quinta-feira, 28 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS -7- A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE BOADICÉIA E CARÁTACO -II- APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS: CARÁTACO.

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Caminhamos juntos, Boadicéia e eu, por quase toda aquela manhã de catorze de maio.

Pouco falamos. Na maior parte da caminhada que fizemos juntos, o preenchimento do vazio do tempo foi concretizado com cada qual em seu mundo, observando flores, matinhos, riachos, ouvindo o canto agudo dos corvos, inventando, dentro de si, histórias fantásticas descomprometidas com a História e as verdades do mundo.

E foi ela que me contou de seu nome:

- “Boadicéia foi o nome de uma rainha britânica dos ícenos, região de Norfolk, que chefiou a revolta de seu povo contra os invasores romanos e suicidou ao saber-se derrotada. Desde os tempos imemoriais dos avôs de nossos tataravôs, ou mesmo antes deles, nossa família cultiva a tradição de dar este nome à primeira filha do casal; assim tenho primas e tias com este nome, que foi também o nome de minha avó paterna. Acredita-se, em nossa família, que ao homenagear a antiga rainha, dando seu nome á primeira filha, mantém-se a tradição guerreira de nosso povo, derrotado, mas heróico e renitente, desde muito antes, já em suas antigas batalhas contra os invasores romanos. Boadicéia, a rainha, que todos sabemos ter sido bela e justa, e de lá dos tempos de Antes de Cristo.”

E a partir daquele momento, quando tomei conhecimento de sua origem, o seu som - Boadicéia - passou a ter outra melodia, em perfeita sintonia com a graça dos movimentos daquele corpo que o carregava.

Também, em uma de minhas outras manias, associei o som de Boadicéia ao canto dos corvos que, naquela manhã, excitados pelo processo de acasalamento, enchiam o vazio do silêncio naquelas terras espanholas do Caminho.

E foi a luta de seus ascendentes, que passou a representar, para mim, a luta dos nativos e “bárbaros” contra os invasores que foi preenchendo o meu tempo e minha mente; e assim, vislumbrei lutas heróicas, surgiram lindas rainhas amazônicas em seus cavalos brancos ou pampas, suas lanças afiadas em defesa de seu povo. Foi toda uma manhã povoada de lutas e guerras heróicas ao lado de Boadicéia.

E aproveitei, em um momento de descanso das batalhas e lutas daquela manhã, para saber se ela conhecia a história de outro herói, o bravo Carátaco, um chefe guerreiro dos bretões, que por volta de 30 DC, conduziu seu povo na luta contra os romanos, e também, como Boadicéia, foi vencido, feito prisioneiro e levado para Roma onde, reconhecendo sua bravura, o imperador Cláudio poupou-lhe a vida.

- “Como não haveria de conhecer a história de Carátaco, que como a rainha Boadicéia, enfrentou os romanos que chamavam de “bárbaros” aos povos que dominavam e colonizavam.”

- “Pois Boadicéia saiba que conheci em Los Arcos, o senhor Pedro Carátaco, hoje um tranqüilo aposentado que aproveita seu tempo para fazer lindos cajados, mas que foi pastor de ovelhas em sua vida profissional e tem o nome Carátaco a designar o ramo de sua família.”

E Boadicéia pediu que eu contasse mais do Sr. Pedro e de seus belíssimos cajados.

E, enquanto caminhávamos, eu fui contando a ela.

De verdade, o que vou contar é uma mistura do que narrei a ela e do que, em voz alta ou baixa, não me lembro mais, contei a mim mesmo, ao perceber que, muitas vezes, enquanto eu contava o pensamento de Boadicéia não estava ali naquela história, mas em outros indecifráveis lugares. Contar coisas tem isso: é preciso perceber o que passa na mente de quem ouve a história e contar para você mesmo quando, no mundo de quem ouve, outras histórias estão a acontecer.

Mas foi mais ou menos isso que falei para ela e para mim, naquela manhã de catorze de maio:

Saí de Estella, ou Lizarra, em basco, e após ter caminhado por volta de vinte e dois quilômetros cheguei a Los Arcos, um povoado com pouco mais de mil habitantes.

Quando mais me aproximava da cidadezinha mais me impressionavam as montanhas vermelhas que, parecendo um muro, a cercavam, protegendo-a.

Tendo que percorrer a cidade à busca do Albergue Municipal percebi que naquelas montanhas vermelhas havia cavernas que, mais tarde o Senhor Pedro contou-me, foram habitações e refúgios dos mouros, nos tempos em que estes haviam invadido a Espanha e, principalmente servido de refúgio quando da luta que tiveram para evitar sua expulsão.

E o Senhor Pedro, como era? Estava me esquecendo de contar: o Senhor Pedro é um homem alto, gordo em mais de seu um metro e oitenta, barriga brigando com os botões da camisa e da jaqueta, parece que querendo fugir corpo abaixo. Tinha, apesar de mais de setenta anos - “nasci no ano de trinta e cinco, primeiro filho de um casal de camponeses na região de Segóvia, longe daqui” - a cabeça coberta por fartos cabelos negros, olhos amendoados maliciosos e sensuais, barba feita, mãos enormes, pernas longas, gordas, o peito largo, viril. Poucas rugas escondiam, em seu rosto, a idade que disse ter. Quando se aposentou, mudou-se para Los Arcos e passou a produzir cajados, que vendia aos peregrinos, por um preço bem “acima do mercado” se se pode usar palavras tão administrativas aqui nestas histórias. Mas são belíssimos os seus cajados: retos, boa madeira, e, o mais importante, recheados com poemas, dizeres, nomes das cidades do Caminho.

- “E por onde você iniciou seu caminho?”, perguntou-me o Senhor Pedro.

