segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

AS TRÊS MARIAS–XII–FINAL: MELOPÉIA NO CORETO DA VILA!

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E a vila em todas suas casas e suas ruas e seus quintais respirava ares de novidades, muitas, diminuindo o marasmo e o calor que chegava forte em outubro, se preparando as terras e as pessoas para as chuvas e trovoadas fortes que caem nos meses de novembro e que chegam até março, dia 19, com suas enchentes, as enchentes de são josé, que encharcava, umedece fundo a terra para o plantio do feijão das’água e o milho, para as pamonhas e os curaus de janeiro, janeiro das bandeiras do divino ! Novidades quais? o que que se falava – cochichado ao pé do ouvido – nas casas e nos bares e mesmo na igreja, mas aí só antes da cerimônia da missa ou da reza ter seu início?

Primeiro se falava que Moacir voltou de carro novo, trocou o Ford por uma baratinha Chevrolet, vermelha, veloz, barulhenta, com partida na chave e não na manivela, e esta explicação técnica era do seu Ítalo, mecânico da cidade durante o dia e músico à noite, afamado sanfoneiro e maestro de sua banda que animava os bailes da vila e das vizinhanças; e dona Olinda, sua mulher, italiana gorda, peitos enormes, cozinheira afamada pela massa de seus capeletes e por fazer cabrito ao molho, que falou: ‘cê viu, Ítalo, que na frente da baratinha veio a Cidona e que Didinha e dona Lourdes vieram no banco de trás, junto das malas, aí tem coisa; e ele, sisudo, não tive esta ‘tenção, vi não.

Mas, de fato, na viagem de volta de São Paulo, no carro novo de Moacir, presente do pai, a professora Lourdes e Didinha voltaram no banco traseiro, decisão pensada e conversada e, sendo justo, decisão mais tomada pela professora que sabia estar assumindo, na vida do amigo Moacir, um novo papel. E houve momentos na viagem de volta – quando a estrada tinha enormes retões, onde dava para ver o horizonte lá longe, o fim marcado pelos pés de eucalipto e pela serra pintada de azul claro, e então – nos retões da estrada - era que a enorme e branca mão direita de Moacir, se sentia livre das ocupações de dirigir e então tomava a pequena e negra mão de Cidona e se acariciavam os dedos e os olhares dois se encontravam no espelho retrovisor e se melavam de carinho, sorrisos pequenos de felicidade nos lábios, quão boa estavam achando que era a vida!

E de Didinha, o que falavam? Nada diziam: por mode da respeitosa quietude de Cidona, de Moacir e de dona Lourdes não esparramou pela vila os ocorridos em São Paulo, os passeios na garupa da bicicleta de Natalino, seus encontros, seus amores e Didinha continuava a ir à missa com seu véu negro de viúva, de mulher, não mais moça virgem, que agora era, vestidos coloridos, sorriso nos lábios, rezando e pedindo, no confessionário, perdão pelos seus pecados e o padre: está arrependida?; na maior parte do tempo não, seu Padre; e ele: reze três pai nossos e uma salve rainha e está perdoada minha filha, deus é pai, e Didinha entrava na fila dos que iam comungar o santo corpo de cristo.

E não se pode esquecer, o contador seria injusto, do tanto e tanto que se falava, na cidade, da ópera que seria apresentada no coreto, Cidona fantasiada de rainha, Moacir, loiro, bonito, deixando de lado sua seriedade severa, seu sorriso curto – mostrando pouco os dentes, nada de gargalhadas – fantasiado de amarelo, de conde romano, cantando com toda sua goela, a veia aorta quase saindo fora, grossa, olhos cerrados, sonhando o futuro com seu novo amor, cantando – tenor - os desenganos do amor; e era muito o que se falava da ópera que na noite de dez de outubro seria encenada no coreto da cidade, os moradores levando cada qual a sua cadeira para poder ver e ouvir sentado, no conforto, o jardim cheio de cadeiras, gentes silenciosas, mesmo as crianças: psiu! quieto, vamos escutar a ópera; a vila se fazendo de importante, orgulhosa a vila até mais de quando suas mulheres recolheram ouro para o bem do brasil, isso na revolução de trinta e dois, quando homens da vila foram mortos pelos mineiros; agora não, nada de mortes, revolução constitucionalista, tristezas: ópera com canções em outra língua na voz de Cidona e do Moacir de tão bonita voz, será porque que ainda não cantava no coro com Cidona e frei Elias: salmos, kyries, no coro da igreja!

Afazeres! Muitos: a vila parecendo um carreirão de formiga cabeçuda, andando, cortando, correndo. A música, tal como as esperadas e temidas chuvas de dezembro, inundando a cidade, os raios ciscando o céu azul, iluminando – de noite – os caminhos, o branco das casas, soando forte: são gerônimo, santa bárbara a virgem, proteja-nos, nada de pegar em faca, garfo e espelho, isso chama raio, deus livre e guarde, quatro montinhos de palma benta – secas, benzidas não domingo de páscoa – acesas nos quatro cantos das casas, tomara que no dia da ópera não chova, ainda é outubro, as chuvas veem mesmo, para valer, em novembro, do dia de finados pra frente. Seu Alfredo, dono da A Elétrica, que vendia lâmpadas e rádios, passava os fios para os alto-falantes reverberarem os sons e as vozes, a vitrola ligada, testando os discos e resolveram chamar o Nenê do seu João que era mestre em por a agulha no lugar certinho da música, adivinhava a ranhura do disco elepê, sem fazer crequi! crequi! só ele mesmo, capaz de tirar e por a agulha com tanta precisão, e ele dizia que era por gostar muito de ouvir música e Natalino, que veio de São Paulo, responsabilizou-se por desenhar os panos para cobrir o fundo do coreto, formar um palco, e desenhou, no pano de colher café uma floresta negra e verde, escura, floresta dos druidas, diferente da floresta que margeava o rio Grande, que tinha onça parda e pintada, na floresta dos druidas, Natalino disse que havia gnomos que são parecidos com o saci Pererê, só que tem duas pernas, será que tem mula sem cabeça na floresta dos druidas, mas não tinha coragem de perguntar, isso podia desviar a atenção do Natalino no seu desenho bonito e Didinha trouxe, hora do almoço, marmita com angu e frango e na vila todos diziam que os dois se amavam, que iriam se casar, Didinha indo morar longe, e quem cuidaria do Pitoco e do Nego, e quem é que iria bordar as toalhas, os panos e toalhas das igrejas e as batinas dos padres do bispado de Guaxupé?

