segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: A história de Durvalina


O verão já chegara.
O ipê amarelo perdera as flores e estava, agora, carregado com suas folhas verdes pardas, ásperas, mas que funcionavam com um bom guarda-chuva, protegendo, do sol quente do meio dia, o banco do jardim, no qual me sentava após o almoço, para ler e fumar. De verdade, penso que ler e fumar talvez fosse a desculpa, sem motivo, inventada por mim, para o encontro e as palestras com Orozimbo, que chega faminto por fortes tragadas.
Fumamos e, já pensando na troca que faria, leio para ele:
“Meio século não se passa em vão. Sob nossa conversa de pessoas de leituras misturadas e gostos diversos, compreendi que não podíamos nos entender. Éramos diferentes demais e parecidos demais. Não podíamos nos enganar, o que torna difícil o diálogo. Cada um de nós era o arremedo caricatural do outro...porque o inevitável destino dele era ser o que sou.”
Orozimbo toma de minhas mãos O Livro da Areia, do Borges e me entrega sua brochura; percebi que desenhara, com sua caneta de pena, um par de óculos sobre os olhos do Duque de Caxias, que assim, de óculos, ficou mais sério, o Patrono do Exército Brasileiro.

DURVALINA: ACABOU-SE A HISTÓRIA, MORREU A VITÓRIA.