- “Por St. Jean Pied de Port, há mais ou menos uma semana.”, respondi.

- “Ah, por Santiago Pied de Port, na França?”, perguntou-me enquanto olhava seriamente para um grupo de peregrinos, observando, como me disse depois, a qualidade e a beleza de seus cajados. “Vejo se já vêm com estes cajados comprados na cidade, feitos em fábricas alemãs; estes dificilmente gostam e compram os meus”. “Mas, o senhor disse Santiago Pied de Port?”. “É a mesma coisa: Santiago, St. Jean, São Jaques, São Diego, São Diogo: o que vale é que os ossos do Santo estão lá em Santiago, isso para quem, como eu, acredita, claro”. “Mas, Senhor Pedro, me fale um pouco das cavernas nestas montanhas vermelhas, que como o senhor disse, eram habitadas pelos mouros. É isso mesmo?”. E o senhor Pedro contou-me que havia imensos corredores ligando as diferentes cavernas, que os mouros conheciam bem suas tortuosas e escuras ligações e lá viviam e sentiam-se protegidos dos espanhóis que resolveram expulsá-los para longe: “que voltassem para suas terras, que lá é o seu lugar, e nos deixassem aqui em paz.”

E um de seus parentes daqueles tempos lutou contra os mouros, participando bravamente com os espanhóis em sua guerra pela reconquista de suas terras. Este seu ancestral era forte, grande e, “imagino mais magro que eu, senão não poderia lutar contra os mouros, andar a cavalo segurando sua lança, sob armadura de ferro: deve ter sido magro, mas com certeza, grande e com os peitos largos. Este meu parente lutou e lutou a luta dos espanhóis que vinham em seus cavalos e armaduras das montanhas lá do alto, dos lados do oceano Cantábrico, e foram os reais vencedores, expulsando os mouros de suas terras.” E, continuou o Senhor Pedro a me contar, que aquele seu ancestral, por ter sido considerado um herói pela sua bravura nas batalhas, teve direito, finda a guerra, a uma jovem moura, de lindos olhos negros e longos cabelos lisos que chegavam aos ombros cobrindo os seios formosos e fartos. E, como prêmio ao herói vencedor, foi-lhe dado o direito de usar a jovem moura, dormir com ela algumas noites e, passadas duas semanas, assim que apontasse no céu a lua minguante, levá-la ao sacrifício da morte. Mas este meu parente fugiu a cavalo com sua bela moura e para despistar os antigos companheiros da perseguição que sabia que aconteceria, ao invés de seguir em direção ao norte, para as montanhas, foi para o sul e chegou a Segóvia. E lá, naquelas desérticas terras, nasceram os Carátacos, que se especializaram na arte de pastorear.

- “E sabe o porquê destes meus peitos grandes, que até parecem peitos de mulher?”, perguntou-me o Senhor Pedro, que continuou:

- “Foi praga dos perseguidores que inconformados por não conseguir prender e matar meu mais velho ancestral resolveram dar-lhe outra forma de castigo. E assim, em uma noite de agosto, reuniram-se sob a orientação dos sábios druidas, e conseguiram de Cuchulain, filho do deus Lug, que derrotou e engravidou Aiffé, uma mortal amazona, a promessa de que todos os homens nascidos daquele foragido tivesse quando adultos, peitos enormes como os do mouro Ferragut, que pesava mais de uma tonelada e tentou sufocar com seus peitos o cavaleiro Roldan, mas não conseguiu, foi derrotado, vencido com seus peitos enormes, caídos sobre a barriga.

“E conseguiram: todos os homens Carátacos, mas principalmente os primogênitos, têm peitos enormes, semelhantes aos de nossas mulheres.”

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS -7- A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE BOADICÉIA E CARÁTACO - I- APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS: BOADICÉIA.

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Quero contar um pouco a fantástica história de Boadicéia.


Estou a falar de uma mulher de seus quarenta e poucos anos, alta e magra, mas não aquelas magras esqueléticas tipo modelo; Boadicéia é magra, mas recheada de curvas e saliências, que diminuem um pouco a dureza da face e do olhar negro, desconfiado, desafiador. Seus longos cabelos grisalhos, soltos, lisos, pendentes, cobrem o pescoço delgado e emoldura a face com a boca bem feita, maçãs do rosto proeminentes, grandes olhos negros, delicadas sobrancelhas grisalhas.


Uma linda mulher?


Sim e não.


Mas digo que é impossível não se sensibilizar com a beleza estranha de Boadicéia, com seu corpo escultural, seu andar com passos delicados, corpo sempre ereto e o balançar ritmado dos quadris largos, sustentado por longas e bem torneadas pernas. Há, no entando, em momentos indefinidos, que uma expressão dura e máscula, traveste toda a beleza do corpo e do rosto severo, embora, extremamente delicado quando olhado com atenção maior.


A primeira vez que a vi foi, salvo engano, em Hontanas.


Havia saído ainda madrugada, dia escuro, de Burgos, e andado por volta de trinta quilômetros até Hontanas, passando antes por Hornillos Del Camino. Cheguei a Hontanas por volta das duas horas da tarde: um pequeno povoado medieval, com menos de cem habitantes e que vive, do ponto de vista econômico, em função do Caminho de Santiago e seus peregrinos.


