Caminhamos juntos, Boadicéia e eu, por quase toda aquela manhã de catorze de maio.
Pouco falamos. Na maior parte da caminhada que fizemos juntos, o preenchimento do vazio do tempo foi concretizado com cada qual em seu mundo, observando flores, matinhos, riachos, ouvindo o canto agudo dos corvos, inventando, dentro de si, histórias fantásticas descomprometidas com a História e as verdades do mundo.
E foi ela que me contou de seu nome:
- “Boadicéia foi o nome de uma rainha britânica dos ícenos, região de Norfolk, que chefiou a revolta de seu povo contra os invasores romanos e suicidou ao saber-se derrotada. Desde os tempos imemoriais dos avôs de nossos tataravôs, ou mesmo antes deles, nossa família cultiva a tradição de dar este nome à primeira filha do casal; assim tenho primas e tias com este nome, que foi também o nome de minha avó paterna. Acredita-se, em nossa família, que ao homenagear a antiga rainha, dando seu nome á primeira filha, mantém-se a tradição guerreira de nosso povo, derrotado, mas heróico e renitente, desde muito antes, já em suas antigas batalhas contra os invasores romanos. Boadicéia, a rainha, que todos sabemos ter sido bela e justa, e de lá dos tempos de Antes de Cristo.”
E a partir daquele momento, quando tomei conhecimento de sua origem, o seu som - Boadicéia - passou a ter outra melodia, em perfeita sintonia com a graça dos movimentos daquele corpo que o carregava.
Também, em uma de minhas outras manias, associei o som de Boadicéia ao canto dos corvos que, naquela manhã, excitados pelo processo de acasalamento, enchiam o vazio do silêncio naquelas terras espanholas do Caminho.
E foi a luta de seus ascendentes, que passou a representar, para mim, a luta dos nativos e “bárbaros” contra os invasores que foi preenchendo o meu tempo e minha mente; e assim, vislumbrei lutas heróicas, surgiram lindas rainhas amazônicas em seus cavalos brancos ou pampas, suas lanças afiadas em defesa de seu povo. Foi toda uma manhã povoada de lutas e guerras heróicas ao lado de Boadicéia.
E aproveitei, em um momento de descanso das batalhas e lutas daquela manhã, para saber se ela conhecia a história de outro herói, o bravo Carátaco, um chefe guerreiro dos bretões, que por volta de 30 DC, conduziu seu povo na luta contra os romanos, e também, como Boadicéia, foi vencido, feito prisioneiro e levado para Roma onde, reconhecendo sua bravura, o imperador Cláudio poupou-lhe a vida.
- “Como não haveria de conhecer a história de Carátaco, que como a rainha Boadicéia, enfrentou os romanos que chamavam de “bárbaros” aos povos que dominavam e colonizavam.”
- “Pois Boadicéia saiba que conheci em Los Arcos, o senhor Pedro Carátaco, hoje um tranqüilo aposentado que aproveita seu tempo para fazer lindos cajados, mas que foi pastor de ovelhas em sua vida profissional e tem o nome Carátaco a designar o ramo de sua família.”
E Boadicéia pediu que eu contasse mais do Sr. Pedro e de seus belíssimos cajados.
E, enquanto caminhávamos, eu fui contando a ela.
De verdade, o que vou contar é uma mistura do que narrei a ela e do que, em voz alta ou baixa, não me lembro mais, contei a mim mesmo, ao perceber que, muitas vezes, enquanto eu contava o pensamento de Boadicéia não estava ali naquela história, mas em outros indecifráveis lugares. Contar coisas tem isso: é preciso perceber o que passa na mente de quem ouve a história e contar para você mesmo quando, no mundo de quem ouve, outras histórias estão a acontecer.
Mas foi mais ou menos isso que falei para ela e para mim, naquela manhã de catorze de maio:
Saí de Estella, ou Lizarra, em basco, e após ter caminhado por volta de vinte e dois quilômetros cheguei a Los Arcos, um povoado com pouco mais de mil habitantes.
Quando mais me aproximava da cidadezinha mais me impressionavam as montanhas vermelhas que, parecendo um muro, a cercavam, protegendo-a.
Tendo que percorrer a cidade à busca do Albergue Municipal percebi que naquelas montanhas vermelhas havia cavernas que, mais tarde o Senhor Pedro contou-me, foram habitações e refúgios dos mouros, nos tempos em que estes haviam invadido a Espanha e, principalmente servido de refúgio quando da luta que tiveram para evitar sua expulsão.