Mas, Deus do céu, onde foi parar o tatu galinha?
Sumiu, o desgraçado? Será que esqueceu seu compromisso de buscar-me para meu retorno de volta à luz? Ando já cansado do escuro e da umidade das profundezas do cemitério e querendo, muito, ver de novo o sol. Resolvo que a melhor maneira de esperá-lo é conversar com a Mariquinha Precata. Vou até seu canto!
Como sempre está lá a Mariquinha, toda encolhida, costas curvadas, magérrima, e me faz pensar: “não sei como deu certo em sua profissão: feia demais para ser puta”.
- Me conte, Mariquinha a história de sua irmã Durvalina?
- Conto sim, Orozimbo. Mas para não encompridar ainda mais esta história, vou contar para você partindo do fim, e assim, vejo se, hoje, termino. Pois aconteceu que Durvalina, sabendo dos meus finalmente de vida, veio me visitar, palestrar comigo, fazer a última visita. Você sabia, Orozimbo, que foi ela que ficou comigo na hora da minha morte, segurando em minhas mãos, rezando terço baixinho, pedindo a Deus e a Santa Luzia pela minha alma? Boa demais minha irmã Durvalina. Então foi assim que ela me contou:
- “Pois então, Mariquinha, moramos lá na Santa Generosa, eu e Oscar, por trinta e tantos anos. Já no segundo ano de morada por lá o Patrão nomeou Oscar, como vaqueiro: isso dava a ele toda a responsabilidade pela fazenda, desde tarefas mais simples como cuidar do trabalho e do pagamento dos colonos e dos peões até trabalhos mais difíceis e honrosos como contar e vender, todo ano, lá pelo mês de setembro, a boiada, receber o dinheiro pelas vendas e zelar por ele até hora de entregar ao patrão. De bom, além dos pagamentos, a cada quatro bezerros que nascia um era dele. No início, quando tínhamos a certeza de muitos filhos e filhas, oferecíamos aqueles bezerros aos futuros: este vai ser do Luís, aquele outro da Luzinete, o tourinho bravo, cujo nome é Cigano, será do Justino...Filhos não tivemos: nada, providência nenhuma – e foram muitas as tentativas - conseguiu apagar a praga de secar meu bucho, jogada, em mim, pela patroa. “ Que fazer: Deus quis assim “, dizia Oscar;” desgraçada, filha d´uma égua “, pensava eu. Mas enricamos, Mariquinha: muitos bezerros e bezerras, porcos, galinhas, arroz, milho, mandioca...tudo com fartura a ponto de sobrar para vender. E foi daí, não sei se você ainda se lembra, Mariquinha, mas sabe aquela fazenda quase em frente a do Patrão, chamada de Boa Vista? Então: o governo desapropriou, dividiu em alqueires e distribuiu entre os moradores da região que não tinham terra. Seu Alfredo, pai de Oscar, e dona Ana, sua mãe, ganharam dois alqueires e para lá se mudaram. Com o dinheiro da venda de bezerros e porcos, Oscar mandou construir uma casinha, cercar as divisas, fazer curral e comprou duas bezerras para iniciar a criação. Seus pais também plantavam mandioca, milho e feijão de vara. A única dificuldade era a água: em grandes secas tinha que ser buscada na fazenda do Patrão, em troca de dias de serviços. E foi daí, Mariquinha, que Oscar, com seus cinqüenta e poucos anos foi ficando fraco e mais fraco. Não mais aguentava montar cavalo, respirava mal com o peito doente, de qualquer coisa se cansava e nada mais podia. O médico disse: “foi picada de barbeiro, o coração cresce demais e morre cedo.” Morreu, o meu Oscar, de tanto que inchou seu bom coração. Levei seu corpo para ser enterrado no cemitério do lugar onde nascera. E passei a ficar morando por lá, cuidando dos seus pais; te confesso, Mariquinha, que fiquei muito desiludida, sem o marido, sem os filhos que não tivemos; de bom, mesmo, só as lembranças de nossa vida de marido e mulher, das tardes na Santa Generosa, dos nomes que imaginávamos para nossos filhos, dos sonhos que sonhamos.
- “Mas me conte, Durvalina, como foi que você voltou a trabalhar para o Patrão Anselmo”, pedi.
E Durvalina continuou sua história. Pois foi assim, me disse: Acontece que, mesmo antes de sua mulher morrer, ele me contratou para lavar suas roupas, cuidar da limpeza da casa e cozinhar. Era o pagamento pela água que a gente precisava e que em casa não tínhamos. Então fui. O Patrão Anselmo era agora um homem fraco, doente, cara amarela, barba sempre por fazer: quieto, moribundo. Apenas quando nuvens apareciam no céu, chamando chuva, ele assoviava, um pouco desafinado a Saudades do Matão, mostrando um pouco de alegria.
Nos demais, parecia tão triste como eu.
Pai de Oscar morreu e ficamos na chácara, sua mãe e eu, para de tudo cuidar: das vacas, da plantação de mandioca, do feijão e do chiqueiro com os porcos. Intentei e consegui, com o Patrão, trabalhar até o meio-dia em sua casa com o direito de voltar à tarde para cuidar das nossas coisas. “Se não der conta de tudo o que tem que fazer, também dou só a metade da água que vocês precisam, combinado, Durvalina?” foi sua mal humorada resposta. Então era essa a luta: eu querendo tudo fazer logo cedo até o sol do meio dia queimar minhas costas para poder voltar e cuidar das nossas vacas, porcos, galinhas, mandiocas e feijões, e ele, Anselmo, querendo tudo retardar, reclamando da comida, sujando mais roupa, exigindo que além da dele eu lavasse também a roupa do vaqueiro já que “minha mulher morreu e não tem mais que lavar a roupa dela”. Eu seguia fazendo de tudo para dar conta: aquilo era minha diversão, minha vida: jogar na cara amarelada e barbuda do patrão doente que eu estava ali, forte, sacudida, com doença apenas na alma triste de tanta falta do Oscar. Uma tarde, lavando a louça do almoço, ouvi no rádio que o Patrão havia ligado: “o governo decidiu arrendar a lagoa da fazenda do Patrão para oferecer água a quem não tinha”.
- “Filhos da Puta! Sabem, os desgraçados do governo, que não quero arrendar merda nenhuma”, berrou o patrão, desta vez saindo da rede com a antiga rapidez de homem são.
Terminei de lavar a louça e me despedi.
- “Até amanhã, seu Anselmo.”
- “Inté”, respondeu nem bem se dignando a olhar para os meus lados. E continuou a falar sozinho: “Desgraçados, querem tirar minha água para oferecer aos merdas dos seus eleitores; que se fodam: bondades com minha água é que não vão fazer.”
Fui para casa e sob o sol escaldante, sem uma nuvem no céu, me peguei assoviando a Saudades do Matão. Manhã seguinte, também: alguma coisa me fazia assoviar Saudades do Matão enquanto lavava as louças que sobraram da janta, enquanto pendurava a roupa lavada no varal, enquanto ajeitava, sob a sombra da aroeira, a rede do Seu Anselmo, toda manchada e fedida de suor, para ver se aliviava um pouco aquela catinga por demais de ruim. No rádio, dia seguinte e seguintes, a notícia era a mesma: decisão tomada pelo governo era a de desapropirar a Lagoa, tirar sua cerca em volta e dar água a quem quisesse: era para se cumprir a lei. “Filhos da puta, desgraçados!”, xingou, pulou da rede e desligou o rádio. Espreguiçou forte, enfiou o chapéu de couro na cabeça, pegou a espingarda e dirigiu-se para a Lagoa, com a intenção de defender suas águas.
Terminei o serviço, arrumei as louças na prateleira, peguei minha trouxinha e me pus a caminho de casa. Era outro dia em que, sem nenhuma santa nuvem no céu anunciando chuvas, eu, independente de minha vontade, meu pus a assoviar a Saudades do Matão. O jeito foi a polícia chamar, na capital, Lindomar e Sebastiãozinho, seus filhos; Seu
Anselmo pai endoidara, não mais comia, teimando em ficar dia e noite encostado na aroeira, espingarda às mãos, para, dizia mal humorado entre os dentes, “defender o que era seu pela justiça de Deus e dos homens”.
Os filhos o levaram, vestido com camisa de força, para um hospício na capital; decidiram, também, que eu seria paga para tomar conta da casa onde, quando criaças, sobre minhas costas, brincaram de cavalinho. A polícia retirou os arames que cercavam a lagoa, agora de todos. Foi também a polícia quem avisou do telefonema do Seu Tonico, me avisando de seu estado de saúde. Então resolvi vir: vendi um porco, duas galinhas, arranjei, com isso, o dinheiro das passagens, peguei o ônibus e estou aqui, ao seu lado, Mariquinha, rezando por você que logo, logo estará junto do meu Oscar.