Aproveito para abrir um longo parêntese. Uma de minhas principais motivações em fazer o Caminho de Santiago era a de conhecer e pernoitar em povoados medievais. Me fascinava, enquanto planejava a viagem ao Caminho, ou mesmo, quando cansado de caminhar nas dunas para fortalecer os músculos das pernas, eu vislumbrava a possibilidade de conhecer, conversar com os moradores, fazer as refeições e dormir nos pequenos povoados medievais que, até então, só conhecia através do soberano guia “El Ca mino de Santiago em Tu Mochila”. Pois Hontanas, em seu silêncio, no escuro de suas casas feitas de pedras, em suas ruas tortuosamente planejadas e em sua pequena igreja foi a concretização de tão sonhado desejo. Me alojei no albergue Municipal me preparando para realizar mais uma de minhas manias: penso que só realmente conheço um lugar se nele pernoito: foi assim com as belíssimas Ouro Preto, Tiradentes e Diamantina. Acordar durante a noite e, na cama ou na rua, ouvir o silêncio, ver estrelas e a lua, ouvir pequenos estalos no telhado, ver ou ouvir os gatos miando a procura de amantes, os latidos dos cachorros defendendo suas propriedades, aquecem meu coração; enfim: acho que só conheço um lugar depois de nele dormir. E não é coisa de velho: sempre fui assim. Fecham-se os parentes.


E em Hontanas, ao sair do albergue a procura de um “menu Del peregrino”, vi chegar Boadicéia. Na maioria dos albergues do caminho há um local especial para guarda dos cajados e para o recolhimento das botas, neste caso para evitar o odor das mesmas nos aposentos. Boadicéia, primeiro tirou suas botas, guardou-as para só depois colocar seu cajado no local apropriado: juntou, então, aos tantos cajados que haviam sido depositados na caixa, um galho de árvore de mais de dois metros; seu cajado tinha uma forquilha na ponta, na qual uma flor amarela, que lembra um pouco nosso hibisco, havia sido amarrada. E então seu cajado, alto e comprido, com a flor na ponta da forquilha, despontava orgulhoso na companhia dos outros tão ordinários, simples e industriais cajados.


Feito isso entrou no albergue sem olhar para os lados; passou por mim, que ainda estava observando-a na porta, e não me viu, claro. Dirigiu-se ao “hospitaleiro”, apresentou sua credencial, que foi carimbada, pagou a taxa e subiu para o alojamento.


Esqueci um pouco a fome e a busca até um local com oferta do “menu Del peregrino”, e, curioso demais para minha idade, fui à mesa da recepção e, no livro de registro, descobri seu nome e sua nacionalidade. Sei que o que fiz é feio e pouco recomendável: o correto é matar a curiosidade perguntando à própria pessoa o seu nome, sua nacionalidade, travando amizade, falando de você, do país de onde veio, de onde partiu nesta caminhada; é assim que é mais educado, e é o que se espera de um peregrino, mas não foi o que fiz.


Ao fim do dia tornei a vê-la e vi Boadicéia transformada.


Vestia-se como uma “hippie” dos anos setenta: bata indígena, saia longa de seda, sandália de couro e uma tiara na cabeça, segurando o cabelo repartido ao meio; e ali, naquele fundão de mundo, em pleno Caminho de Santiago, aquela figura tão hippie fez bem a minha imaginação, que voou para os festivais de Woodstock, para Jimi Hendrix, Joan Baez, Ravi Shankar, Janes Joplin e, como não podia deixar e ser, revivi as manhãs de domingo na feira hippie em nossa Praça da República.


Acordei de madrugada, como sempre, e me preparei para seguir o Caminho.


Uma hora ou mais, depois de minha saída, de Hontanas rumo a Castrojeriz, uma agradável surpresa: alcancei Boadicéia que estava a colher flores na beirada do caminho para fazer, com elas, um desenho no centro da trilha.


Cumprimentei-a e fui cordialmente convidado a colher flores para ajudá-la a completar a construção de seu desenho.


Colhi papoulas e lhe ofereci.


Boadicéia, então, terminou seu desenho: 14:05


Olhou o desenho, aprovou-o com um gesto e um sorriso e, estava tudo pronto, disse-me ela, para a primeira foto do dia.


Retirou sua pequena e antiga câmera fotográfica do bolso da mochila e fotografou o seu calendário florido. Era o seu truque para, repetindo a mesma cerimônia todas as manhãs de seu caminhar, suprir a deficiência de sua ultrapassada câmera, que tão velha, não tinha o calendário automático embutido.


- “Assim que clareia o dia, disse-me, colho flores, pequenas folhas que uso para anotar, no caminho, o dia que se inicia.”, ao mesmo tempo em olhava a tela de sua máquina para ver a foto do dia quatorze de maio.


Aprovou e me informou, emocionada, que mais tarde, em sua casa, em seu distante país, ao rever as fotos, saberia o dia em foram tiradas.




domingo, 17 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS –6– OS PEREGRINOS DO CAMINHO

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Já disse, ou penso ter dito, que se fosse possível reunir os peregrinos do Caminho de Santiago em um canto qualquer, teríamos uma cópia fiel da torre de Babel: são pessoas de todos os cantos deste mundão de Deus, de todas as idades, com todas as belezas e feiúras; alguns caminham só, outros acompanhados; há casais jovens, casais sessentões, enfim, de tudo se encontra naquele Caminho.



Comecei a observar estes diferentes tipos já no início da caminhada, em St. Jean Pied de Port, e agora, passado estes tempos, percebo que nos primeiros dez ou quinze dias de caminhada o humor está à flor da pele. A origem de tanto humor, penso, se deve ao imenso prazer que sinto ao caminhar, aliado ao fato de estar acompanhado de um grande amigo, de me encontrar em um país estranho, em um caminho belíssimo, comidas e paisagens nunca antes experimentadas, enfim, tudo novo, excitante.



De tudo se ria, e - aproveitando o fato de falarmos, Pablo e eu, uma língua incompreensível para a maioria -, a todos apelidávamos: e os dois simpáticos alemães se transformaram em “fiscais do Kaiser”; teve a “freira”, o “espanha gordito”, e o “kaiser” propriamente dito.



