Muito barulho em Canudos: os ganidos dos cachorros, os
berros da criança pedindo as tetas da mãe ocupada em lavar roupas sujas nas
sujas águas do Vaza Barris, os resmungos sofridos e lamentosos dos velhos com
seus reumatismos e o cantar esperançoso da mocinha de peitos duros, empinados: uma
mistura de sons nos ouvidos acostumados ao silêncio da vida de vaqueiro, orelhas
mergulhadas no sertão a escutar um berro aqui outro acolá da vaca mojando, um
distante mééééémé! do cabrito trepado nas pedras do morro e ali, na vila dos
Canudos, era aquela musical barulheira, posso dizer, e aquilo encantava: me fazia
sentir mais vivo e acendeu dentro do peito uma esperança que – minha pouca
inteligência – eu não sabia qual era, mas era uma boa esperança de gentes, de barulhos
e de cheiros; era como se eu tivesse, agora, vivendo nas festanças uma feira de
gado ou em uma embriagada vaquejada. Gostava daquilo.
Quando estava no segundo dia em Canudos, Estevo reuniu
cinco cabras fortes e ordenou que era para eles, mais eu, construir uma tapera
para eu morar enquanto estivesse por ali e fui ainda cedinho, o sol escondido
no vermelho horizonte, conhecer a data que tinha escolhido: era uma tripa de
terreno, dava de fundos para o Vaza Barris, de vizinhança com outras infinitas
taperas cobertas com sapé, com escuras paredes de pau a pique desenhando tortas
ruelas; e ali levantou-se a minha tapera: quarto e cozinha misturados, duas
janelas e o vão para a porta de entrada fechada nos inícios por um cobertor
mode vedar a claridade da lua durante a noite e a do sol - e dos curiosos
olhares do Bentinho, este sempre a andar pela vila na busca de novidades e dar
os recados das novidades ao Conselheiro - para os quentes dias de calor em
Canudos: ficava pouco por lá dentro: gostava mais das ruas e do vazio de
construção que sobrou frente à branca igreja, acocorar perto da enorme cruz de
madeira, imaginando lá dentro da igreja o Conselheiro e as beatas e o Bentinho
que era o diácono do Conselheiro para as liturgias religiosas e seu ajudante de
ordens, tão poucas ordens, dizia Bentinho: o homem pouco come, banho poucos e quase
nunca troca a sua muda de roupa, uma bata azul comprida, de tosco algodão,
encardida, sebenta nas alturas do pescoço e nas mangas, santo homem. Santo
homem? seria o velho e magro Conselheiro, rosto vincado e tingido de uma cor de
amarelo que fazia lembrar rosto de defunto, que deus me livre e guarde de
pensar aquilo; mas criei coragem e enquanto ajudava a subir as paredes da
tapera para perguntar – voz baixa – para o Anor do Quinquim, um curandeiro que
conhecia os segredos das drogarias das raízes e das folhas e das frutas das
matas, e como dizia antes perguntei baixinho para o Anor se ele achava que o
Santo Homem Conselheiro seria mesmo capaz de vaquejar as nuvens do céu, ajuntando
as pequenas brancas nuvens e encurralando todas elas em um curral de tábuas
construído pela força da fé de sua imaginação, realizando com seu pensar um
enorme curral de negras nuvens, aquosas, líquidas nuvens e fazer despencar
águas para molhar o sertão e inundar as margens brejentas do Vaza Barris? seria,
você acredita mesmo Anor, o Conselheiro tão fortemente assim milagroso?; e
Anor, que diziam na vila ser por demais afeminado respondeu sem pestanejar:
duvido não, tenho certeza: vi com estes olhos que um dia a terra vai comer o
milagre que o homem fez quando as tropas do mal quiseram arrebentar com Canudos
e sua igreja e seus crentes: o homem orou aos céus e nossos homens avançaram e
entocaiaram os macacos do governo, meteram fortes medos nos macacos assobiando
que nem coruja nas madrugadas escuras, imitando o trinar do guizo da venenosa
cascavel e saindo dos buracos feitos a enxadão no meio das espinhosas caatingas,
berrando e gritando o nome de Jesus – Viva Nosso Senhor Jesus Cristo e a Santa
Igreja Católica Apostólica Romana - e amaldiçoando feias palavras contra república,
e avançaram e mataram os covardes macacos que não tinham em seus corações a fé
e o Conselheiro salvou Canudos e se deu uma grande festa frente da igreja:
Bentinho tocou forte o sino, foguetes comprados em Bendengó de Baixo foram ao
ar aguardando a chegada da coluna dos homens comandados pelo negro Pajeú –
armados de bacamartes, espingardas, pistolas e facões e cacetes de berimba –
que chegaram vitoriosos na vila, cansados mas alegres em suas feições e foram festejados
por todos e abençoado pelo Conselheiro, por isso nunca duvide dos poderes de
quem está a serviço do bem; e daí já se tinha formado uma roda em volta do Anor,
todos largaram o que estavam a construir em minha tapera, deixaram de lado, por
um pouco de tempo, suas obrigações, tiraram os chapéu da cabeça e ficaram a
escutar: todos, ali, silenciosamente quietos: o Manoel Quadrado, o Chico Ema, o
Macambiras, parecendo até que toda a vila se silenciou para escutar a flautosa
voz do Anor.