com reencontros com as Emanoelinas e os Biés dessa Minas Gerais tão bonita.
Abração,
Orlando.
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