O “Kaiser” era um alemão alto, rosto vermelho e suado, barba por fazer e sempre que o via, me lembrava a propaganda de uma cerveja na qual jovens cansados estão para desistir da empreitada quando um deles anima o grupo -” tem cerveja nos esperando” - e todos afirmam os passos, marcham com os joelhos altos, com os cajados firmes em direção ao local onde se encontram as cervejas geladas. Pois o Kaiser deveria ter, ao que parece, sempre – de manhã ou à tarde – uma caixa de cervejas esperando por ele. Caminhava sempre com os passos firmes, joelhos altos, cajado riscando as pedras do caminho e assim se ouvia seus passos firmes e compassados de longe; logo, logo estava o Kaiser a nos passar e, sem alterar seu caminhar, com a voz gutural dos alemães nos desejava “Bom Caminho” e lá se ia o Kaiser. Nos albergues era quieto, quase sempre se isolava, não saia para as praças e bares para tomar um café ou beber, nem mesmo com seus compatriotas; assim que chegava, arrumava sua cama, se enfiava dentro do saco dormir, ligava seu radinho e, deitado, ficava a ouvir notícias de sua terra.



E os “fiscais do Kaiser”? Eram também alemães.



A Espanha cresceu muito nos últimos dez anos e vive agora, do ponto de vista econômico, momentos de dificuldades. E foi então que resolvemos que dois peregrinos quarentões, eram “fiscais do Kaiser”. Quando éramos por eles ultrapassados ou o contrário, brincávamos: estão no Caminho a trabalho, fiscalizando a correta, ou não, utilização dos recursos do Mercado Comum. Muitas vezes, então, os “fiscais” não pareciam contentes com uma placa de sinalização ou com buracos no caminho, e, por isso, telefonavam para Ângela Merkel denunciando os espanhóis que, espertamente, haviam utilizado os recursos oriundos do Mercado Comum destinados a tampar os buracos e melhorar a sinalização do Caminho, para outros fins menos nobres. Claro, então, que a Merkel ligava nervosa para o Rodriguez Zapatero cobrando providências urgentes e este, nervoso com as eleições que se aproximavam, prometia porque prometia urgência na averiguação dos fatos e nas providências que, com certeza, o governo espanhol tomaria... “Paguem o que nos devem”, diziam os “fiscais”. E assim horas e horas se passavam, quilômetros e quilômetros eram percorridos em uma alegria infantil demais para dois avôs; mas o que se há de fazer?



E tinha a “freira”.



Gorda, baixinha, cabelos negros curtos, devia ter seus cinqüenta e poucos anos, a nossa “freira” fugia do padrão dos “uniformizados” peregrinos. Explico: a maioria dos peregrinos, inclusive nós, vestia-se com calças, camisas e jaquetas que, pelo pouco peso e facilidade de secagem após serem lavadas, são extremamente adequadas para caminhadas longas. Assim o Caminho de Santiago se torna um verdadeiro desfile de Kechuas, Salomon, Solo, The North Face, Curtlo e claro, das excelentes mochilas Deuter. E na contramão deste desfile, lá se ia, com seu passo lento, mas firme e seguro, a nossa “freirinha” vestindo sua saia rodada, com estampa escandalosamente floral, e que, saindo por debaixo da blusa preta e indo até os tornozelos, eliminava qualquer possibilidade de imaginar ou adivinhar que tipo de corpo, de pernas, de nádegas, ela cobria; nada de botas Salomon: usava sapatos de couro e meias de algodão, comuns, que cobriam suas pernas até onde chegava a saia. Um crucifixo de prata pendia no peito acima da blusa branca e sob a jaqueta negra; no rosto redondo um ar de pura bondade, um sorriso ingênuo, em suas faces coradas pelo frio e pelo sol. Caminhava firme, com poucos descansos e nos albergues tão logo preparava e saboreava seu jantar, se recolhia para dormir. Era, assim como eu, uma das primeiras a sair dos albergues, antes mesmo do dia clarear, e assim, nosso hábito de madrugadores fez com que caminhássemos juntos, em absoluto silêncio, sem nenhuma troca de palavras, alguns percursos do caminho. Um tipo humano original, a "freira" em sua total desconsideração pela moda e pelos modismos; indiferente mesmo ao sentido de “pertencer” - e aos seus símbolos - e, ao contrário da maioria, em sua pequena mochila não havia sido grudada a bandeira de seu país, e nem mesmo a sempre presente concha de vieira teve o privilegio de ser amarrada e ficar balançando para cá e para lá.