E Cidona disse para o Moacir que os enjoos continuavam, que não era culpa da viagem, das curvas da estrada, da velocidade do carro e que a boca salivava salgada o tempo todo, que o sangramento não veio; será? acho que sim; contou para sua mãe?; não, inda não; melhor assim, espere que eu te levo amanha no médico da Santa Casa e se ele confirmar acho que o correto é no domingo, hora do almoço, a gente falar; será que é menino?; quero menina, disse ele ao mesmo tempo em que acariciava a barriguinha de Cidona e dizia: filho meu!

No dia mesmo da ópera no coreto, o jardim cheio de gentes da cidade e até mesmo, tal qual na história de Manuelzão que veio para sua festa o João Urugem, que vivia nos baixios, na gruta da serra, se assemelhando um bicho do ato, para a ópera da vila, apareceu - quem convidou? como é que ficou sabendo? - quieto, roupas sujas, Diquinho, o que mais sabia contar histórias e vivia, molambento, de adjutórios, e Diquinho sentou-se na grama, cabelos negros, olhinhos miúdos, fedia um pouco por falta de banho e então ficou um pequeno vazio perto dele, ninguém gosta de fedor, embora todos gostassem das histórias contadas por Diquinho, magro, feio e foi Moacir que iniciou os cantares: “Fala mais baixo. Outra, sim, Adalgisa. Tens de vê-la...” a voz enchendo a praça, todos atentos, o céu estrelado, lua quarto crescente, não é lua de chuva e o povo não sabendo direito a hora de aplaudir ficava no aguardo das ordens de Natalino, que segurava a mão de Didinha, os dois sentados em duas cadeiras coladas uma na outra, na outra fila de cadeiras tinha a professora Lourdes, sozinha agora, mas de onde sentava se via que ela podia ver meio de esgueio o seu amado Vicente que estava com a família, e se olhavam e, escondidos, se viam e então chegou a hora de Cidona cantar: “Vozes sediciosas, vozes de guerra, quem ousa elevá-las perante o altar do deus?...” e o povo da vila, emocionado com tanta beleza, não esperou as ordens de Natalino e aplaudiu, muito e Natalino seguiu o coro das palmas, feliz e soltou a mão de Didinha e bateu palmas, bem forte, plac plac plac.., e Didinha sorria e aplaudia a voz da amiga e pensava no segredo: era ela e Natalino que seriam os padrinhos de batismo da criança que Cidona tinha ali na barriga pequena, vai ser uma bela criança: negra e branca, com certeza será alta, os dois são grandões e a minha criança quando um dia eu tiver como será, o Natalino baixinho, eu fortona, bunda grande e redonda e ele magrinho, acho que será uma bela criança, branquinha, e vai ser amigo do filho de Cidona, com certeza.

A ópera chegando ao fim! Moacir cantou: “A tua fogueira, Norma, é a minha; mais santo - começa nela o eterno amor” e Cidona : “Pai, adeus” e o povo aplaude, todos querendo cumprimentar, ver de perto a Norma e o Pollione, Cidona e Moacir, tocar no vestido brocado de Norma, na camisa de seda de Pollione; chegou a ter certo empurra empurra, cada qual querendo tocar, cumprimentar, dizer parabéns! bravo! e Lourdes com os olhos marejados abre caminho e abraça os dois, Natalino se junta ao seu Ítalo para tirar os fios do som, Nenê tira o elepê da vitrola, encapa o disco e as pessoas vão se dispersando, o céu continua estrelado, a vila vai dormir.

A praça do coreto fica vazia, sobra apenas Diquinho que procura um banco para dormir, já é tarde, na torre da igreja o sino badala dez vezes, e no banco Diquinho murmura baixinho, entre os dentes: findou a história das três Marias! E já com os olhos fechados, tanto sono, teve tempo de pensar: pois então, acabou-se a história, morreu a vitória!

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

AS TRÊS MARIAS–XI–AMORES EM SÃO PAULO!

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Na volta do Teatro Municipal Moacir dirigia devagar e apontava os importantes: olha ali o Edifício Martilnelli; ali é o Mosteiro de São Bento e seu famoso relógio; na rua o menino gritava: olha o jornal, olha o Estadão, olha o jornal! o relógio badalou doze vezes: um badalado gravemente sonoro e os homens engravatados, na rua, conferiam se seus patacões, corrente de prata ou de ouro, marcavam a hora certa? Será? e Moacir encurtou o caminho de volta pelo viaduto Santa Efigênia, o Anhangabaú lá embaixo, os homens vistos tão pequenos andando, fumando seus cigarros.

Chegaram para o almoço. Dona Amélia, sempre prestativa e útil, encaminha as duas Marias para seus quartos – se arrumem logo que o almoço está quase pronto - , e foi para a cozinha provar o sabor do frango assado, do molho do macarrão, enfiou o dedo na jarra do refresco de tamarindo para sentir o gelo e achou que estava tudo bom, sorriu contente e voltou para a sala. Na sala Moacir e Fátima bebericavam licor de jabuticaba, se falavam, narravam as novidades: Cidona e Didinha ficaram surpresas com a beleza do municipal; imagino: é tudo muito bonito, mesmo e você retirou os ingressos?; sim, estão comigo, bem guardados e você continua mesmo teimando em não ir? vai perder uma belíssima apresentação, a orquestra está afiada, o maestro, ainda há tempo...; vou não, Moacir, a festa deve ser sua e de Cidona, penso assim; obrigado amiga, mas você, em nada atrapalharia a nossa festa; vocês, homens, não conhecem mesmo as mulheres: atrapalharia sim, amigo, agora você é da Cidona e não imagina o tanto que estou feliz por sua felicidade. Dona Amélia chega, passinhos rápidos, tec tec tec no assoalho, avisando de sua chegada, sorri e se serve de licor, quero bebericar também, estou feliz por demais com os acontecimentos que ando a adivinhar, novidades, felicidades.

