quarta-feira, 24 de setembro de 2014

CAMINHAR E ESCREVER – 4 -

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Li, há tempos, uma carta da Clarice Lispector a Fernando Sabino na qual ela confidencia ao amigo sua insatisfação frente ao silêncio do jornal a uma sua crônica: será que a crônica que mandei virou um bolo de papel amassado e está na cesta do lixo? foi mais ou menos assim o que ela escreveu; no meu caso, e nada de querer me comparar – não sou nem sombra dela, para usar um ditado antigo – penso que deletaram o arquivo com os escritos da caminhada que fiz no sul de Minas; (por falar em deletar: lembrei-me do início do instigante romance – O cerco de Lisboa – do velho Saramago) mas, enfim, o educado e sorridente jornalista Anselmo não manda notícias, será que perdeu meu endereço de e-mail? E decidi - emburrado aqui em minha caipirice turrona – a não procurá-lo: que delete meus rabiscos, tudo bem, mas a boa educação – que esperava dele – era que me comunicasse a decisão do jornal em não publicar, eu acreditaria – melhor dizendo -, fingiria acreditar em sua desculpa de que foi o editor que implicou com a crônica, que a mesma não está de acordo com a política editorial do jornal e estaria tudo resolvido, baixaria essa minha ansiedade, copiada da grande Clarice.

Abro a caixa de e-mails e encontro: “sua crônica será publicada, no jornal de domingo, caderno da cidade. O jornal vai, a partir dessa publicação, avaliar a aceitação pelos leitores. Boa sorte e abraços, Anselmo” e eu fiquei radiante, tolamente orgulhoso, querendo que a sexta-feira já fosse sábado e que o sábado já fosse logo domingo para eu acordar logo cedinho, e no escuro ainda ir para a banca de jornal do seu Ângelo e comprar dois exemplares, no mínimo, do jornal, mas o Anselmo me disse que quando publicassem que mandaria um exemplar para minha casa, e eu poderia então – de pijama, ver e rever a crônica publicada - mas pode ser que ele esqueça, acabe a gasolina da moto do entregador, tanta coisa pode ocorrer então vou me prevenir e comprar três exemplares, ou quatro, dá de a seleção ganhar o jogo no sábado e ai esgota mais que depressa a edição do jornal...

No antigo Grupo Escolar, hoje primeira a quarta série, exercitávamos três tipos de escrevinhação: descrição, narração e composição; não consigo lembrar a diferença entre composição e narração, a descrição, sim, me lembro bem, tinha que ser objetiva, restringir-se a comentar o solicitado no título – minhas férias de julho, por exemplo – ou quando a descrição era frente ao surrado quadro de gravuras contar direitinho quantos pintinhos rodeava a mãe galinha, suas cores, não esquecer do cachorro que dorme sob o pé de manga, nada de escrever dos possíveis sons, da magia de uma mãe galinha ciscar o chão à cata de minhoquinhas para os pintinhos amarelos... Eu escrevia narrações, composições e descrições. Foi na quarta série do ginásio – hoje corresponde à oitava série – quando chegou para dar aulas de português Dona Tarsila, bonita professora, baixa, um pouco gorda – sensualíssima aos meus olhos de pré- adolescente -em suas justas saias escuras, moldando as ancas redondas, blusas claras, os peitos querendo sair mundo afora e foi ela que leu – em voz alta, para a classe - uma narração – ou composição - que eu havia escrito e ao término da leitura pediu atenção ao seu final, quando para esconder uma forte emoção face a situação criada encerro a narração com um seco “por favor, me empreste a gilete para eu apontar meu lápis” e Dona Tarsila comentou do efeito psicológico daquele final, eu envergonhado e orgulhoso, ou melhor: meio envergonhado e inteiro orgulhoso, mas o que quero contar aqui – agora – é que, à época, não cabia dentro de mim uma possível habilidade na arte de escrever: era como jogar bola: jogava e pronto –; e mesmo mais tarde, adulto, confundia esta possível habilidade com o domínio de conteúdo e assim menos que a habilidade em escrever o que prevalecia – em minhas redações, narrações, descrições e composições - eram meus parcos conhecimentos – livrescos – de um assunto e era este conhecimento do conteúdo que tornaram minha “redação” digna de ser avaliada como boa ou ruim. Chega, por agora, outra hora conto mais.

