Já há uns dois ou três anos, corto os poucos cabelos que me restam no Salão Lírico. O Lírico é um dos poucos antigos salões de barbeiro do centro de São Paulo que ainda não foi parar na lista do Sebrae, aquela dos pequenos negócios que fecharam suas portas. Estou falando do Centro de São Paulo, aquele onde as coisas realmente aconteciam: tinha o Mappin, o Leão do Lido, o Teatro Municipal, o Cine Paissandu... Enfim, do centro onde borbulhava vida, pessoas, homens, mulheres, famílias em busca de prosa, de encontros, de um chá na charmosa e aconchegante Confeitaria Viena, de um concerto, uma matinê ou de uma ópera no Municipal.
Pois veja: desde então, o Salão Lírico já existia.
E existe até hoje como um salão de barbeiros, nada de cabeleireiros: “somos barbeiros”, dizem os “donos” das oito cadeiras cromadas e forradas com confortáveis almofadas de couro preto. E tem mais: nada de unissex, no Lírico: “só cortamos cabelos de homem, as mulheres que procurem salão de beleza para mulher”, diz Seu Mancini, este sim, o dono do salão. Barbeiros, no Lírico, além dele, tem o Wagner, o Tatuí, o Bruno, o Atílio, o Santini, o Paulo e o Sergipe; todos cinquentões, com mais de vinte anos “de casa” e trinta na profissão, dizem, orgulhosos.
Além dos oito barbeiros, claro, não se pode esquecer da Eunice, a manicura.
Eunice é uma bela pequena mulher, também passada dos cinqüenta, que, além de cuidar das unhas dos senhores frequentadores, varre o salão em seus momentos de folga e está sempre a esparramar pelo ar altas doses de feronômio... Sua presença no salão, além de rejuvenescer os clientes sessentões, impõe respeito e limites nas conversas: nada de palavrão, piadas sujas, grosserias, criando, no salão, um clima cordial, respeitoso, típico, talvez, dos anos 60.
Vale a pena falar mais da Eunice. Pequena, corpo ainda jovem para seus cinquenta e tantos anos, seios na medida exata, cordialmente exibidos com suas blusas decotadas, abaixo de colo exuberante, decorado com uma delicada correntinha de ouro e a imagem da Aparecida. Possui quadris redondos, fartos e sensuais, sustentados por esbeltas e bem torneadas pernas.
Já disse da beleza da Eunice e da sensualidade que desperta, mas o que mais impressiona em sua presença pequena e nobre, no salão, é a “classe elegante” com que lida com os galanteios, com gracejos e, até mesmo, com pedidos de casamento.
Em seu trabalho de manicura, permite, sempre, pequenos e iniciais afagos em suas pequenas e macias mãos; e ela os permite de maneira consciente e até maliciosamente, penso eu.
Penso, não, na verdade, tenho certeza, na medida em que Eunice só permite os afagos iniciais, apesar de parecerem deliciosamente duradouros para quem os pratica, vejam bem, pois a partir de um tempo, que só ela sabe e determina, delicadamente, segura a mão que a afaga e inicia na mesma o seu trabalho de manicura, interrompendo, brandamente, a seção de carícias e dando tempo até que a outra mão, agora livre, se anime de coragem o suficiente para uma nova seção de afagos.
Novamente, após um tempo que só ela sabe e determina, a mão será outra vez trocada, definindo um ritual em seus serviços: vai mudando de mãos, exalando feronômio, rejuvenescendo e fazendo sonhar velhos sessentões. Mas o importante, embora para seus clientes não seja o essencial, é que, não se sabe como , sempre ao final do corte do cabelo, os clientes do Lírico que usufruem de seus serviços, têm suas mãos limpas, unhas cortadas e lixadas e, em alguns casos, quando solicitado, pintadas com discreto esmalte incolor e sem brilho, pois, segundo ela, “mãos de homens não pedem lustre em suas unhas, brilho não é coisa de homem.”
A maioria dos clientes gostaria que o corte de cabelo, quando acompanhado dos serviços da Eunice, demorassem mais , muito mais, mas, para isso, teriam que ser menos calvos ou possuir mais dedos na mãos.
Voltando ao salão: os clientes do Lírico, como disse antes, são sessentões, em sua maioria calvos e com os poucos cabelos que restam brancos, brancos. Não usam barba e, às vezes, as fazem também no Lírico, serviço precedido de toalhas quentes e úmidas no rosto e executado, delicadamente, à navalha. Depois de feita a barba, o rosto é banhado e massageado com generosas e perfumadas porções de Água Velva. Recomendo.
Por uma pequena casualidade, costumo cortar lá os cabelos que me restam. Estava em um dos meus passeios pelo centro de São Paulo, quando encontrei com um conhecido, frequentador dos concertos da OSESP. Conversa vai, conversa vem e, logo depois de um expresso no Café Jardim, fomos juntos para o Lírico, onde fui apresentado ao Sr. Ítalo e aos seus barbeiros... Descobri, naquele dia, a origem do nome do salão: Seu Ítalo é o que se pode dizer um fanático por óperas e o seu salão é um ponto de encontro dos aficionados pelo bel canto.