Na mesa, para o almoço, toalha de linho branco cobrindo, talheres ao lado dos pratos, copos para o suco de tamarindo, sobe pela sala o perfume do frango assado, do arroz, do feijão, fumega a travessa de macarrão coberta do vermelho dos tomates, uma folhinha aqui e outra acolá de manjericão, a fome atiçada por tantos perfumes e cheiros, a vontade de encher o prato, mas vamos ser educadas, não vamos fazer feio aqui, cortar o frango com a faca segura pela mão esquerda, é assim que se faz na casa dos ricos, mas está bom demais o macarrão e todos comem e falam e lá fora o sol bate forte, a sombra do buriti desenha seu retrato em cima da grama do jardim, e o pássaro preto e os curiós e o pintassilgo e o canário da terra – cabecinha vermelha - , presos na gaiola, cantam e cantam, orquestradamente, sem maestro.

E Didinha lembrou do Nêgo, seu pássaro preto e do vira-lata Pitoco que ficaram na sua casa por conta do pai de Cidona e se entristeceu, bateu saudade de seus companheiros de vida, e seu eu vier morar aqui será que posso trazer os bichinhos, largue de pensar besteira, pode ser que o italiano faça o que fez comigo com todas as mulheres que encontra naquela sala cheia de vestidos brocados, e será que com as outras a névoa esconde as poucas vergonhas do anjo da guarda e do espírito santo, e comeu um pedaço do peito do frango e se lembrou que em sua casa, se tira os ossos do peito e põe para secar no varal para jogar: aposta-se e cada um segura em uma ponta e puxa e quem segurar o lado que quebra, que frissura, perde a aposta, e no varal de casa tem mais de cinco ossos do “jogo” secando, esperando, quero apostar com Natalino, quem perder paga e o que você aposta? quero um beijo...pare de pensar besteira na mesa, os outros podem desconfiar. Cidona aceitou a sobrecoxa do frango que dona Amélia serviu, segurou a faca com a mão esquerda cortou pequenos pedaços e delicada comia com prazer, estava faminta e Moacir olhando carinhosamente, melado para ela, faça assim não, me envergonho, mas Moacir, orgulhoso, feliz, teimava em desobedecer e continuava a olhar umidamente, penetrava em seus olhos e em seu corpo, ia até o fundo de seu ser e enxergava no fundão um brilho de felicidade que arrodeava a alma, o coração, parecia as auras dos santos da igreja – nossa Senhora, pecado pensar assim, será? e ela resolveu, também, olhar dentro dos olhos do Moacir e enxergar lá dentro, ver se aquela luz aquecia seu corpo de amor, felicidade deve ser isso, pensou e na mesa, todos, em silêncio, talheres postos sobre a toalha, reverenciaram aquele momento de celebração de amor.

Natalino, cumpriu o prometido. Chegou cantarolando a estrofe do coro dos homens da Cavalaria Rusticana, era sempre assim, ficava com a ópera na qual estava trabalhando na cabeça e por onde ia ficava a cantarolar ou assobiar coros, árias - era assim que seu coração dizia ao mundo de suas alegrias – e também, outro costume, era de, em cima da bicicleta, ficar tocando a sua campainha – trim, trim, trim ... buscando o ritmo da música; chegou e estacionou frente ao portão sua Monark Sueca, nova, freio de mão, amarela, frisos platinados, pneus balões. Toca a campainha da casa de Moacir e enquanto espera Didinha cantarola:

“...noi stanchi riposando dal lavoro

a voi pensiano,

o belle, ochi-di-sole

o belle, ochi-di-sole,

a voi corriamo...”

E Didinha chegou ao portão: saia godê, preta, blusa com mangas compridas, um elegante bolsinho com suas iniciais bordadas em azul, rosto brilhante, sem pó, batom vermelho desenhando os contornos da boca e ele: vamos passear, suba aqui, apontando a garupa da bicicleta e ela se constrangeu: será que posso? será que se usa mulher andar na garupa de bicicleta aqui na cidade grande, na vila só se vê menina mulher na bicicleta, na garupa dos pais ou dos irmãos, será que vou cair...Natalino percebeu sua indecisão e orientou: senta aqui, de lado, segure no selim e em minhas costas, não tem perigo, ajuste bem a saia para não pegar nas correntes, vamos; e lá se foram: ziguezagueando rua afora, a trim! trim! trim!, os pneus balão amaciando os paralelepídos negros, e a canção “o belle ochi-di-sole” no ar e as buzinas dos carros e na São João um Ford preto, limpo, bonito, atravessa a rua e freia em cima da bicicleta, buzina alto e o motorista aponta o dedo e xinga: merda de italiano; e Natalino responde: fare in culo! e Didinha, amedrontada com tudo aquilo, cruzou as suas duas mãos pelas costas de Natalino, que sentiu o calor de seu rosto, e, esperto, freava subitamente a bicicleta com força e o rosto de Didinha colava em suas costas quentes, os dois: suas costas e o rosto branco e liso de Didinha; para onde estamos indo?; e ele: para minha casa, quer ir?; sim, quero.

E Didinha passou a pensar e a pedir que a névoa que encobre os pecados pousasse forte sobre ela, encobrisse seu corpo forte, suas pernas redondas, seus seios fartos e firmes que ansiavam por amor, e amor deve ser isso, esse desejo forte, encoberto pela névoa, escondido do olhar do anjo da guarda e do espírito santo, e será que depois o anjo da guarda volta a tomar conta de mim e canta baixinho, rosto colado nas costas de Natalino:

“...Que beijinho doce

Foi ele quem trouxe

De longe prá mim

Se me abraça apertado

Suspiro dobrado

Que amor sem fim...”