Foi nessa caminhada de agora pelo sul de Minas que estreei o prazer de caminhar com o da leitura; explicando: nas caminhadas anteriores – por questão de peso e espaço na mochila – não carreguei nenhum livro: se era pequeno eu iria sofrer por acabar a leitura no primeiro ou segundo dia, e fazer o resto da caminhada sem ter o que ler, agora se o livro fosse taludo, grosso, iria me incomodar pelo seu peso, não ira caber na mochila e então, eu não havia, até então, tido o prazer de uma leitura à tarde, sentado no banco de uma praça da pequena cidade, ou da leitura – deitado - na escura e silenciosa madrugada – esperando o dia amanhecer -; mas nessa caminhada de agora não: em pequeno e leve e-reader nada menos que dois livros novos e – mera coincidência – em um deles - Lucas Procópio, do Autran Dourado - trata da longa viagem do louco Lucas de Diamantina para Alfenas sonhando – como um Dom Quixote – em reverter a realidade à custa de poesias: sim, o louco Lucas, delirava em sua loucura com o retorno das Minas de seus sonhos à força de belas poesias declamadas em coretos das pequenas vilas por onde passava, mas vou parar de contar a aventura do louco Lucas Procópio e muito menos contar o seu final. Mas, como dizia antes, o louco Lucas Procópio caminhava de Diamantina para Alfenas, de onde iniciei minha caminhada: Alfenas, com sua praça repleta de coqueiros, os coqueiros repletos de maritacas, papagaios e tuins, cantando desafinados, desarmonicamente – uma algazarra profunda de sons competindo com o toque do relógio da igreja matriz, os bancos do jardim sob a sombra de ipês e quaresmeiras, os ipês floridos, o chão amarelo de suas flores caídas e eu tentando decifrar em minha memória a diferença entre maritacas e papagaios: os tuins são pequenos, lembro bem, mas e aqueles maiores ali: qual é o papagaio e quais são as maritacas, ou são todos papagaios, ou todos maritacas e eu sabia disso tão bem, tinha os nomes e as cores em minha mente: a verde e amarela Maracanã, a Tiriba, os Tuins menores que os também verdes Periquitos, reconhecia – no ar - o penoso e sofrido voo da Maritaca, parecendo que ia cair de cansada, as asas sacolejando apressadas abaixo do corpo, reconhecia o Cuiú pelo topete vermelho na cabeça e agora – a velhice e a distância rotineira com a natureza – fico a sofrer aqui na praça de Alfenas para identificar a maritaca, o periquito... logo logo, penso, não vou saber a diferença entre galinha e vaca tão acostumado de comprar e comer congeladas carnes nos supermercado, e deu vontade de copiar aqui uma frase inteira do A vida no céu, do Agualusa: “- ... Sabes o que cheirava a savana após a chuva?! Sabes o que é correr livremente, sem nunca tropeçar em paredes? Podes dizer-me a que sabe uma manga colhida dos ramos mais altos de uma mangueira? Sabes sequer o que é uma mangueira?” ; e continuo: sabes o que é cair de mangueira abaixo e chupar a manga colhida com as costas doidas do tombo, a camisa suja do amarelo caldo da manga e do preto da bosta de vaca que amaciou o tombo, tanta coisa!