E teve também o “espanha gordito” e seu fiel escudeiro, o Sr. José, este um pastor de cabras aposentado que se orgulhava de ter uns tios que migraram para os Estados Unidos , com o emprego no ofício de pastor de rebanhos garantido. O “gordito” é um espanhol baixinho, cabelos grisalhos, e foram seus quilos a mais que deu origem ao seu apelido; muito alegre e falador, cioso de sua cidadania o “gordito” estava sempre disposto a denunciar eventuais desmandos nos albergues municipais. Portador de um problema cardíaco, segundo ele, muito sério, carregava em sua mochila um vidrinho com o remédio salvador e, sempre que podia, ficava o gordo peregrino explicando a todos que providências teriam que tomar em caso de um desmaio seu, providências “imediatas, antes mesmo de chamar o serviço de saúde do Caminho”: enfiar sob sua língua seus dois comprimidos salvadores. Ouvi várias vezes, para diferentes peregrinos, sua explicação, e egoisticamente, reconheço, sempre pedia a Santiago que se fosse pra o "gordito" desmaiar que o fizesse em momentos em que tivesse ao seu lado mais corajosos “paramédicos” do que eu. E Santiago me atendeu: pelo menos até onde vi no caminho o "gordito", não houve desmaios. Seu fiel escudeiro, o pastor de cabras aposentado se preocupava e cuidava do amigo. Me disse preferir levantar mais tarde, andar menos, mas não o fazia para poder acompanhar o amigo. Para isso levantava pelo menos uma hora mais cedo para sua cerimônia de ajeitar a, com certeza, mais bem organizada e invejada mochila do caminho. Era, o Sr. José, o único entre os peregrinos a dormir com um típico pijama de flanela, daqueles listrados de calça e magas compridas, e que era minuciosamente esticado, dobrado, transformado em um pacotinho perfeito e colocado em sua mochila. Repito: sua mochila, tão organizada era motivo de inveja a todos nós outros, simples mortais peregrinos, que ao contrário do velho espanhol, simplesmente enfiávamos “goela abaixo” nossas roupas e pertences em nossas desorganizadas mochilas.



Mas, claro, tivemos muitos outros tipos observados. Mas não se preocupem: vou apenas citar nomes ou apelidos sem contar mais histórias! Ainda no início, na fase do bom humor teve o casal da Namíbia, sempre querendo chegar à frente no albergue para escolher melhores camas; teve a bela e escultural romena, que pedia para eu cantar em português, orgulhosa da origem latina de nossas línguas; teve o velho canadense que se dizia amigo de um famoso treinador de vôlei brasileiro; a coreana que com todos se comunicava em uma única língua que sabia falar: o coreano; teve o simpático casal de franceses que resolveu me “adotar”, e, enquanto bebiam vinho e eu café, falávamos de ópera e de música...



Já havia, até este momento aproximadamente uns trezentos ou pouco mais quilômetros, o humor já não estava mais tão à flor da pele e os tipos foram mudando: o japonês, de minha idade que fazia o caminho pela segunda vez; o jovem italiano que mora em Barcelona já há cinco anos e se mostrou apreciador e muito conhecedor de música popular brasileira e me contou a história dos motivos que levaram Almodóvar a convidar o Caetano para cantar, uma interpretação inesquecível, diga-se de passagem, em seu filme “Fale com ela”.



Mas chega um pouco de tipos... Cansa!

quarta-feira, 6 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS–5–NAT KING COLE, DURANGO KID…

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No silêncio e na solidão dos caminhos uma boa coisa é cantar ou assobiar.

Tem dias em que se amanhece, sem saber por que, com uma música na cabeça que a todo momento a gente se vê assobiando ou cantando. Isso, às vezes, me satura e fico então procurando outros temas, outros autores, velhos sucessos.

Nestas minhas andanças, agora, pelo Caminho de Santiago, por várias vezes estive com a Asa Branca, do Luís Gonzaga, na cabeça. Como não sei a letra completa da canção canto alguns trechos, assobio outros, e brinco comigo mesmo de imitar o Caetano, em uma gravação bem antiga, quando ele faz uns “nhaum, inhaum, inhaum” aos finais das estrofes, plagiando os cegos tocadores de sanfona do nordeste.

Pois então: em uma manhã, estava eu todo feliz e distraído com a minha Asa Branca quando fui surpreendido por um senhor australiano, que assuntou:

- “Mas que bela melodia”.

Fiquei surpreso: tem peregrinos que surgem do nada e aquele australiano foi um deles. Me recompus para responder:

- “É uma canção muito antiga e popular em meu país.”

- “Muito bonita a melodia e do que fala a letra?”

- “Fala da seca em uma região do Brasil, da necessidade de migrar e do retorno ao local de origem quando volta a chover... Não resisti e tentei cantar, em uma tradução literal, a belíssima: “quando o verde dos seus olhos se espalhar na plantação... eu te asseguro.”

E a conversa continuou: música, pobreza, migrações.

Logo depois nos separamos por culpa nossos caminhares, muito diferentes: ele rápido e eu com meus passos lentos, lerdos, atento e distraído com pequenas bobagens - uma borboleta, uma flor – ou com besteiras maiores, mais imponentes – o gelo ainda preservado no alto de uma cadeia de montanhas, a visão negra de um povoado medieval visto do alto de uma montanha. É assim que sigo o meu caminhar.

Tem dias em que uma música que não gosto muito teima em me perseguir.

Busco uma solução: penso em um autor, Chico Buarque, por exemplo, lembro de uma música sua e me ponho a assobiar. Mesmo assim, tem vez que não dá certo. Nesta caminhada, por exemplo, tive, toda vez que usei esta estratégia, uma surpresa: iniciava a cantar ou assobiar a velha Banda e o meu canto ou meu assobio era, sem minha autorização racional, substituído pela Praça, do Carlos Imperial. Um parêntese:

aos que não sabem, ou mesmo, pela idade, não conhecem nem uma das duas músicas relembro: “A praça” surgiu depois do sucesso da Banda e foi ironicamente chamada, por nós, de “A banda dos pobres”.

Continuando a história: o que acontecia era o seguinte: eu iniciava a cantar “estava a toa na vida, o meu amor me chamou... e o velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou que ainda era moço...”, tão mais bonito, e quando dava por mim estava cantando “Eu hoje eu acordei-me com saudades de você...” Consciente do mau gosto, irritado comigo mesmo, parava de cantar a “praça”, me concentrava na voz de Nara Leão e continuava com a Banda: “e a moça feia apareceu na janela, pensando que a banda tocava prá ela...” e, outra vez, quando dava por mim estava a cantar: “a mesma praça, o mesmo banco, e o mesmo jardim, tudo é igual, mas estou triste...”. O único jeito de acabar com este conflito musical que ocorria dentro de mim era mudar radicalmente de assunto: e a “Truta” do Schubert, mostrava-se infalível nestas horas, até porque a região norte da Espanha é repleta de largos, pedregosos e caudalosos rios.