A bicicleta sai da Avenida Nove de Julho e entra a esquerda em uma ruazinha estreita, as casas enfileiradas – parede-meia – as crianças da vizinhança abanando a mão e pedindo a Natalino que desse uma voltinha com elas em sua bicicleta e ele hoje não, amanhã, e parou a bicicleta frente ao número 671 e lá deixou a bicicleta, tomou a mão de Didinha e convidou-a para entrar: entre a casa é sua...

sábado, 30 de novembro de 2013

AS TRÊS MARIAS–X–TEATRO MUNICIPAL!

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Foi em uma tarde que tio Olímpio, o que mais sabia contar histórias - me lembro como se fosse hoje - o sol se pondo, já quase todo escondido, e pelo vão da porta da sala dava para se ver, bem lá no fundão, o Morro do Chapéu parecendo um santo da igreja, um morro vestido com uma aura de vermelhidão, eu sentado sobre seu joelho direito, olhos fixos em seus olhos cinza, brilhantes, e ele me disse: Landim – pois então, já fui Landim um dia, tenho que contar isso para meus netos - o difícil de contar histórias é que as coisas acontecem em um montão de lugares, com um montão de gentes e de sentimentos, tudo ao mesmo tempo, e a gente só dá conta de falar uma coisa por vez, e aí destrincha a história, os acontecimentos, tudo dividido como logo você vai aprender, quando for para a escola, a difícil conta de dividir, pois a de somar e de multiplicar são mais fáceis, as continhas mais difíceis são, primeiro, a de dividir e depois a de diminuir...

Pois era o que acontecia no Teatro Municipal: um montão de coisas acontecendo ao mesmo tempo: músicos entrando no fosso da orquestra para o ensaio, Didinha e Natalino no subsolo, na sala onde ficavam os figurinos e cenários dos cantores de ópera, e Moacir com Cidona, nas frisas, para ela conhecer o lugar de onde, no sábado, assistiriam Cavalaria Rusticana, regida pelo italiano Túlio Serafin, que conhecia Natalino dos tempos em que o figurinista morava em Milão e trabalhava no Scala...E, em todo o ar, em todos os espaços do Municipal o som dos instrumentos sendo afinados, no palco os músicos conversando entre si: não te disse que o meu Corinthians seria o campeão do Centenário, falava alto, em bom tom, todo orgulhoso o trompetista; ganhou roubado, contrapunha Geraldo, oboísta dos bons e nisso chega o spalla e o silêncio se faz e se ouve, claramente, o Lá no oboé e todos os instrumentos correndo atrás dos 442 Hz...

No subsolo, sala dos figurinos e cenários , Natalino e Didinha sozinhos, cercados de vestidos bordados, roupas de camponeses, chapéus, batinas, perucas, e os olhos de Natalino fixos em Didinha – amo esta mulher, será minha – e Didinha sentindo ondas percorrer seu corpo redondo, seios fartos, quadris largos – camponesa – e Natalino tomou suas mãos, segurando-as entre as suas e ela feliz com as mãos macias de Natalino, sem calos de puxar enxada e machado, era outro o tipo de labuta exercia Natalino, magro, olhos azuis, cabelos cacheados, loiro, dentes brancos, rosto quadrado, e os olhares foram se descobrindo, se vendo por dentro e Didinha resolveu deixar-se levar por aquela onda que foi formando uma névoa que escondia seus desejos do olhar dos anjos e do espírito santo e Natalino aproximou seu corpo, pediu – ou ordenou, não se sabe o que foi – um beijo e os quatro olhos se fecharam, as duas bocas se uniram e Didinha – protegida pela névoa que impedia que o seu anjo da guarda enxergasse seu pecado, cerrou ainda mais os olhos e sentiu-se abraçada, forte e docemente abraçada e lembrou do medo que todos na vila tinham do abraço do tamanduá, forte, as garras nas costas, onde sentia as sedosas mãos de Natalino, e se viu protegida como no peito de um tamanduá bandeira, a língua de Natalino buscando formigas em sua boca e os corpos se apertando, ajeitando aqui e ali para maior conforto e melhores contatos, as mãos de Natalino – delicadamente nervosas - percorrendo suas costas, tudo alisando e suas mãos quiseram tatear os loiros cabelos ondulados ...dois corpos num só, a névoa protetora densa, deus do céu que é isso, meu amor. A porta da sala se abre e deixa entrar uma claridade, desfaz-se a névoa, interrompe o idílio, entra Maurício que fala em voz baixa: Natalino o maestro está chamando; porca la miséria, maestro de merda e Didinha sentiu-se livre do abraço de tamanduá, abriu os olhos, mas ainda cega, tudo escuro, e Didinha, obediente, sentiu-se guiada pelas mãos de Natalino até Moacir e Cidona.

Moacir e Cidona, acomodados em duas aveludadas cadeiras da frisa, a orquestra embaixo, os músicos afinando seus instrumentos, o spalla dá-se por satisfeito com a afinação senta-se e todos ficam a espera do maestro; Moacir toma as mãos de Cidona entre as suas, o contraste da enorme mão branca com a pequena e delicada mão negra, e os dois se olham, Moacir vai apresentando a Cidona os instrumentos da orquestra: olha o fagote - a tuba e o trompete estes ela já conhecia, já tinha visto na banda da vila, que tocava no coreto onde iriam cantar Norma - o baixo, as violas e os violinos, a suave clarineta, tudo tão lindo e entra o maestro, roupas coloridas, alegre, enérgico, batuta á mão direita, cumprimenta os músicos e os músicos, obedientes, atentos, iniciam o prólogo da Cavalaria e o coração de Cidona se enche de estranha emoção, ameaça subir goela acima, Moacir sente suas mãos trêmulas, lança um doce olhar procurando acalmá-la, tanta emoção, e foi a vez então do seu coração subir garganta acima, taquicardias amorosas, ele viu o sangue subir pescoço acima, avermelhar o rosto branco e dos olhos de Cidona – uma princesa negra – vertem lágrimas grossas, Moacir se apressa em pegar o lenço e o maestro pede que a partir daquele momento todos deveriam sair do teatro, teria que conversar com os músicos e Maurício, gerente da orquestra, abre a porta das frisas e saem: Cidona protegida pelas de mãos de Moacir dá a mão a Didinha até a saída, e lá fora do teatro, na rua, o sol ofusca as vistas, apaga-se os sons dos instrumentos e se ouve o roncar do motor de um carro que buzina pedindo passagem ao bonde, lerdo, que recolhe passageiros.