No quarto dia de caminhada , salvo engano, tem-se que percorrer vinte e oito quilômetros e não há no meio do caminho ponto de apoio para a compra de lanche, mas há, sim, o Recanto dos Amigos, um restaurante caseiro, isolado ao meio do cerrado, beira da estrada. Seu Gerônimo e Dona Rosa, seus donos: um casal mais para sessentão que para cinquentão, ele falante, ela quieta, olhar brilhante: quer um suco de melancia?; obrigado, o que quero mesmo é almoçar, a senhora tem?; vou preparar: come bife de porco?; sim, como; e dona Rosa se enfia cozinha a dentro e fico com seu Gerônimo: cigarro de palha à boca – fumo de corda dos bons: goiano, diz ele enquanto solta a fumaça azul pela boca e pelo nariz, tosse vez ou outra e vai contando: eu, quando moço, trabalhei muito tempo de vaqueiro para um fazendeiro paulista que tinha terras aqui por Minas e lá pelos lados do pantanal no Mato Grosso, e era eu – vaqueiro – que levava o gado magro daqui de Minas e trazia gado gordo lá do pantanal, mais de mil cabeças por viagem, comitiva com três berranteiros, musicais berrantes de longos chifres, dos bons, duas treinadas vacas madrinhas para guiar o rebanho, cavaleiros ajudantes, o cozinheiro, dormindo em redes sob o céu...tempo bom, de gente moça, agora não dou mais conta. E, ali, meio do serrado, a Mantiqueira azul ao fundo, grande, majestosa, o pensamento voa até o conto de Guimarães Rosa – Entremeios com o vaqueiro Mariano – e copio as perguntas do escritor ao vaqueiro Mariano: e seu Gerônimo, tem mesmo boi que toma ódio das pessoas?; se tem, por demais...E seu Gerônimo enrola outro cigarro e vai contando, carregando o seu sotaque mineiro, o olhar saudoso dos tempos que se foram, do som dos berrantes, das noites nas casas das tias em pequenas vilas – a gente ia molhar o ganso, diz sorrindo, coisas de rapaz novo e contou da vaca branca que deu cria em plena estrada e se recusou a seguir caminho, e quando de volta do Pantanal, seis meses depois, lá estava ela e seu bezerro – já grandinho – e se juntou ao gado gordo que trazia para Minas, mode o patrão vender para fazer dinheiro e era assim a vida, ano após ano, tempo bom, de rapaz solteiro.

Dona Rosa cobre a mesa com um pano de prato branco e trás o almoço: feijão grosso, arroz, couve, dois ovos fritos e bife de porco; depois do almoço café de coador, perfumado; o sol se esconde por detrás de uma nuvem grossa: será que chove, seu Gerônimo?; pra esta semana, não, talvez na que vem chove um pouco; o vento do sudoeste não trás chuva, seu Gerônimo?, trás não: vento de chuva é o noroeste. Mesmo assim o melhor é espantar a preguiça, colocar a mochila às costas e caminhar até o pé da Mantiqueira: mais uns doze quilômetros e chego ....

terça-feira, 16 de setembro de 2014

CAMINHAR E ESCREVER – TRÊS –

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Maldita a hora em que cedi à tentação – (puxa vida, na infância a palavra “tentação” – carregada do sotaque espanhol do Frei Elói - não nos deixai cair em “tentacion” – era, para mim, pura musicalidade e fazia com que eu aguardasse sempre, ansioso, no fim do pai nosso, à época padre nosso que estais no céu...demorando para chega no o pão nosso de cada dia...; pulei para a adolescência, imberbe, amarelas espinhas espalhadas pelo rosto, a musicalidade perdeu espaço e – então - “tentacion” chegava aos ouvidos carregada de erotismo, do carnal pecado, de minhas mãos tocando os delicados ombros da namoradinha na matinê de domingo, ela sentada uma fileira à minha frente, as alças brancas do vestido salientando as magras costas morenas, ossudas e eu não enxergava a tela com o Flash Gordon no Planeta Marte – em preto e branco - assassinando com sua pistola mágica estranhos aborígenes de orelhas enormes, vindos de infinitos planetas, minhas mãos acariciando as costas morenas da namorada e o seriado terminava, abriam a cortina de ensebado veludo vermelho, a luminosidade e o silêncio da rua entrava cinema a dentro e a gente saia timidamente separados, o pai dela era bravo, sonhando com domingo que vem) de, por sugestão do Seu Patrício, me comprometer a escrever as tais crônicas para o jornal. Ando achando desagradável a experiência a de escrever por obrigação: o jornalista Anselmo mandando e-mails – educados – cobrando prazos, reclamando do número de palavras, tantas laudas, você em iniciado frases com letras minúsculas e isso não pode, sugerindo mais objetividade nas narrativas e simplicidade no vocabulário – “nosso público é classe d”, e eu cá com minhas ideias querendo vagar nuvem arriba e a cabeça não obedecendo às mãos que teimam em digitar...