Mas vamos ao que interessa nesta história.

Além da briga da Banda com a Praça, outra briga que ocorreu nesta caminhada, foi entre uma música, cujo título não me recordo, mas que, na adolescência, e eu ouvia na voz afinadíssima e anazalada do Miltinho: “cara de gaiato, pinta de gaiato, roupa de gaiato, foi o que eu arranjei prá mim...” que, também, sem minha autorização, era substituída pelo: “A si pasam los dias; Y yo desesperado; Y tu, tu, tu, contestando; quizas, quizas, quizas” que em minha adolescência costumava ouvir na aveludada voz do Nat King Cole, em seu disco: “Nat King Cole canta em Espanhol”. Pelo menos, nesta briga, eu gostava das duas e não me irritava.

Estava, então, com meu castelhano capenga, cantarolando o “estás perdendo o tempo...”, quando me vi acompanhado, na segunda voz, por Diogo, um espanhol de minha idade, da região de Catalunha e com o qual havia feito amizade.

E cantamos: confesso que com Diogo funcionando como “spalla”: dava o tom, a altura, e afinadíssimo, contrapunha e cobria possíveis desafinados de minha parte.

E, felizes, após finalizarmos o “concerto” em duas vozes, a céu aberto, nos pusemos a falar:

- “Mas Diogo, que bom que você sabe esta música. Gosta dela?”

- “Muito, cantava sempre enquanto ouvia no rádio ou no toca-discos quando adolescente.”

- “Eu também. E, aqui na Espanha, quem é que cantava? Lá no Brasil...”, não terminei porque fui interrompido por Diogo:

- “Nat King Cole! E meu primo tinha o disco, à época um enorme long- play...”, e aí foi minha vez de interromper:

- “Não acredito... um LP de capa azul com a foto enorme do negro e sorridente Nat King Cole? Em casa, não tínhamos toca-discos e eu ia à casa de um amigo ouvir. E eu sempre pensei Diogo, que discos como o “Nat King Cole Canta em Espanhol” faziam sucesso apenas nos países da América Latina. Mas agora, vejo que não!”

E aí descobrimos que além de Nat King Cole havíamos à mesma época, nos encantando com a força da voz do mexicano Miguel Aceves Mejia: cantores fazendo sucesso junto a adolescentes espanhóis e tupiniquins.

- “E no cinema?”, perguntei curioso.

- “Os meus filmes preferidos eram os de “cowboy”: Durango Kid, Roy Rogers, Hopalang Cassid e tinha aquele bigodudo, de cabelos bancos compridos, meu Deus do céu, não consigo lembrar seu nome agora, que coisa! E os seus?”

- “Parecido... não gostava muito do Roy Rogers porque deixava de matar índios para beijar a mocinha e cantar... mas gostava demais do seu cavalo, o Trigger. Meus preferidos eram os filmes do Durango Kid.”

- “Eu, sempre que podia, ia toda semana ao cinema. Era bom demais”, disse Diogo.

-“ Eu também... E, penso que como vocês aqui na Espanha, batíamos os pés no assoalho do cinema e vaiávamos quando os nossos heróis se punham a beijar as mocinhas, a cantar...”

- “Aqui também a mesma coisa: o que queríamos era ver índios mortos.”

Gargalhávamos com nossas memórias e nos pusemos e a falar, desordenadamente, de como torcíamos no cinema enquanto o mocinho espancava ou, simplesmente, matava os bandidos ou os índios.

E nosso entusiasmo aumentava a cada comentário, que nos certificava da semelhança de nossas reações na Espanha e no Brasil; isso fazia com que nos atropelássemos a fala um do outro e outros peregrinos do Caminho de Santiago que passavam por nós não entendiam o entusiasmo de dois velhos falando ao mesmo tempo; e nós não estávamos apenas falando em voz alta, mas gesticulando, sonhando, absurdamente surpresos com tamanha coincidência no comportamento de jovens em tão distantes países.

E, neste louco entusiasmo, do que falamos?

Falamos de como eram os filmes, das tomadas de cena, de nossos delírios de maneira tão atabalhoada que e é impossível por ordem nestas falas, distinguir quem falava, o que cada um falava para mudar de parágrafo, colocar aspas para marcar os diálogos, enfim escrever conforme as velhas e respeitáveis regras.

Então vai assim. As tomadas de cenas nos antigos filmes americanos de “cow-boy” eram simples e usadas por diferentes diretores; no geral a tão desejada perseguição do bandido pelo mocinho era feita com a câmera posicionada em um local mais alto, o que possibilitava uma visão ampla que contemplava o mocinho, o bandido e pontos de referência para se calcular a distância entre um e outro na luta que empreendiam. A visão ampla era, em diferentes momentos, conforme a perseguição continuava, estrategicamente substituída ora por uma aproximação da câmera junto ao bandido e seu cavalo, mostrando sua face temerosa, seu rosto horrorizado, suas tentativas de olhar para trás a fim de calcular a que distância estava o mocinho, focava, às vezes, sua expressão de supremo esforço a exigir maior velocidade de seu cavalo, açoitando-o para isso, enquanto atirava, a esmo, para trás, visando ferir o mocinho; e a cada tiro que o bandido dava vaiávamos e aplaudíamos ao perceber que suas balas não atingido nosso herói; agora a câmera se deslocava e focava o sorridente mocinho - barba feita, dentes claros - e seu belo cavalo a todo galope que, sob nossos fortes apupos, abaixava a cabeça para escapar dos tiros e, vez ou outra, sacava seu revólver, sempre munido de infinitas e intermináveis balas, dava lá seus tiros, mas sem muito interesse em acertar.