Caminham, os três, por uns cem metros até o carro; Moacir, cordial abre as portas e ajuda as mulheres a se acomodar e pega a manivela para dar partida: gira forte a manivela, ouve-se o tom, tom, rom, rom do motor ir se firmando até tornar-se um brrrrrrr contínuo que acorda as duas passageiras que se olham e pensam, que logo, logo poderiam, no quarto, contar uma para a outra o acontecido e provar, ter certeza, que não tinham sonhado, que tudo havia mesmo ocorrido: felicidade por demais de grande e o Ford 29 parte macio...

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

AS TRÊS MARIAS–IX–CIDONA E DIDINA EM SÃO PAULO!

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A noite chegou!

E era apreciada do alpendre da casa dos pais de Moacir! Todos confortavelmente sentados em poltronas de vime, formando uma roda e no meio da roda uma pequena mesa com licor de jabuticaba e um bule de café fumegante; uma brisa úmida balançava as folhas do buriti - folhas enormes, parecendo leques de abanar o rosto – que ressoavam nervosas, pedindo descanso, queriam dormir...Dona Amélia - com seus profundos olhos azuis e sedosos cabelos brancos - convidou Cidona e Didinha para entrar: vamos deixar os homens aqui fora, e ágil, silenciosa, foi mostrando o quarto onde cada uma dormiria: estes dois aqui são os melhores, pertos do banheiro, eu sei das necessidades noturnas das mulheres e é só atravessar a sala, vou deixar a luz no banheiro acesa; nos quartos Cidona se encantava com a “pera” na cabeceira da cama, podia apagar e acender a luz sem se levantar, coisa boa de conforto, pensava e Didinha ria baixinho ao ver os lençóis brancos, alvos e o colchão macio, imaginou seu corpo afundado ali, quentinho, queria dormir.

Na rua não mais barulho de carro, a brisa havia acalmado as folhas do buriti e só se ouvia - aqui e ali - o cri! cri! de um grilo, pensava que aqui em São Paulo não tinha grilo, que era coisa da roça, pensou Cidona e também deve ter pensado Didinha, as duas em quartos separados, gêmeos, vontade de ficar conversando só as duas, sem ninguém por perto, falar das novidades, mas sabiam que não era hora para isso, outras horas teriam para falar e desfalar de tantas novidades de São Paulo, as pessoas já recolhidas ao silêncio dos quartos, qualquer barulho incomodaria, e se der vontade de ir ao banheiro? tem que atravessar toda a sala, será que os pés não vão fazer ranger - crec crec - as tábuas do assoalho? se carecer de ir ao banheiro mijar vou descalça, abro a porta bem devagar para não fazer barulho...

Às dez horas, São Paulo, silenciosamente dormia.

Dia seguinte de muitas novidades!

As duas -- cada uma em seu quarto - prontas, vestidas, penteadas aguardando um barulho qualquer na sala anunciando que os hospedeiros estavam acordados, coisa mais feia e deseducada é acordar e chegar à mesa antes dos anfitriões, o estômago de Didinha roncava de fome, Cidona refletia o rosto negro no espelho e se achava bonita: dona Amélia estava sendo tão gentil, pensava, nem parece tão rica. E foi então que pisadas no assoalho quebraram o silêncio, rangidos no assoalho e os passos decididos estancam frente à mesa posta para o café da manhã: era o Moacir, banhado, perfumado, brilhantina segurando os cabelos loiros, terno de linho branco, gravata azul, alegre, o perfume do café e do pão de queijo misturando com o perfume que exalava de seu corpo banhado, limpo e ele se vê cheio de felicidade e canta:

“Bebamos nos alegres cálices

em que a beleza floresce,

e a fugitiva hora

embriagar-se-á com volúpia.

Bebamos com o doce frêmito

que o amor provoca,

pois que esses olhos ao coração

diretos vão”

E nem bem termina de cantarolar a ária de Alfredo Germont, em La Traviata, se põe a gritar: acordem, acordem todos: é uma ordem do faminto Alfredo! Obedientes dos quartos saem as duas - Didinha e Cidona – e do corredor se houve os passos firmes de Dona Amélia e seu marido e a sala se inundou com uma sinfonia de bons dias: Bom dia! Muito bom dia! Dormiu bem? Que o dia seja belo! Sim, será! Bom dia, um belo dia...

A mesa da sala coberta por uma toalha branca de linho, o café da manha servido por duas empregadas com roupas especiais e turbantes na cabeça, sorridentes, café com leite, pão de queijo e, estranho para Cidona e Didinha, frutas: laranjas, melancia e abacaxi, será que não vai fazer mal chupar fruta tão logo cedo, mas comeram por receio de fazer feio; Moacir falava e falava – eufórico – contou dos planos do dia: ainda naquela manha iriam ao Teatro Municipal recolher os ingressos para a ópera que iriam assistir e lá também se encontrariam com Natalino, cenógrafo e figurinista italiano, que havia deixado Milão para trabalhar em São Paulo; explicou: era ele – Natalino – o responsável por criar, desenhar os cenários e as roupas das cantoras e cantores para as encenações e Didinha estranhou: homem costureiro?

Na mesa Moacir sentou-se ao lado de Cidona e, vez ou outra, sob a toalha de linho branco, segurava sua mão, alisava, acariciava e Cidona , por ser negra não conseguia corar o rosto de vermelho, mas tinha os olhos aflitos, seu pai havia recomendado: nada de intimidades na casa dos outros, minha filha! e ela até querendo acatar a recomendação do pai e soltar a sua mão negra e fina da branca e grande mão de Moacir, mas estava tão bom e esperava – mãos unidas - um tempinho a mais só, e assim continuava a sentir o afeto que aquela grande branca mão lhe passava e as ondas que dela vinham e inundavam seu corpo; Dona Amélia cuidadosa: mais café? obrigado, para mim basta! respondeu Didinha, achando que “para mim basta” fosse a mais elegante das respostas; pão de queijo cheiroso, crocante, o miolo derretendo, fazendo ligas - como puxa - com o queijo misturado com polvilho.