Escrever é um ato solitário que, para mim, tem os seus melhores momentos nas silenciosas madrugadas, a caneca de café amargo ao lado do teclado, um gole leva a uma frase, relembro o livro que ando a ler e digito mais duas frases, livre, intuitivo, sem me perguntar o que ando a escrever, sem me preocupar com a objetividade solicitada pelo sorridente Anselmo, sem racionalizar – besteira pura pensar no porque escrevo - , e foi só agora, com a obrigação de mandar a crônica para o jornal é que surge a dúvida do porque escrevo; penso que – talvez, o escrever – seja para tapear a timidez, a baixa autoestima: ninguém quer saber de ouvir histórias, ainda mais histórias velhas, de velhas cidades, tão pouco fantásticas as histórias, de velhos amores, e percebo, na solidão do pensar o escrever, uma sutil diferença entre escrever uma história e refletir sobre o meu eu; tentando explicar: ao escrever uma história, mesmo me enfiando todo na personagem (Dona Florianette, brava e bonita professora de português explicando o porquê personagem é de duplo gênero: masculino ou feminino), me misturando com ela em seus íntimos momentos, salvaguardo – penso – minha intimidade, minhas covardias, minhas fraquezas, meus orgulhos e minhas desumanidades, ou pelo menos me sinto assim: encoberto, salvo; mas agora, me pergunto?; como posso escrever a desumanidade de uma personagem, uma sua tara, se a personagem, sem o autor, não existe?; quer dizer então que suas taras, suas ingenuidades e suas desumanidades são minhas e o escrever é nada mais do que eu deitar no sofá e me deixar analisar? Melhor parar com isso: o que acho mesmo, de verdade, é que estou parecendo adolescente em véspera de prova: reagia, desordenadamente , à pressão de ter que estudar com sentimentos de fortes dores de cabeça, passava a alisar o rosto me ordenando: melhor fazer logo a barba, esquecia da barba e acariciava o pinto, que prontamente reagia, ficava sexualmente excitado sonhando com abraços e pernas e peitinhos, o estômago roncava e me sentia morto de fome, o meu time perdeu o jogo, que merda, o tempo passando com o livro de latim aberto à sua frente, a terceira declinação: i, orum, is, o jeito era estudar. Então vamos à crônica:

As manhãs têm sido frias, o sol tendo que se esforçar para abrir a espessa cortina da neblina branca, por a cara para for e colorir de vermelho o horizonte, aquecer os ossos e as mãos frias que vão se alternando na tarefa de segurar o cajado – cada hora uma buscando o bolso para se aquecer - , o nariz soltando fumaça branca lembrando o trenzinho do caipira do Villa - piuiii, piuiii – : gosto, muito, de caminhar: o pensamento voa, os sonhos se tornam possíveis, reais sonhos no aqui e no agora.

Enfiado na Mantiqueira, no sobe e desce morro e montanhas, em estradinhas de chão cortando os cerrados com suas sofridas e retorcidas árvores – tão bonitas em sua rusticidade - , as montanhas coloridas com enormes triângulos de verdes cafezais e com retângulos de suaves pastos com bois e vacas berrando, seriemas de topete arrepiado cantando alto e agudo o seu que! que! que!, convidando a fêmea para o acasalamento, botar seus ovos meio do pasto, em um ninho encostado no monte do cupim, longe das vistas do teiú que vive de comer ovos crus, e um bando de periquitos tuins em sinfonia querendo acordar o mundo. Meio a tanta distração esqueço das setas de orientação do caminho: acho que estou perdido, ando mais uma meia hora, nada de setas e a experiência de andarilho diz: meia hora sem sinal, você está errado, o melhor é voltar, caminho – indeciso mais um pouco - e do alto de um pequeno morro vejo uma fazenda mais a frente – coisa de vinte minutos, calculo – e decido andar até lá e me informar.