O que iria mesmo ocorrer, e era o que queríamos, era a câmera mostrando a aproximação cada vez maior do mocinho, até o momento em que ele, de pé na sela saltava de seu cavalo sobre o bandido, derrubando-o e, no chão, aplicando-lhe uma tremenda surra. Eram nestes momentos que os cinemas, aqui e na Espanha, separados apenas pelo fuso horário, eram literalmente invadidos pelo pó levantados do chão pelo bater fortes nossos pés sobre o assoalho; ao pó acrescentávamos gritos, urros e assobios de aprovação e vaias para o bandido quando o mesmo, traiçoeiramente, tentava pegar, em um fundo falso da bota, uma faca para atirar em nosso herói; era então o momento em que o mocinho, alertado pelas nossas vaias e urros, pressentido o perigo, voltava-se para o bandido, sacava rapidamente seu revólver e com uma bala certeira tirava a faca de sua mão. Bandido desarmado, pois seu revólver já havia sido tomado, destruído ou estava no coldre do mocinho, ocorria mais uma seção de pancadaria: sob nossos delirantes aplausos, o mocinho aplicava a última surra no bandido, prenunciando o “The End”.

Os “The End” eram também previsíveis: depois da última surra, o mocinho ou punha o bandido, sem seu cavalo, a fugir ou gastava uma bala não para tirar a faca de sua mão, mas, apontada ao peito do inimigo, que caia morto com o sempre certeiro tiro.

Tanto eu quanto Diogo, o amigo espanhol, gostávamos mais quando o “The End” era precedido com o bandido a correr, fugindo a pé, sem seu cavalo por aquelas terras áridas, sob o sol forte, até quando, não se sabe.

Saíamos do cinema: os menores de calças curtas, invejosos dos maiores com suas calças compridas e mais invejosos ainda de um ou dois que, ricos, usavam as tão desejadas calças “rancheiras” LEE ou LEVIS. E, tanto aqui como na Espanha, os maiores iram para o “footing” no jardim frente ao cinema e os menores com suas calças curtas iam direto para casa, sonhando com o combinado para a manhã do dia seguinte: em vez de jogar futebol o encontro de toda a turma para brincar de “cow-boy”: matar índios, bandidos, fazer justiça.

Era assim: na Espanha e no Brasil.

The End.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS -4 - COMOÇÕES

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Uma amiga, curiosa, perguntou-me: “onde, no caminho, você sentiu o maior medo?”


Difícil saber. Medo, mesmo, de verdade, grandão, não tive. Medinhos menores, assim bem pequenos, tive alguns.


Uma vez, em uma ruela de um povoado medieval, vi-me cercado por vacas, garrotes e bezerros, todos brancos com manchas negras; e as vacas e garrotes vinham e vinham com seus passos lentos, ocupando toda a estreita ruazinha como se ela fosse só deles; caminhavam em direção contrária à minha e iam passando lerdamente, me observando, curiosas, com seus olhares negros e doces e balançando seus corpos pesados. Magro, me espremi no vão de uma porta e aguardei, sem medo agora, a passagem da boiada, que seguia obediente aos berros - HEEEHOOOO! - de um casal cinqüentão.


Nos caminhos da Fé e da Luz aqui no Brasil, passei, algumas vezes, medo de cachorro. Na Espanha, pelo menos na região do Caminho de Santiago, há pouquíssimos cachorros. E os que vi por lá, são cachorros do “primeiro mundo”, educadíssimos em suas coleiras, e em sua maioria, tal qual os cães do Jangada de Pedra, romance de Saramago, esqueceram de como é que se late. São, então, cães quietos, muito quietos: parece que nem mesmo abanam o rabo, tão ancestral e carinhoso costume de nossos cachorros tupiniquins.


Falando em cães: no início da caminhada, por uns dez dias, se não me engano, por várias vezes me encontrei com um suíço, moço de seus trinta e poucos anos, que fazia o Caminho acompanhado de seu cachorro. Pernoitava em uma pequena barraca, com lugar para seu cão e carregava às costas uma mochila enorme que além da barraca, tinha suas roupas, ração para o cachorro, muita cerveja e pão. Em seus descansos, ao lado do cão preto, bebia cerveja, fumava cigarros e outros que tais: falava pouco, embora educado e gentil. Me disse chamar-se Kretzschamar e tentou várias vezes, ensinar-me o nome de seu cão, mas creio que percebendo minhas limitações vocais e auditivas, o paciencioso suíço desistiu de me ensinar e eu feliz, de aprender; resolvi, então, chamar seu cão de “Joselito” em homenagem aos cães de José Saramago. Assim, quando encontrava Kretzschamar e seu cachorro de nome impronunciável, tal o enorme número de consoantes e tão poucas vogais, chamava seu cão pelo novo nome, e ao que parece “Joselito” gostou de seu apelido mais sonoro e demonstrou várias vezes seu apreço pelo novo nome, quando, em locais ermos, sob a sombra de uma árvore ou à beira de um riacho, ele, seu dono e eu parávamos para lanchar e descansar. Nestes momentos “Joselito” comia seus bocados de ração enfiado no meio das pernas do dono, eu, cá, comia minhas frutas, e Kretzschamar tomava cervejas, comia pão puro e de sobremesa enrolava e fumava seus cigarros, por aqui tão proibidos; pois nestas horas, ao ser chamado de “Joselito” e acariciado no meio das orelhas, o nobre cão abanava, com a força de um ventilador, seu rabo negro e me olhava agradecido por ter-lhe batizado com um nome tão pronunciável pelas gentes da terra dos Saramagos e dos Guimarães.