Tem um programa de TV, sobre futebol, chamado Terceiro Tempo. Ainda não vi esse programa, mas imagino que, depois do segundo tempo da partida vista na telinha, o pessoal continue por lá, no Terceiro Tempo, revendo lances, discutindo, comemorando...
Pois bem, ir ao Lírico é o que se pode chamar do “Terceiro Tempo” da ópera: a maioria o frequenta não só para por em ordem as suas cabeças calvas e brilhantes, ter suas mãos e memórias revigoradas pela Eunice, mas, também, e talvez até mais, para reviver espetáculos de ópera, comentar o último CD da Cecília Bártoli, recomendar o DVD Rigoletto “com interpretação fantástica das árias de coloratura de Gilda”, que acabou de chegar na Loja da Galeria....
O Lírico, então, com o amontoado de cabeças brancas e calvas, com o perfume de Água Velva e o feronômio da Eunice no ar se transforma, perdendo o jeitão de salão de barbeiro e “travestindo-se”, configura-se em um delicioso um “foyer”.
Assim, o corte dos cabelos, da barba e das unhas, no Lírico, que, aliás, se esmera nestes serviços, é mero pretexto para o “Terceiro Tempo”. A “rodinha” vai aumentando quando um cliente tem seus cabelos aparados e, de “olhos e ouvidos” no bate-papo, paga logo pelos serviços e, ansioso, corre para integrar e fortalecer o time dos “veristas”, sempre embirrados e às turras com três ou quatro “wagnerianos”, estes quase sempre em menor número, no Lírico, não se sabe bem porque. As discussões são recheadas, ou melhor, ilustradas com argumentos sonoros, cantados pianíssimamente, no salão, e ouvidos, com atenção, pelos adversários e pelos torcedores de um ou de outro “time". Apenas um velho senhor alemão, o sr. Otto, baixo-barítono, com algumas apresentações no Cultura Artística em seu currículo, rende-se ao seu entusiasmo e deixa de lado o pianíssimo fazendo vibrar os espelhos do Lírico com sua voz grave. A única com coragem de adverti-lo, delicadamente, é a bela Eunice:
- “Sr. Otto, cuidado com a garganta...um pouquinho mais baixo.”
- “Claro, Dona Eunice. Perdão”, e abaixando algumas oitavas, continua a cantarolar uma ária, sob o ouvido atento de todos.
Brigas, mesmo, poucas. O fanatismo verista ou wagneriano não chega à exuberância dos corintianos e palmeirenses... E, no fim, como quase tudo neste país, as querelas terminam, não em pizza, mas em coxinhas de frango, no bar da esquina, regadas por uma cervejinha, para quem pode, ou por um guaraná Diet, para os diabéticos, grande maioria entre os frequentadores do Lírico.
Mas, no “Terceiro Tempo” lá do Lírico, não se ouve falar da diabetes, do plano de saúde, do preço do Viagra... De triste, apenas a notícia da morte de um amigo comum. No mais, é Verdi x Wagner o tempo todo.
Imperdível, o terceiro tempo, no Lírico!
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3 comentários:
Viva Orlando...sua crônica me transportou ao passado, quando ainda menino e frequentava a "barbearia" de meu tio. Lá aprendi muitas palavras novas pois o Manoel, o barbeiro, irmão de minha mãe, adorava escrever para pequenos jornais usado o apelido de Leonam ( Manoel ao contrário)e vivia nos desafiando com o dicionário enquanto ajeitava as cabeleiras e tosava as barbas! E sempre encerrava perguntando se o cliente queria álcool, talco ou água velva. Mais tarde, quando morei em Piracicaba percebi que a expressão foi transformada em "arco, tarco ou verva!
Olá Tonhão,
Coincidência pura rapaz: também cortava o cabelo com o Tio Joaquim, casado com uma irmã de minha mãe. Só que nada de palavras novas: era um silêncio total acrescido do medo que eu tinha de ir ao barbeiro, pode?
Abrção,
Orlando.
Orlando...nos intervalos em que a barbearia ficava vazia, esperando novos clientes, ficávamos jogando palavras cruzadas, aquele joguinho que tem um tabuleiro onde por as letras formando palavras com as letrinhas que tirávamos do monte ao acaso e sem ver, pois ficavam viradas para a mesa.
E só se podia formar palavras que existiam no dicionário, que ficava sempre do lado, intimidador.
Sempre havia mais um ou dois para jogar além de meu tio e eu e muitas vezes meu primo, um pouco mais velho que eu. Foi assim que passei a gostar de resolver as palavras cruzadas que saíam nos jornais da época, mais um dos hobbies de meu tio barbeiro, o LEONAM.
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