terça-feira, 17 de novembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: A história de Durvalina


A preguiça triste de entender o mundo anda a me perseguir, parecendo não querer mais se desgrudar de mim. Não tenho forças sobre ela, que anda a me dominar, e, ainda bem, que o sol penetra forte sob as flores amarelas do ipê, aquece minha cabeça e meus ombros neste frio mês de agosto. Vou dividir, penso, estes últimos seis cigarros do maço de Continental com o Orozimbo, que chega em seu terno marrom, camisa azul com o colarinho puído, os punhos encebados e a gravata preta cobrindo o peito magro.
Começamos a fumar e leio para Orozimbo:
“– Cemitérios gerais
onde não só estão os mortos.
- Eles são muitos mais completos
do que todos os outros.
- Que não são só depósito
da vida que recebem, morta.”
Terminei a leitura e nem perguntei a Orozimbo se havia gostado. Sabia que a resposta seria um NÃO, assim mesmo, com letras maiúsculas. Sabia também, que tomaria rápido, de minhas mãos, a Antologia Poética, do João Cabral.
E foi mesmo o que aconteceu: em troca me passou sua Brochura com o Duque de Caxias enfeitando a capa.


MARIQUINHA PRECATA CONTA A MUDANÇA DE DURVALINA PAR O SERTÃO DO CEARÁ.