E o Senhor Pedro, como era? Estava me esquecendo de contar: o Senhor Pedro é um homem alto, gordo em mais de seu um metro e oitenta, barriga brigando com os botões da camisa e da jaqueta, parece que querendo fugir corpo abaixo. Tinha, apesar de mais de setenta anos - “nasci no ano de trinta e cinco, primeiro filho de um casal de camponeses na região de Segóvia, longe daqui” - a cabeça coberta por fartos cabelos negros, olhos amendoados maliciosos e sensuais, barba feita, mãos enormes, pernas longas, gordas, o peito largo, viril. Poucas rugas escondiam, em seu rosto, a idade que disse ter. Quando se aposentou, mudou-se para Los Arcos e passou a produzir cajados, que vendia aos peregrinos, por um preço bem “acima do mercado” se se pode usar palavras tão administrativas aqui nestas histórias. Mas são belíssimos os seus cajados: retos, boa madeira, e, o mais importante, recheados com poemas, dizeres, nomes das cidades do Caminho.
- “E por onde você iniciou seu caminho?”, perguntou-me o Senhor Pedro.
- “Por St. Jean Pied de Port, há mais ou menos uma semana.”, respondi.
- “Ah, por Santiago Pied de Port, na França?”, perguntou-me enquanto olhava seriamente para um grupo de peregrinos, observando, como me disse depois, a qualidade e a beleza de seus cajados. “Vejo se já vêm com estes cajados comprados na cidade, feitos em fábricas alemãs; estes dificilmente gostam e compram os meus”. “Mas, o senhor disse Santiago Pied de Port?”. “É a mesma coisa: Santiago, St. Jean, São Jaques, São Diego, São Diogo: o que vale é que os ossos do Santo estão lá em Santiago, isso para quem, como eu, acredita, claro”. “Mas, Senhor Pedro, me fale um pouco das cavernas nestas montanhas vermelhas, que como o senhor disse, eram habitadas pelos mouros. É isso mesmo?”. E o senhor Pedro contou-me que havia imensos corredores ligando as diferentes cavernas, que os mouros conheciam bem suas tortuosas e escuras ligações e lá viviam e sentiam-se protegidos dos espanhóis que resolveram expulsá-los para longe: “que voltassem para suas terras, que lá é o seu lugar, e nos deixassem aqui em paz.”
E um de seus parentes daqueles tempos lutou contra os mouros, participando bravamente com os espanhóis em sua guerra pela reconquista de suas terras. Este seu ancestral era forte, grande e, “imagino mais magro que eu, senão não poderia lutar contra os mouros, andar a cavalo segurando sua lança, sob armadura de ferro: deve ter sido magro, mas com certeza, grande e com os peitos largos. Este meu parente lutou e lutou a luta dos espanhóis que vinham em seus cavalos e armaduras das montanhas lá do alto, dos lados do oceano Cantábrico, e foram os reais vencedores, expulsando os mouros de suas terras.” E, continuou o Senhor Pedro a me contar, que aquele seu ancestral, por ter sido considerado um herói pela sua bravura nas batalhas, teve direito, finda a guerra, a uma jovem moura, de lindos olhos negros e longos cabelos lisos que chegavam aos ombros cobrindo os seios formosos e fartos. E, como prêmio ao herói vencedor, foi-lhe dado o direito de usar a jovem moura, dormir com ela algumas noites e, passadas duas semanas, assim que apontasse no céu a lua minguante, levá-la ao sacrifício da morte. Mas este meu parente fugiu a cavalo com sua bela moura e para despistar os antigos companheiros da perseguição que sabia que aconteceria, ao invés de seguir em direção ao norte, para as montanhas, foi para o sul e chegou a Segóvia. E lá, naquelas desérticas terras, nasceram os Carátacos, que se especializaram na arte de pastorear.
- “E sabe o porquê destes meus peitos grandes, que até parecem peitos de mulher?”, perguntou-me o Senhor Pedro, que continuou:
- “Foi praga dos perseguidores que inconformados por não conseguir prender e matar meu mais velho ancestral resolveram dar-lhe outra forma de castigo. E assim, em uma noite de agosto, reuniram-se sob a orientação dos sábios druidas, e conseguiram de Cuchulain, filho do deus Lug, que derrotou e engravidou Aiffé, uma mortal amazona, a promessa de que todos os homens nascidos daquele foragido tivesse quando adultos, peitos enormes como os do mouro Ferragut, que pesava mais de uma tonelada e tentou sufocar com seus peitos o cavaleiro Roldan, mas não conseguiu, foi derrotado, vencido com seus peitos enormes, caídos sobre a barriga.
“E conseguiram: todos os homens Carátacos, mas principalmente os primogênitos, têm peitos enormes, semelhantes aos de nossas mulheres.”