Logo depois foram, no Ford de Moacir, para o Municipal e lá cada uma se encantava com as diferentes belezas do Teatro: os dourados nas frisas – será que é ouro mesmo, de verdade? cochichou Didinha; e Cidona colocou a mão frente à boca para responder baixinho: deve ser, viu só que todas as cadeiras são cobertas de veludo vermelho, coisa mesmo de rico, quanta beleza; aquela imensidão de novidades deixando-as estáticas, mudas, os olhos não acreditando no que via, doces taquicardias acelerando os corações: o sem fim de tanta beleza, as escadas em curva, de mármore, e Moacir – papel de guia - entusiasmado, cumprimentava de longe um com as mãos, dizia muito bom dia para outro e abraçou uma loira cantora e apresenta Cidona: essa é minha namorada, que quase desmaia, assustada com o “minha namorada”, deus do céu em que mundo eu estou a viver.

Para ir ao subsolo ver as roupas e encontrar Natalino desceram uma escada escura, passaram por uma porta até encontrar uma sala ampla, um pouco escura, cheirando falta de claridade, um pouco de mofo: como fantasmas a repleta de corredores com vestidos coloridos armados em cabides de madeira, roupas masculinas, perucas brancas com cabelos cacheados outras negras com longas tranças, prateleiras com espadas, corpetes, saias das mais diferentes cores, enfeitadas com belas pedras e Didinha se entusiasmando com a beleza dos bordados, com o capricho na confecção, com as cores – melhor e mais alegre bordar estas roupas coloridas – passeava pelos corredores, entre tantas roupas, querendo sentir se o perfume dos cantores e cantoras permanecia nas roupas e Cidona se vendo vestida com um vestido lindo, vermelho, bordado com linhas prateadas, formando flores...

Natalino, o italiano responsável pela criação de todas aquelas roupas, entrou mas o entusiasmo das duas e o encantamento de Moacir impediu que os mesmos percebessem sua presença silenciosa: vou tossir baixinho para não assustá-los...Não, melhor não, resolveu que o melhor era aproveitar o mágico momento - sua presença desapercebida – e fica a olhar os três, e quando seus olhos pousaram em Didinha assustou-se com tanta beleza e pensou esta mulher tem que ser minha, eu a quero e o amigo Moacir, que conheceu em Milão e ele considerava um dos responsáveis para sua vinda para o Brasil teria que perdoá-lo, pois ele lutaria com todas as suas forças para ter aquela mulher: lembra a Sofia Loren em sua beleza meio selvagem, seios grandes, ancas generosas, os olhos menores, mais oblíquos, lindos, pernas fortes sustentando longas e redondas coxas, deus do céu, que mulher; sempre sonhava com a beleza de Sofia Loren, achava a Gina Lolobrígida e sua cinturinha de pilão linda, maravilhosa, mas não despertava nele o afogueamento que sentia agora ao ver Didinha que lhe lembrava Sofia Loren. Didinha, talvez tocada pelas elétricas ondas que os olhos de Natalino emitiam, foi a primeira a perceber sua presença do italiano e o viu como um homem baixo, magro, loiros cabelos ondulados, o pequeno bigode enfeitando o rosto quadrado, um rosto claro com minúsculas veias azuis bordando as bochechas vermelhas, olhos verdes, mãos pequenas, braços e pernas curtas, o longo tronco magro, costelas à mostra mesmo debaixo da camisa de algodão: bom dia, sou o Natalino; e todos acordaram do encantamento em que estavam a viver e Moacir tomou as iniciativas: amigo Natalino, como vai o meu bom italiano? Essa é Cidona, minha namorada e aqui sua amiga Didinha, que bordará as nossas roupas para a apresentação de Norma no coreto da cidade e Natalino ao saber que Didinha não era a amada de seu amigo Moacir sorriu forte, gargalhou e ficou a misturar bons dias com bondiornos, os seus olhos verdes, teimosos, não via vestidos, se esqueceu do amigo Moacir e de sua negra namorada – ainda bem, seria muito ruim perder sua amizade, mas que fazer: amigos amigos, amor à parte, esta mulher será minha...

terça-feira, 29 de outubro de 2013

AS TRÊS MARIAS–VIII–A VIAGEM!