Mas estou desviando por demais do assunto.


Além dos grandes medos a curiosa amiga queria saber das comoções.


Foram vários os momentos comoventes: alguns levando a lagrimas, outros, aos arrepios da pele, ao perder o fôlego, a quase lágrimas.


Vou tentar obedecer à cronologia da viagem.


O previsto, naquela sexta-feira santa, era sair de Nájera e dormir em Santo Domingo de La Calzada: um percurso de vinte e um ou vinte e dois quilômetros pelo Caminho tradicional. Mas..., tem sempre um “mas” em qualquer história, se se desvia do percurso original do Caminho, rumo a sudoeste, e andando, por isso, uns dez ou doze quilômetros a mais, passa por San Millán de Cogolla, onde se encontram os monastérios de Suso e Yuso.


Imperdível: não seriam oito ou dez quilômetros a mais, que me faria perder a oportunidade de conhecer os monastérios, considerados, pela UNESCO, Patrimônio da Humanidade. Então, desviei-me da rota principal na esperança de – naquela sexta-feira Santa – encontrar vazios os magníficos monastérios. E aqui vem outro mas...


Mas, como estava dizendo, havia caminhado uns seis ou sete quilômetros na nova rota quando em Lãs Canas, à esquerda da pequena estrada, uma monumental construção chamou-me a atenção: o belíssimo monastério Santa Maria de Canas.


Eram por volta de nove e trinta da manhã, e resolvi descansar e lanchar no jardim frente à porta do Monastério. Estava a tirar a mochila das costas quando um rapaz de seus vinte e poucos anos estaciona apressadamente seu carro, e surpreendentemente rápido entra Monastério adentro sem nem mesmo se dignar a um Bom Dia, ou a um simples Ola; mas, e continuam os “mas” desta história, tão rápido e surpreendente com havia entrado o jovem espanhol retorna ao jardim, mas agora calmo, em pressa, todo conversador:


- “Caminhante? Brasileiro, puxa vida, que bom? Qual sua idade? Saiu da rota do caminho para visitar o Suso? Pois saiba, senhor peregrino, que nosso Monastério é tão lindo quanto os monastérios de Suso e Yuso, não quer visitá-lo?”, e enquanto falava saboreava, com longas de fortes tragadas, um cigarro.


Para resumir havia o problema de horário: no Monastério de Santa Maria de Canas, o horário de visitas iniciava a partir das dez horas, havia a distância que teria que percorrer a mais, e eu fui fazendo contas: gasto um tanto de tempo aqui, mais tanto tempo na estrada até San Millan de Cogolla, mais a visita aos monastérios... será que dá? Perder a visita aos monastérios de Suso e Yuso, nem pensar.


A decisão de visitar o Monastério foi tomada em função da extrema delicadeza do rapaz e de seu supervisor, os quais, percebendo minha indecisão, me convidaram a entrar no Monastério antes do horário normal de visitas.


Gentis ajeitaram um lugar para guardar minha mochila e me vi entrando no belíssimo monastério mastigando um enorme pedaço de pão rústico com queijo de cabra: meu lanche daquela manhã.


A limpeza do monastério, a luminosidade penetrando pelos vitrais, o pé direito altíssimo, a simplicidade da construção românica, um belíssimo altar para a celebração das liturgias das monjas cistercienses, e, - penso que o que mais me tocou - um excelente serviço de som, inundava de canto chão todo o ambiente. A tudo isso a surpresa do inesperado Monastério, a simplicidade majestosa da construção com enormes pedras negras à mostra, o silêncio absurdamente grande vedando todo e qualquer som a não ser o coral com canto gregoriano, a gentileza do rapaz em favorecer minha entrada fora de hora, sei lá o que mais: mas sei que meu corpo e minha alma foram impregnados de uma sensação de felicidade extrema, de uma abertura para o belo, para a simplicidade que, quando dei por mim, lágrimas corriam em minha face.


O pão rústico com queijo de cabra ficou esquecido na mão; a fome era outra e o canto alimentava a alma.


Coisa de velho?


Pode ser: mas, inesquecível.


E agora, passado mais de trinta dias de tão inesperada e comovente visita tenho que contar: eu julgava que por ser sexta-feira santa encontraria os monastérios de Suso e Yuso vazios, só para mim, um velho peregrino. Ledo engano: estacionamento lotado com enormes ônibus de turismo, filas imensas para visitas, o barulho infernal de turistas reduziram a visita aos monastérios a simples fotos externas. Cheguei, cansado, já de noitinha em Santo Domingo de La Calzada.


Outra comoção?


Esta eu vou contar, mas sem a garantia de detalhes geográficos. Efetivamente não me lembro o dia e, claro então, a cidade onde ocorreu.


Chovia bastante e era por volta do meio dia quando alcancei o ponto mais alto de uma pequena montanha onde havia um monumento extremamente simples, de concreto, lembrando uma agulha apontada para os céus, cercado por um pequeno jardim de pedras. À beira do jardim, frente ao obelisco, uma peregrina, mulher alta e forte, sobre a qual terei, necessariamente, que contar outra história, de joelhos frente ao monumento: lágrimas, misturadas aos pingos da chuva que caia, desciam pelo belo rosto. Na placa de bronze, ao pé da agulha de concreto, a explicação: uma homenagem do município aos mais de trezentos fuzilados, naquele alto da montanha, pela polícia de Franco: assassinados por sua resistência e luta em defesa da democracia.


E a bela, alta e forte peregrina, com seu rosto de pedra, chorava e chorava.


Também chorei, claro.