Saio da estrada municipal, atravesso o mata-burro para alcançar a fazenda - casa caiada, grande, janelas azuis – com o curral entupido de vacas brancas com manchas pretas, e conforme vou me aproximando dou umas tossidas e raspo a garganta - sem vontade – anunciando minha chegada; preso por uma corrente ao moirão do curral um cachorro vinagre, forte, dentes enormes, late e uiva ameaçador, defende seu território do inimigo, ainda bem que está preso, ancestral o medo de cachorro; fora o latido do bravo cachorro cor de vinagre, e um muuuu! ou outro das vacas no curral impera o silêncio da Mantiqueira. Me aproximo da cancela do curral e percebo que a ordenha das vacas é feita não pelas mãos humanas dos velhos retireiros agachados com o balde entre as pernas, mas por elétricas mãos de ferro que apertam e desapertam – ritmicamente - as cinco tetas cor de rosa das vacas em fileira, o leite saindo por mangueiras de plástico até o latão... e do meio a imensidão de brancas e gordas vacas de machas negras, que ruminam ordenada e pacientemente o capim, a olhar ao infinito com um negro e brilhante olhar que reflete a total ausência de preocupação com as mazelas do mundo, o leite sendo tirado pelas elétricas e frias mãos de ferro, e, como dizia, do meio da nuvem de obedientes vacas surge, se levanta – demoradamente - um homem alto, gordo, paletó escuro, e tão logo se coloca totalmente de pé caminha a passos lentos em minha , e posso, então, observá-lo melhor : alto, gordo, o paletó preto ensebado cobre uma camisa de flanela surrada, os olhos cheios de remela, as calças teimando em cair – o improvisado cinto feito de corda com um grosso nó, mal feito não segura as calças, o ventre cabeludo à mostra – o rosto com o inchaço vermelho típico do alcoólatra, o olhar se dirigindo a mim e – como as brancas e gordas vacas – não me veem, me atravessam e se dirigem para o infinito. Os dois parados, quietos, um frente ao outro, eu surpreso resolvo tomar a iniciativa: bom dia, estou fazendo o caminho para Aparecida e acho que me perdi; o alto e gordo homem a meio metro de mim, quieto, não me vê, fede a urina e suor quieto, mudo; insisto: a estradinha que passa logo ali embaixo é a que vai para Turvolândia; nada: o gordo homem sozinho com ele mesmo, as vacas ruminando, o cachorro vinagre parou de latir e de saltar para escapar da corrente, ainda bem, e o fedido homem tão próximo, mas em sua loucura não me vê, e eu a imaginar suas possíveis reações – uma vez em um baile na roça enquanto dançava alegremente com a filha do fiscal fui violentamente esbofeteado no rosto por um louco, também alto e gordo, só que sem o inchaço e vermelhidão no rosto e sem exalar a catinga que sai deste gordo homem, com seus quarenta ou cinquenta anos, sei lá -; o cachorro volta a latir e do outro lado do curral surge um vulto, caminha a passos firmes e rápidos, um jovem rapaz de calças jeans apertadas, chapéu de cowboy, botas sujas de negra bosta de vaca: bom dia, estou indo para Aparecida e acho que me perdi...; ‘dia, perdeu não, tá certo; é que não tenho visto o sinal do caminho; logo ali, depois de uma meia légua o senhor vai ver, depois de um mata-burro o sinal do caminho, quer um copo de leite?; obrigado, vou aceitar – curioso para ver se ele ia tirar o leite com as mãos ou ia desatarraxar as mãos de ferro, elétricas e nem um nem outro: catou uma caneca de alumínio e meteu em um galão de leite já cheio e me ofereceu...Bebi o leite que mantinha ainda a quentura do corpo de uma daquelas vacas brancas de manhas negras que continuavam a olhar o infinito, ruminando a total falta de preocupação com o futuro, mansas em sua quietude, suas tetas cor de rosa massageadas por elétricas mãos de ferro e o homem gordo, sujo e fedido foi voltando – quieto - para o meio das vacas, alcançou um cocho à beirada da cerca do curral e lá, devagar – acomodou seu corpo pesado.

Vou indo, obrigado pelo leite; de nada, e que mal lhe pergunte: está caminhando sozinho?; sim, caminho só...; que Deus e Nossa Senhora te acompanhe!; vai acompanhar!

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

CAMINHAR E ESCREVER–DOIS -

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E como vai essa vida de escritor?