2009 Caminho da fé 102
Moacir, naquela manhã ensolarada de início de setembro, ajeitava que ajeitava, no bagageiro do Ford 38, as suas malas – dele e da Fátima - e as duas trouxas de roupas, uma da Didinha e a outra da Cidona – estas duas caprichosamente enroladas em lençóis de algodão, até encontrar um cantinho para o latão com gasolina extra; longa seria a viagem até São Paulo, mais de oito horas, muita poeira, estrada asfaltada apenas de Campinas a São Paulo, agora um pouco antes já com máquinas e gentes a forrar o chão de piche e pedregulhos, enegrecendo a Anhanguera, almoçar em um posto a beira da estrada, comer galeto no espeto, beber guaraná gelado e tempo por demais para pensar: sempre que guiava o Ford o pensamento voava longe, ritmado pelo barulho do motor, as árvores e as vacas passando depressa pelo vidro fechado do carro. Estava bem, sentia-se como um adolescente, o Moacir: na verdade não sabia se se sentia como um adolescente: nessa fase de sua vida era considerado uma exceção: todo correto, não fumava escondido, poucas espinhas no rosto e ao contrário do que seus amigos comentavam na escola, mesmo dormindo com as mãos no ventre, acordava com o pijama limpo, sem gosma...o que será? e foi então, que agora, velho, aos quarenta, qual um adolescente, andava a acordar com o pijama sujo: oníricos sonhos noturnos, beijos e mãos e corpos se tocando: Cidona, seu amor, sim, Cidona e não a sacerdotisa Norma: era com Cidona que sonhava: seus seios pequenos - ovais e perfumadas mexericas - suas longas pernas, sua pele negra, o ventre ossudo, os lábios grossos e grandes...era Cidona o seu amor, concluía nas noites insones, e deu de gostar de ficar insone, com tempo para pensar e sentir o que antes não havia sentido. Até então a música que tocava sua vida era uma música matemática, engenhosamente bonita, bachiana, sem o recheio emocional, humano de Brahms era o que lhe dizia o professor de filosofia e amigo desde São Paulo, amante de ópera como ele, seu confidente: “aproveite Bach; se Brahms não lhe toca: cultive a alma, o espírito” e ele cresceu e amadureceu cultivando a alma e o espírito com livros e mais livros, óperas, amigos, família e sem sentir o gosto da paixão, da deliciosa loucura que passava agora a viver.
O Ford deixava uma nuvem de poeira, sacolejando na estrada de chão: tudo ficando para trás: as montanhas, os pastos, brancas casas com currais, pequenas vilas e cidades...no banco da frente ele, Moacir cuidadoso com a direção do Ford e Fátima: de guarda-pó, óculos de sol, lenço na cabeça para proteger os cabelos da poeira, empertigada, as costas apenas tocando o encosto do banco; viajava feliz por ainda naquele dia, à noite, veria e abraçaria seu filho, falaria com ele, ouviria sua voz a dizer: virei anarquista, mãe! estudante de direito, o livro do código penal brasileiro sobre o sofá-cama: sou anarquista, mãe! Lindo o meu filho, a cara do pai: olhos puxados, cabelos negros, esguio, corpo atlético, lábios e olhos da mãe, um belo homem.
No banco de trás Didinha e Cidona: as duas excitadas com a novidade de ter, pela primeira vez na vida, atravessado o rio, a ponte enorme, de ferro, bonita; o rio lá embaixo, espumante na correnteza, pedras negras, e as duas caladas, timidamente envergonhadas se viam – pela primeira vez na vida – a transpor o rio, a enxergar o depois das montanhas que cercavam a pequena vila onde viviam, pouco se incomodando, as duas, com a poeira, com o vento que entrava pelo vidro aberto...novos ares, novas terras; chegariam a São Paulo dos arranha-céus, da Mesbla – uma loja onde se encontrava desde uma agulha até um navio, se fosse verdade o que ouviam no reclame da Rádio Nacional, antes da novela O Direito de Nascer, deve ser enorme essa loja, deus do céu, será que existe mesmo? - , iriam – promessa do Moacir – ver o relógio do Mosteiro de São Bento badalando as doze pancadas do meio dia, e poderiam, com sorte, encontrar com os moços da vila que para lá tinham partido, na busca de empregos e trabalhos nas indústrias; será que em São Paulo tem uma praça para se fazer o “footing” pois se tem será lá, com certeza, que vão encontrar o Milton, talvez o José Antônio, este um congregado mariano, que foi para a capital em busca de trabalho: descascava batatas na cozinha de uma fábrica, homem forte descascando batatas, trabalho de mulher; mas era assim agora: a vila se acostumando a perder seus homens para a cidade grande, será que voltariam? nas festas das quermesses de São João ou na missa do galo, no natal, vinham e diziam que voltariam para casar e que retornariam de vez, para sempre, depois de velhos e ai sim – aposentados, com tempo de sobra - pescariam dourados no rio, gambevas no córrego do Seu Geraldo, caçariam pacas nos brejos e levariam os netos para conhecer as furnas, as grutas. Era a terra de agora que não segurava mais seus homens, ou eram os homens que não se sentiam mais presos, enraizados em sua terra mãe? mudanças, muitas, deus do céu!
No posto de gasolina, depois de Pirassununga, Moacir parou o carro: as mulheres foram para os banheiros cumprir suas necessidades, lavaram os rostos empoeirados, beberam água na torneira e Fátima puxou prosa: estão gostando da viagem?, sim, estamos, muito, responderam as duas ao mesmo tempo; muito pó; sim, o carro corre muito; estão com fome? não senhora, fome não; eu estou morrendo de fome, sou capaz de comer um boi sozinha; e todas riram. Foram para o restaurante do posto: mesas com toalhas xadrez, cheiro de churrasco atiçando a fome, moscas das negras zunindo na orelha e as duas pensativas, será que saberemos como portar na mesa, cortar a carne segurando a faca com a mão esquerda, assim que é o correto; estou sim com muita fome, pensava quieta, consigo mesma Didinha e Cidona se alegrou toda quando viu Moacir sorridente, educado, oferecendo o lugar, puxando as cadeiras para as mulheres se sentar, quanta gentileza, parece um anjo de tão belo, loiro, olhos azuis, deus do céu, que vida mais maneira de boa.
Comeram!
Mais estrada e a poeira dos caminhões e carros que vinham de São Paulo obrigavam a fechar o vidro do carro, ficava quente, passava a nuvem de poeira abriam de novo e ai dava para ver melhor os pequenos córregos, casas com currais na porta, gente morando ali, será quem são? Vez ou outra Didinha e Cidona, tomadas de coragem, se olhavam e riam felizes com a peraltice de ir conhecer a cidade grande e se esqueciam da poeira, da sede, do sol e o Ford sacolejava que sacolejava, se inclinava nas curvas, Moacir e Fátima falavam e não dava para escutar direito no banco de trás, será o que conversam? mas estão sorrindo e se estão sorrindo é porque está tudo bem, não estão emburrados, falam do que, os dois? Cidona fechou os olhos e sonolenta esqueceu de pensar: o corpo obedecendo o ritmo do Ford: o futuro a deus pertence e lembrou de seu pai a dizer: não tenha dor de barriga antes de experimentar a melancia, e sentiu saudades do pai, da mãe, só agora, com mais de trinta anos, seria a primeira vez que dormiria fora de casa, e ainda longe, mas nada de dor de barriga antes de experimentar a melancia; e Didinha pensava nos bordados que faria em São Paulo, acordada, olhos bem abertos, sem sono, curiosa, esperando chegar a cidade grande.
A cidade de São Paulo!
Todas as ruas asfaltadas, negras, calçadas e casas e lojas, tudo emendado, gentes andando, carros buzinando, quanto carro e nunca terminava a cidade, será que é tão grande como o mar, que não se enxerga do outro lado - tão grande – até que uma hora o carro foi parando, Moacir colocou a cabeça fora da janela, medindo a calçada, manobrando com cuidado . Parou o carro rente a guia: uma casa que era um palacete, nunca tinham visto igual, grades de ferro cercando o jardim, no portão uma senhora de cabelos brancos, olhos infinitamente azuis e bondosos, vestido rosa claro, sorriso de orelha a orelha: Moacir meu filho, fizeram boa viagem? estão cansados, com certeza! Fátima, filha querida, me abrace, saudades...e veio vindo da sala, atravessando o jardim florido, um elegante senhor, de terno, gravata, chapéu, alto que abraça o filho e junto com o senhor um jovem bonito, alto, cabelos negros que sem mais falar envolve Fátima em um apertado abraço, ergue-a do chão, forte, a mãe no ar a gritar, fingindo aflição, mas gostando por demais: pare filho de deus, me ponha no chão, está doido!
Uma festa na calçada!
Didinha e Cidona saem do carro, desconfiadas, tímidas: para fazer fugir a vergonha e a timidez – o que estavam a fazer ali, deus do céu – se puseram a ajudar Moacir no trabalho de retirar as malas, suas trouxas e são interrompidas por Dona Amélia: deixe isso de lado, vamos entrar, Moacir me diga o nome de nossas visitas e Moacir: esta é Didinha, bordadeira das melhores e amiga de Cidona, esta a cantora da qual lhe falei. Dona Amélia e seus olhos azuis, seus pequenos e gordos braços, mãozinhas pequenas, unhas feitas – vermelhas -, abraça carinhosamente Cidona e Didinha, toma-as pelas mãos, orientando-as casa a dentro: vamos para o quarto que ajeitei para vocês, espero que gostem...e Fátima gritava: até amanhã Dona Amélia: amanha almoço aqui com vocês, quero ver meus pais.
Até amanhã!
Até amanhã!