E nada do tatu-galinha aparecer para me levar de volta à luz. Assim me restou ficar andando e andando pelos fundões escuros do cemitério. Lá embaixo continuava úmido e dava pena dos anjinhos: espirravam muito os pobrezinhos, creio que por terem seus pequenos pulmões mais sensíveis ao frio e à umidade.
Depois de boas conversas com amigos mortos recentemente e outros nem tanto voltei para o cantinho da Mariquinha Precata que é onde mais gosto de ficar para conversar e ouvir suas histórias.
- Conte mais de sua irmã Durvalina, Mariquinha? pedi.
- Conto, Orozimbo. Mas você não acha que esta história da Durvalina está muito comprida, parecendo “O Direito de Nascer”?
- Você escutava O Direito de Nascer, Mariquinha? Gostava?
- Gostava muito. Não perdia um capítulo na Rádio Nacional. Assim que ia começar a novela eu ia ao alpendre, desrosqueava para apagar a lusinha vermelha, sinal de que eu estava ocupada em minha profissão de puta. No horário da novela não atendia. Naquele horário, só tinha uma vez na semana, e acho que era nas quintas feiras, que vinha o Seu Tonico me usar. Ele dizia que era a única hora que sua mulher, a Dona Alice, com os ouvidos e a mente grudados na Rádio Nacional, o deixava livre. Mas, veja bem Orozimbo, era já antes tudo combinado: deitava com ele, aceitava ele em minha cama para fazer uso de mim, mas com o rádio ligado na novela. Aí eu fingia movimentos e sons mas a minha atenção mesma, estava toda no Albertinho Limonta, em sua voz doce, linda. Seu Tonico terminava seus prazeres, enfiava sua calça de linho, punha o dinheiro do pagamento em cima do criado mudo e eu continuava a ouvir O Direito de Nascer e só acordava daqueles sonhos quando acabava o capítulo; aí sim levantava, me lavava e voltava ao alpendre rosquear e acender a pequena luz: a vida continuava, agora sem o Albertinho Limonta e a luz vermelha acesa era o sinal que estava livre para prestar meus serviços a outro freguês.
- Danada você Mariquinha...
- Mas Orozimbo, não vamos perder o assunto da história de minha irmã Durvalina, agora toda casada de papel passado.
Como ia te dizendo, e já te contei outra hora, lá se foi minha irmã Durvalina e seu marido, o peão João, cuidar da fazenda do patrão Sebastião, no sertão do Ceará, bem longe, muito longe. Pois foi ela, a Durvalina, quem me contou que gastaram mais de uma semana em cima do lombo de cavalo e do banco da carroça com a mudança, até a Fazenda Santa Generosa. A carroça, puxada pelo burro Zeloso, estava carregada: mais de um saco de farinha de mandioca, uns dois sacos de arroz, carne de sol salgada e seca, feijão, dois corotes de água, a trouxa com as roupas e as tralhas de cozinhar e comer; de vivo, na carroça, dois porquinhos, duas galinhas e um galo índio. Ao lado, curioso com a mudança, ia o Vinagre, cachorro de estimação do João, muito ensinado e ia também o Pangaré, cavalo grande, muito importante, alazão, acostumado com as lidas de gado. Durvalina e João viajavam mais tempo na carroça, outras horas iam montados no Pangaré e andavam também a pé quando o terreno era plano, sem morros e subidas fortes; mas a pé era mais de manhã, quando o sol castigava menos.
Chegaram na Fazenda Santa Generosa e se acomodaram, inicialmente, em uma tapera de pau a pique, à beira do morro do Chapéu, perto do córrego de Santa Luzia: descarregaram a carroça, soltaram o Pangaré, os porquinhos e as galinhas, armaram suas redes e ajeitaram a taipa do fogão.
Vida nova, longe de tudo e de todos.
João ia cuidar de mais de duzentas cabeças de gado, todas branquinhas, orelhas compridas, cara de assustadas com seus enormes olhos negros. Também roçou pasto e preparou a roça para a lavoura de mandioca, e ajudou Durvalina a bulir e remoer a terra para plantar a pequena horta, nos fundos da casa, perto do córrego. Durvalina, cuidava dos porcos, das galinhas, capinava e plantava a horta.
De noite eram amores, ela me disse. Era hora, também, ela me disse, de escolher os nomes dos filhos que viriam: João o dos meninos e ela das meninas: Romualdo, Cícero, Carlos, Paulo, Reinaldo...Rosa, Virgínia, Deolinda, Ana Maria...“Quantos filhos você quer ter, Durvalina? Eu quero pelo menos uns seis: três meninos e três meninas”, cochichava ao pé do ouvido, João. “Também quero muitos filhos, João. Até uns oito eu quero. O que Deus mandar eu aceito” respondia, também, com o hálito quente ao ouvido do marido. E dormiam pensando na família que teriam , no barulho e no choro das crianças, nas preocupações com seus estudos. “Teremos que voltar, Durvalina, aqui não em escola”. “Tem tempo, quando for hora a gente resolve, João”. E Durvalina voltava para sua rede, agora para dormir mesmo.
O primeiro São João passaram lá mesmo, sós, na Fazenda Santa Generosa. Ano seguinte àquele não: resolveram passar o São João na antiga fazenda. Aproveitaram para ver os parentes, dançar na festa de São João e Durvalina consultar benzedor famoso daqueles lados:
- “Porque não me embarrigo de filho, seu Eliseu?”, perguntou Durvalina.
- “Vocês tem tentado sempre? Faz quanto tempo?”, pergunta sério o benzedor Eliseu.
- “Afora os dias da regra, sempre, todas as noites Seu Eliseu?”.
Seu Eliseu receitou uma raizada e a esperança voltou.. Voltaram para a Santa Generosa: na garupa do Pangaré, Durvalina carregava cortes de chita, um chapéu novo do João e duas garrafas com a raizada.
- “Pedro, Fábio, Luís, Márcio....” dizia João. “Marta, Cristina, Lúcia, Aparecida...” continuava Durvalina; esta era a, de sempre, conversa dos dois abraçados em uma só rede, naquelas noites na Fazenda Santa Generosa.
No outro São João voltaram ao Seu Eliseu. “Só pode ser praga! Jogaram praga e secaram seu bucho, Durvalina. Pode ser coisa da patroa, de inveja. Procure Sinhá Benedita, negra velha que desmancha estes nós de mau-olhado. O meu saber termina aqui.”,
Na garupa do Pangaré, desta vez, Durvalina levava cortes de chita e novelos de linha grossa, dúzia e meia de velas brancas, uma dúzia de velas pretas, das grandes, um terço, ramos de cipó cabeludo: receita da Sinhá Benedita para acabar com o mau olhado que a patroa havia jogado no bucho de Durvalina, secando-o.
Resolveram prometer que dariam aos filhos nomes de santos protetores: “Antônio, José, Benedito, Pedro....Aparecida, Luzia, Isolda, Maria...”
- Me cansei Orozimbo. Você me desculpe ma cansei, por agora, quero contar mais não. Outra hora: passe aqui.
- Ta certo Mariquinha, vou ver se acho o tatu galinha por aí...assim que der volto para saber o resto
.