Certo dia, há tempos, um editor aventou a possibilidade de publicar um livro meu a partir da seleção das histórias que ele conheceu em meu blog; entusiasmei-me, claro, quando ele marcou o dia, a hora e local – uma antiga livraria de São Paulo – para nosso encontro, cheguei uma hora antes do combinado, ansioso, sonhando com o livro pronto, fantasiando uma capa com fortes cores e com a noite do lançamento, eu lá todo importante assinando meu nome depois do abraço, e os minutos não passavam, acho que ele não vem, desistiu, deve ser, mas ainda faltam quinze minutos para as onze horas; peço outro café e tento me concentrar na leitura do Lucas Procópio, pelo menos finjo que leio para a hora que ele chegar – se vier – me pegar de olho em um bom livro, de um autor que ele – com certeza - respeita muito, será que ele já leu Autran Dourado?, claro que leu, pode ser até que o tenha conhecido pessoalmente, editor é sempre letrado; vejo – agora - que lá vem ele agora – pontual – , caminha em minha direção a passos largos, terno escuro, alto e elegante em sua gordura, camisa de linho e gravata italiana, cabelos brancos: e como vai essa vida de escritor?

Gelei! Levantei-me da cadeira, sem saber se falava bom dia, se abraçava, quais são as normas que regem o encontro de um prosador – prosador, sim, viva Cristóvão Tezza! – com um editor?; sentou – o editor - na cadeira ao meu lado, tão a vontade, pedi mais café que chegou logo, quente, fumacento, perfumado e eu sem coragem de tomar o meu: ia derramar, que vexame, as mãos desobedeciam a cabeça, tremiam, se eu resolver tomar o café desta pequena xícara vai ser um desastre, com certeza, vou derramar café na mesa, pior ainda se mancho de preto a branca camisa de linho do editor e aí sim é que o livro – melhor dizendo, o sonho do livro - vai para as cucuias, nada de lançamento, nada de autógrafos. O que que você tem?, não está se sentindo bem?, o que foi que houve?; foi nada não, só um susto (deus do céu, onde já se viu, ele vai adivinhar o motivo do susto, devia ter ficado quieto, em boca calada não entra mosquito); susto? susto do que? tá vendo bruxas?. E chegou mais café pedido pelo editor, que discorreu a respeito das dificuldades de se editar um livro hoje em dia, as editoras não investem em novos autores - o tal do mercado - e estes ficam esquecidos, sem oportunidades, grande prejuízo para a cultura brasileira e eu senti que ia me acalmando, peguei coragem de tomar a xícara de café, bebi, vi que a mão já obedecia a superior ordem de não de tremer, e eu sabendo que falava superficialidades pedia a deus para que o editor com sua bonita gravata italiana e sua camisa branca de linho me perguntasse o que andava eu a ler para então eu poder contar da minha descoberta do Autran Dourado, mineiro bom, escritor premiado, pouco conhecido, será porque em Minas nascem tão bons escritores? serão as montanhas negras, o clima seco, o silêncio quieto exigindo que a vida seja vivida com econômicas prosas, monossilábicos diálogos – ‘dia!; dia!; boom?; boom! - .

E o editor catou o pen-drive com as histórias, me ofereceu um cartão de visitas com telefones, e-mails e nos despedimos e foi esta a primeira vez na vida que alguém me chamou de escritor – como vai essa vida de escritor? – e aquilo – ser chamado de escritor - me causou um susto danado: eu escritor? tá mais é doido o editor, deve ser força do hábito, trejeito de sua profissão, a profissão marca o homem, e como marca – há muito tempo li, em um jornal, uma tira de quadrinhos em que um vendedor dizia à esposa: fui mandado embora; e ela: e do que você está rindo?; e ele, o vendedor: é o maldito sorriso de vendedor que não me larga - , não sou escritor, sou um aposentado que escreve - apenas isso – um dia lendo Clarice Lispector - acho que em Aprendendo a Viver – ela se pergunta se é uma escritora e que não se imagina como tal, diz alguma coisa como “escrevi os livros quando eles espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis” – agora se ela - a grande e bela Clarice - não se vê como escritora, imagine eu aqui, um simples pedagogo aposentado, mas melhor parar porque isso não tem fim, vou me socorrer – mis uma vez – com o professor Cristóvão Tezza: me considero apenas um prosador, um contador de histórias, com isso não estou dizendo que sou um bom prosador, o mais provável é que não, mas um prosador, sim – na prosa onde tudo cabe, menos poesia, como diz o Tezza -; prosador - acho mais simples - cabe mais dentro de mim, com minhas incompetências e infinitas preguiças, menos de andar e de ler.

