domingo, 17 de julho de 2011

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS –6– OS PEREGRINOS DO CAMINHO

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Já disse, ou penso ter dito, que se fosse possível reunir os peregrinos do Caminho de Santiago em um canto qualquer, teríamos uma cópia fiel da torre de Babel: são pessoas de todos os cantos deste mundão de Deus, de todas as idades, com todas as belezas e feiúras; alguns caminham só, outros acompanhados; há casais jovens, casais sessentões, enfim, de tudo se encontra naquele Caminho.



Comecei a observar estes diferentes tipos já no início da caminhada, em St. Jean Pied de Port, e agora, passado estes tempos, percebo que nos primeiros dez ou quinze dias de caminhada o humor está à flor da pele. A origem de tanto humor, penso, se deve ao imenso prazer que sinto ao caminhar, aliado ao fato de estar acompanhado de um grande amigo, de me encontrar em um país estranho, em um caminho belíssimo, comidas e paisagens nunca antes experimentadas, enfim, tudo novo, excitante.



De tudo se ria, e - aproveitando o fato de falarmos, Pablo e eu, uma língua incompreensível para a maioria -, a todos apelidávamos: e os dois simpáticos alemães se transformaram em “fiscais do Kaiser”; teve a “freira”, o “espanha gordito”, e o “kaiser” propriamente dito.



O “Kaiser” era um alemão alto, rosto vermelho e suado, barba por fazer e sempre que o via, me lembrava a propaganda de uma cerveja na qual jovens cansados estão para desistir da empreitada quando um deles anima o grupo -” tem cerveja nos esperando” - e todos afirmam os passos, marcham com os joelhos altos, com os cajados firmes em direção ao local onde se encontram as cervejas geladas. Pois o Kaiser deveria ter, ao que parece, sempre – de manhã ou à tarde – uma caixa de cervejas esperando por ele. Caminhava sempre com os passos firmes, joelhos altos, cajado riscando as pedras do caminho e assim se ouvia seus passos firmes e compassados de longe; logo, logo estava o Kaiser a nos passar e, sem alterar seu caminhar, com a voz gutural dos alemães nos desejava “Bom Caminho” e lá se ia o Kaiser. Nos albergues era quieto, quase sempre se isolava, não saia para as praças e bares para tomar um café ou beber, nem mesmo com seus compatriotas; assim que chegava, arrumava sua cama, se enfiava dentro do saco dormir, ligava seu radinho e, deitado, ficava a ouvir notícias de sua terra.



E os “fiscais do Kaiser”? Eram também alemães.



A Espanha cresceu muito nos últimos dez anos e vive agora, do ponto de vista econômico, momentos de dificuldades. E foi então que resolvemos que dois peregrinos quarentões, eram “fiscais do Kaiser”. Quando éramos por eles ultrapassados ou o contrário, brincávamos: estão no Caminho a trabalho, fiscalizando a correta, ou não, utilização dos recursos do Mercado Comum. Muitas vezes, então, os “fiscais” não pareciam contentes com uma placa de sinalização ou com buracos no caminho, e, por isso, telefonavam para Ângela Merkel denunciando os espanhóis que, espertamente, haviam utilizado os recursos oriundos do Mercado Comum destinados a tampar os buracos e melhorar a sinalização do Caminho, para outros fins menos nobres. Claro, então, que a Merkel ligava nervosa para o Rodriguez Zapatero cobrando providências urgentes e este, nervoso com as eleições que se aproximavam, prometia porque prometia urgência na averiguação dos fatos e nas providências que, com certeza, o governo espanhol tomaria... “Paguem o que nos devem”, diziam os “fiscais”. E assim horas e horas se passavam, quilômetros e quilômetros eram percorridos em uma alegria infantil demais para dois avôs; mas o que se há de fazer?



E tinha a “freira”.



Gorda, baixinha, cabelos negros curtos, devia ter seus cinqüenta e poucos anos, a nossa “freira” fugia do padrão dos “uniformizados” peregrinos. Explico: a maioria dos peregrinos, inclusive nós, vestia-se com calças, camisas e jaquetas que, pelo pouco peso e facilidade de secagem após serem lavadas, são extremamente adequadas para caminhadas longas. Assim o Caminho de Santiago se torna um verdadeiro desfile de Kechuas, Salomon, Solo, The North Face, Curtlo e claro, das excelentes mochilas Deuter. E na contramão deste desfile, lá se ia, com seu passo lento, mas firme e seguro, a nossa “freirinha” vestindo sua saia rodada, com estampa escandalosamente floral, e que, saindo por debaixo da blusa preta e indo até os tornozelos, eliminava qualquer possibilidade de imaginar ou adivinhar que tipo de corpo, de pernas, de nádegas, ela cobria; nada de botas Salomon: usava sapatos de couro e meias de algodão, comuns, que cobriam suas pernas até onde chegava a saia. Um crucifixo de prata pendia no peito acima da blusa branca e sob a jaqueta negra; no rosto redondo um ar de pura bondade, um sorriso ingênuo, em suas faces coradas pelo frio e pelo sol. Caminhava firme, com poucos descansos e nos albergues tão logo preparava e saboreava seu jantar, se recolhia para dormir. Era, assim como eu, uma das primeiras a sair dos albergues, antes mesmo do dia clarear, e assim, nosso hábito de madrugadores fez com que caminhássemos juntos, em absoluto silêncio, sem nenhuma troca de palavras, alguns percursos do caminho. Um tipo humano original, a "freira" em sua total desconsideração pela moda e pelos modismos; indiferente mesmo ao sentido de “pertencer” - e aos seus símbolos - e, ao contrário da maioria, em sua pequena mochila não havia sido grudada a bandeira de seu país, e nem mesmo a sempre presente concha de vieira teve o privilegio de ser amarrada e ficar balançando para cá e para lá.