sábado, 7 de novembro de 2009

A BROCHURA DO LOUCO OROZIMBO: A história de Durvalina



Tempos de uma preguiça triste.
Cansado com a rotina do trabalho, descontente com o pouco ou nenhum entendimento das exigências da vida, agrada-me sobremaneira o sol, os cigarros e o silêncio da pequena praça. Para compreender a existência e a convivência neste mundo talvez, só mesmo, páginas e páginas do escritor já morto, cigarros fortes - desses sem filtro - e a companhia de um louco: o Orozimbo.
- Está sorumbático? pergunta Orozimbo enquanto estende a mão para o maço de Continental.
Ofereço-lhe o cigarro, pego outro e com o mesmo palito de fósforo acendo os dois.
Tragamos forte.
Vou ler um trechinho para você, Orozimbo:
“Não compreendo você – disse Hans Castorp. – Simplesmente não compreendo como alguém possa viver sem fumar. Priva-se, por assim dizer, do que há de melhor na vida. Em todo caso lhe escapa um prazer magnífico. Quando acordo pela manhã, já me alegro com a idéia de poder fumar durante o dia, e quando tomo uma refeição, já penso em fumar depois. Sim senhor, posso dizer, com um pouco de exagero, que como apenas para ter uma oportunidade de fumar.”
- Ota vida boa! fala Orozimbo soltando a fumaça pelo nariz e pela boca enquanto toma de minhas mãos A Montanha Mágica, de Thomas Mann, do qual havia lido o pequeno trecho.
Imediatamente me oferece desta vez não a brochura com a figura do Duque de Caxias na capa, mas duas folhas de papel pardo escrito a lápis.
- Rascunho ainda, falta passar a limpo, me disse.