Mas acho que é hora de deixar de lado tanta prosa e cumprir a crônica prometida ao jornalista Anselmo.

Primeiro dia de Caminhada!

“Por forma que o dia era parado de poste.

Os homens passavam as horas sentados na

porta da Venda

de Seo Mané Quinhentos Réis

que tinha esse nome porque todas as coisas

que vendia

custavam o seu preço e mais quinhentos réis”

Manoel de Barros, Poemas Rupestres

Apesar da idade e uma boa experiência em solitárias andanças, sempre, no primeiro dia que inicio a caminhada me sinto ansioso, com uma injustificada urgência de sair estrada a fora que faz com que eu engula o café sem prazer, sem assoprar o suficiente e ele – por pirraça, penso - desce queimando goela abaixo, escovo os dentes mal e apressadamente, faço tudo correndo, atabalhoado, sem pensar ...E quando, enfim, meto a mochila às costas me vejo a – semelhante a um peru velho - dando voltas em torno de mim mesmo, batendo com a mão na bunda verificando o bolso traseiro, me perguntando: será que não estou esquecendo alguma coisa?; não, esqueci nada não, tá tudo aqui; paro e rememoro: os remédios enfiei na nécessaire no fundo da mochila, mas, mesmo assim melhor conferir e desafivelo a barrigueira da mochila, tiro das costas e jogo sobre a cama, abro cada uma de suas infinitas divisões para ir conferindo: estão lá os remédios de uso contínuo, a bolsinha com o remédios para eventuais dores, picadas, a agulha para furar as bolhas do pé, a fralda do neto que será a toalha nestes dias, cueca, outro par de meia, o chinelo, duas garrafinhas com água nos bolsos, as frutas secas...e como é que cabe tanta coisa nesta mochila que volta às costas comigo ainda descrente da vistoria realizada, ainda a dar voltas em torno de mim mesmo, a bater na bunda para checar os bolsos traseiros; a solução? é a velha e salvadora liturgia do sinal da cruz: em nome do pai: mãos à testa, sim estou de óculos; do filho e bato no centro do peito: sim, a máquina fotográfica está pendurada no pescoço , do espírito: mão ombro esquerdo: sim, os documentos no bolso da camisa; santo, e bato a mão no ombro direito: sim, a blusa de frio no bolso direito da mochila, e em voz alta grito amém, “amém nois tudo”, agora é só enfiar o chapéu na cabeça para proteger a careca, catar o cajado na cama, agora sim, tudo pronto ... mas, tem sempre um mas: mas, mesmo com a mochila às costas me agacho desequilibrado pelo peso da mochila e reolho embaixo da cama para ver se não esqueci nada, aproveito que estou agachado para checar se os cadarços das botas estão bem amarrados, e então – confiante? - saio porta a fora, alcanço a rua e inicio a andança ainda com uma ponta de dúvida se está – realmente - tudo na mochila (deus do céu: em casa ando da sala até o banheiro para encontrar a escova e a pasta, busco no outro quarto a toalha de banho, o chinelo está ...e agora, tudo, tudo, por quinze dias aqui dentro desta mochila, às minhas costas?; deve ser essa a causa da ansiedade, das inúmeras voltas que dou em torno de mim mesmo, dos tapas na bunda, de olhar sempre mais uma vez embaixo da cama da pousada para conferir que não esqueci nada...)