E teve também o “espanha gordito” e seu fiel escudeiro, o Sr. José, este um pastor de cabras aposentado que se orgulhava de ter uns tios que migraram para os Estados Unidos , com o emprego no ofício de pastor de rebanhos garantido. O “gordito” é um espanhol baixinho, cabelos grisalhos, e foram seus quilos a mais que deu origem ao seu apelido; muito alegre e falador, cioso de sua cidadania o “gordito” estava sempre disposto a denunciar eventuais desmandos nos albergues municipais. Portador de um problema cardíaco, segundo ele, muito sério, carregava em sua mochila um vidrinho com o remédio salvador e, sempre que podia, ficava o gordo peregrino explicando a todos que providências teriam que tomar em caso de um desmaio seu, providências “imediatas, antes mesmo de chamar o serviço de saúde do Caminho”: enfiar sob sua língua seus dois comprimidos salvadores. Ouvi várias vezes, para diferentes peregrinos, sua explicação, e egoisticamente, reconheço, sempre pedia a Santiago que se fosse pra o "gordito" desmaiar que o fizesse em momentos em que tivesse ao seu lado mais corajosos “paramédicos” do que eu. E Santiago me atendeu: pelo menos até onde vi no caminho o "gordito", não houve desmaios. Seu fiel escudeiro, o pastor de cabras aposentado se preocupava e cuidava do amigo. Me disse preferir levantar mais tarde, andar menos, mas não o fazia para poder acompanhar o amigo. Para isso levantava pelo menos uma hora mais cedo para sua cerimônia de ajeitar a, com certeza, mais bem organizada e invejada mochila do caminho. Era, o Sr. José, o único entre os peregrinos a dormir com um típico pijama de flanela, daqueles listrados de calça e magas compridas, e que era minuciosamente esticado, dobrado, transformado em um pacotinho perfeito e colocado em sua mochila. Repito: sua mochila, tão organizada era motivo de inveja a todos nós outros, simples mortais peregrinos, que ao contrário do velho espanhol, simplesmente enfiávamos “goela abaixo” nossas roupas e pertences em nossas desorganizadas mochilas.



Mas, claro, tivemos muitos outros tipos observados. Mas não se preocupem: vou apenas citar nomes ou apelidos sem contar mais histórias! Ainda no início, na fase do bom humor teve o casal da Namíbia, sempre querendo chegar à frente no albergue para escolher melhores camas; teve a bela e escultural romena, que pedia para eu cantar em português, orgulhosa da origem latina de nossas línguas; teve o velho canadense que se dizia amigo de um famoso treinador de vôlei brasileiro; a coreana que com todos se comunicava em uma única língua que sabia falar: o coreano; teve o simpático casal de franceses que resolveu me “adotar”, e, enquanto bebiam vinho e eu café, falávamos de ópera e de música...



Já havia, até este momento aproximadamente uns trezentos ou pouco mais quilômetros, o humor já não estava mais tão à flor da pele e os tipos foram mudando: o japonês, de minha idade que fazia o caminho pela segunda vez; o jovem italiano que mora em Barcelona já há cinco anos e se mostrou apreciador e muito conhecedor de música popular brasileira e me contou a história dos motivos que levaram Almodóvar a convidar o Caetano para cantar, uma interpretação inesquecível, diga-se de passagem, em seu filme “Fale com ela”.



Mas chega um pouco de tipos... Cansa!

4 comentários:

Rafael disse...

Orlando, que bom ler e saber sobre esses tipos humanos. Fico imaginando o que eles devem escrever ou falar dos velhinhos brasileiros que ficavam o tempo todo observando os outros...

Morales disse...

Pena que não tem umas fotos dos "tipos". Houve época que eu tinha mania de ficar fotografando os tipos da praia. Reuni uma galeria razoável deles. Você, no final, parece que cansou de descrever os tipos. Eu não. A maneira como o fez foi ótima. Muito divertida!

Anônimo disse...

Olá Rafa:
No final do caminho fiquei "famoso" por deitar e acordar com as galinhas. Esta é uma das certezas do que os outros peregrinos pensavam dos dois velhinhos brasileiros.
Orlando.

Orlando disse...

Oi Tonhão,
Obrigado pelo comentário; voltarei aos tipos, logo logo.
Orlando.