MARIQUINHA PRECATA CONTA A HISTÓRIA DO CASAMENTO DE DURVALINA

Saí da moradia da Mariquinha Precata no lado dos pobres do cemitério e fui visitar o lado dos ricos. Cumprimentei o Dr. Eduardo, advogado famoso, que respondeu ao meu bom dia com sua voz de trombone:
- Boa noite!
Aqui, no fundão do cemitério, sempre me perco e nunca sei se é dia ou se é noite.
Está muito úmido e os probientes espirrando por causa da friagem: deve estar chovendo muito lá em cima, penso enquanto continuo a caminhar. A vontade de ouvir histórias e de palestrar me leva de volta ao lado dos pobres. Lá encontro a Mariquinha Precata encolhidinha em sua morada: magra, pele enrugada, mãos quase azuis de tanto frio.
- Bom dia Mariquinha!
- Boa noite Orozimbo!
- Me explique Mariquinha, agora aqui é dia ou noite?
- Aqui é o sempre, Orozimbo. O eterno! Desencarnei à noite, então é noite.
Queria prosas mais amenas.
- Me conte mais da Durvalina?
- Conto sim, gosto de contar...onde eu parei da última vez, se lembra?
- Lembro sim. Você parou quando sua irmã Durvalina tinha trabalhado na cozinha ajudando a servir o almoço e viu, nas mãos do patrão, o anel que enfeitava a mão que, à noite, em sua rede, tocava e alisava seus seios, seu ventre e tirava sua camisolinha de algodão....lembrou?
- Pois é claro que me lembro Orozimbo. Pois então, depois foi assim:
A vidinha de Durvalina continuava no normalmente. De dia continuava sua prática obrigatória de lavar roupas, tratar dos porcos no chiqueiro, buscar água na mina e cuidar do Sebastiãozinho e do Lindomar.... Agora seu descanso, de ficar só consigo mesma, começava depois que o patrão, no início da noite, antes de ir para a cama com a patroa, passava em sua rede para bolir com ela. Só depois é que dormia de verdade, descansada, alegre em sua solidão.
Foi aí então , em uma semana de lua nova, destas de total escuridão, a noite escura como breu chegando mais cedo tornando o dia mais curto que aconteceu o seguinte: naquele início de noite escura, impossível de alguma coisa se ver, Durvalina se viu desvestida de sua camisola de algodão e as mãos do patrão tatearem seu corpo com uma fúria maior e suas pernas serem abertas; daí foi que sentiu um peso enorme sobre si, uma respiração descontinuada, ofegante e quente aquecendo de calor seu rosto e uma forte dor queimando seu ventre adentro. Aquilo tudo só sossegou depois que gemidos balbuciados de dentro do corpo enorme do patrão inundaram a tulha onde estava sua rede.
Dormiu.
Manhã seguinte acordou com os risinhos de Rosa e de Rita:
- Doeu? perguntou Rita.
- Doeu, mas foi bom, respondeu Durvalina.
Passou todo o dia com dor forte no corpo, no ventre, temerosa da outra noite que viria.
Acostumou-se.
Foi daí também que percebeu que a patroa, que até lhe dedicava minutos de afetuosa conversa, virou-lhe a cara. Rosa e Rita evitavam falar com ela mesmo na hora do almoço ou quando lavavam a louça. Só Sebastiãozinho e Lindomar continuavam a lhe exigir as mesmas brincadeiras e cuidados.
A festa de São João estava para chegar. O mastro, feito com um tronco de guatambu, com a bandeira de São João em seu topo, enfeitava o curral; os galhos do guatambu foram cortados de modo a facilitar que laranjas maduras fossem enfiadas por todo o mastro; bandeirinhas de papel colorido cruzavam e descruzavam os moirões do curral. Tudo muito bonito.
No baile dançou com Oscar, moreno alto e forte, peão de confiança do patrão. Sentiu, enquanto dançava que seu corpo e seus seios, eram forçados, carinhosamente, a se aproximar do peito forte do peão. E foi assim que dançou e dançou. Sentiu, enquanto dançava, a mesma respiração ofegante e descontinuada sair do peito de Oscar; só que agora via o rosto, sabia quem respirava, quem apertava carinhosamente seu corpo frágil contra o peito forte.
Terminado o baile alojou-se em sua rede e dormiu sem ter sido tocada pelo patrão, cansado e bêbado da festança e do baile.
Por aqueles dias duas coisas mais aconteceram.
A primeira foi que ouviu, enquanto cuidava do Lindomar e do Sebastiãozinho, berros chorosos da patroa em conversa com o patrão:
- Não quero puta aqui em casa, ainda mais cuidando de meus filhos. Deus me livre! Livre nossos filhos dela, lhe imploro de joellhos.
A segunda coisa foi uma conversa com Oscar.
O patrão havia comprado uma outra fazenda longe dali, lá pelos lados de Assaré, e queria que ele fosse lá, cuidar de tudo como peão principal:
- Vou mas quero você junto. Quer casar comigo?
- Oscar, não sou mais moça.
- Sei. Te amo, Durvalina.
E lá se foi, feliz, a Durvalina, mulher casada de papel e tudo com Oscar, importante peão principal da Fazenda da Esperança, pro sertão do Ceará.
- Estou contando muito devagar, Orozimbo? Quer que eu me apresse nos relatos, pule coisas menos importantes, pequenos detalhes?
- Não Mariquinha...estou gostando de ouvir, de saber da vida de Durvalina, respondi.
- Ta bom, mas por agora chega. Cansei. Está muito frio, deve estar chovendo até canivete lá por cima. Outra hora conto o resto.