A manhã está fria - geou de madrugada - e o sol aponta – tímido - no horizonte, a lua toda prata esqueceu de se esconder, quer conferir se o sol vai mesmo aparecer; caminho a passos firmes, no meu ritmo lento, e o barulho dos caminhões e o cheiro de óleo diesel vão se desfazendo, a cidade – pequena – vai, lentamente, ficando para trás, o silêncio invadindo e impregnando meu corpo, tomando conta do meu ser; à frente uma porteira com o mata burro ao seu lado, a estrada de chão, o corpo se acostumou com o peso da mochila. Paro e me encosto no moirão da porteira, bebo um gole d’água, olho para trás e vejo lá longe, meio a neblina, a torre da igrejinha, ainda dá para ouvir longe, longe o sino do relógio bater e conto as batidas com a ajuda dos dedos: uma, duas....sete: são sete horas...

Guardo com muito zelo as memórias de minha meninice - na verdade nunca sei se são memórias ou invencionices, tão misturadas me apresentam - e me enfiar pelas montanhas de Minas Gerais a dentro, cortar os cerrados, atravessar – com cuidado - os mata-burros, ouvir o canto do galo, o muuuuhh da vaca oferecendo as tetas ao bezerrinho, sentir o cheiro de café passando no coador, ver a fumacinha branca saindo pela chaminé, tudo isso, mais, claro, tudo o que ainda virá nos dias e dias de solitária caminhada que tenho pela frente, me levam à infância, não um retorno puro e simples à infância – ridículo aos setenta se sentir com sete ou oito – mas retorno ao que vivi sob o crivo – ou sob o prisma – da idade que tenho, da vida que vivi. Um dia, não me lembro nem quando nem com quem andava a conversar – mais provável que comigo mesmo – disse que Minas com suas montanhas, suas vilas e riachos, seu quieto povo e o seu pão de queijo e o seu toicinho frito e o biscoito de polvilho me comove e gostei muito mesmo de ter dito que me comove, e me lembro ainda, que na tal conversa procurei me justificar: fico a vontade por não ser mineiro: Minas me comove; penso que o que me comove é esta volta às memórias da infância que o lento caminhar me permite.

No alto de um enorme e imponente pé de sucupira o urubu me observa quieto, olhos negros, cabeça pelada, bico catando piolhos nos pés; enquanto tento fotografar me lembro do casal de urubus - Dito e Luzia – meus amigos das dunas que andam sumido e, o que é pior, tenho visto um enorme gavião na mangabeira sob a qual Dito e Luzia fizeram seu ninho e andavam a chocar os ovos, será que o gavião deu fim no ninho do Dito e da Luzia, quando voltar vou verificar, e aqui no alto da sucupira o urubu – garboso - posa para a foto, quieto; será que no hemisfério norte, acima do equador, não tem urubu? por quê? porque os homenageados são sempre os corvos: um filme muito sensível e antigo japonês – O Corvo Amarelo – depois o belo Cria Corvos do espanhol Saura e o meu urubu , aqui do pé de sucupira, fotografado, abre as longas asas e inicia o voo silencioso: os urubus são silenciosos em seu voo, em seus ninhos, em seu acasalamento – cultivam o silêncio e talvez por isso – pelo silêncio que caracteriza essa negra ave, que me lembrei do poema O corvo, do Poe: o solitário corvo, ave feia, escura, pousa sobre um busto de Palas e arguido responde: “nunca mais”...melhor mudar de assunto, o galo canta o seu coocoricooocooh, passo frente a uma pequena casa caiada de azul, o jardim protegido com delicada cerca de bambu, os cães me observam em silêncio, não latem, deve ser o frio. Olho para o céu de um azul infinito, enorme, sem nada de nuvem, nem mesmo um fiapinho, lindo céu, com o sol livre para projetar a sombra do corpo no barranco da estrada, uma sombra grande, com as pernas compridas, mas sei que vai ir sumindo, devagarzinho sumindo, até ela se enfiar toda dentro de mim, se misturar comigo, isso quando for lá pelo meio dia e então, cansado, escuto - meio longe - o ruído calmo do pequeno riacho, que corre forte sobre negras pedras, passa sobre a pequena ponte: hora de – calmo – retirar a mochila das costas, tirar o chapéu, lavar os óculos e as mãos na correnteza do riozinho, provar – com as mãos em concha - a branca e fria água, ajeitar a bunda na moita de capim barba de bode, catar a matula e almoçar.