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

AS TRÊS MARIAS–VII–SERÁ QUE DEUS SE ESQUECEU DE MIM! MUDANÇAS E NORMA, A DEUSA NEGRA!

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Didinha anda cada dia mais triste, mais desolada, desacorçoada; em uma horinha de um pouco mais de ousadia por dentro decidiu criar coragem de pensar: será que deus, com tantas cidades e gentes grandes para olhar, se esqueceu da gente aqui nesta vila tão pequena, perdida no meio da serra, nos sem fim do cerrado e será que quando dispõe de um tempinho e dá uma olhadela de virada de olho aqui nesta vila tão pequena olha primeiro para os maiores, deixando seus filhos pequenos ao deus dará, sozinhos em sua solidão, em sua desesperança de viver; pecado pensar assim, deus ama todos seus filhos, ele é pai e você, Didinha, tem que amenizar sua condição de viúva, se vestir com roupas mais alegres, a cor de fora das roupas vai aquecer o de dentro, foi o que escutou de Frei João no confessionário, três pais nossos de penitência, o corpo do senhor engolido, comungado e sua alma a continuar desaquecida, fria, sem alegrias, deus do céu, isso é vida?
Pitoco com seus olhinhos negros, brilhantes enxergava o desacorçoo da dona e abanava o rabinho depressa, latia baixo, lambia os dedos do pé de Didinha, encontrou uma frieira boa de se lamber, e enquanto pensava que foram os cachorros que lamberam e curaram, com suas línguas, as chagas de são Lázaro e eu quero sarar Didinha, quero ouvir seu cantar baixinho, ver seus dentes no sorriso. Nego, na gaiola um pouco suja por descuido da dona reclama da água suja, sem trocar de dois dias e da falta que sentia do mingauzinhho de fubá na latinha...o jeito é cantar, trinar os bicos e as asas: sei não, a vida tem jeito?
Os bordados para o bispado: toalhas, batinas, casulas, túnicas, estolas, dalmáticas, toalhas frontais de altar: ponto cruz, recheado, ponto atrás, repolego, laçada dupla, ziguezague, ponto mosca e muito mais em cores sóbrias apesar do intenso uso do vermelho – cor do sangue de cristo -, calo no dedo indicador de tanto bordar, o tempo passa enquanto bordo, não tenho fome de comida e de outras que andam a mordiscar e por a ferver meu corpo, ainda bem que chegaram mais encomendas agora do bispado de Guaxupé, os bordados de Didinha ganhando fama.
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Maria de Fátima, naquela noite de quinta-feira, esperou pelo seu amor na sala, vestida e não como costumeiramente: deitada no quarto de dormir, cama de casal, lençóis brancos de algodão, peignoir de renda, seios à mostra. O que foi? estranhou Vicente, ávido por aquele corpo conhecido, amado, inesgotável de sonhos e surpresas nas noites de amor. O que foi? não se sente bem? está naqueles dias? Fátima sorriu: não, nada de mais, estou bem meu querido, mas tenho que conversar, falar, pressinto mudanças. Vicente abraçou a amante pelas costas, beijou sua nuca, acarinhou os cabelos negros e as mãos desceram pelos seios ainda firmes, redondos...Fale! ; assim não consigo, me arrepia! disse dengosamente sorrindo. Beijaram-se: mas um beijo menos fogoso, as línguas por demais respeitando os escuros da caverna alheia: melhor era sentar e falar.
Moacir está apaixonando, Vicente; nunca imaginaria isso, apaixonado por quem? sempre o vi como um anormal homem assexuado; por Cidona, a negra cantora, para ele uma princesa africana e devo te dizer que estou feliz com isso, muito feliz por imaginar Moacir com uma vida mais inteira, mais humana, menos cerebral; como descobriu, foi ele que te falou? sim: ele me disse que tudo começou nos ensaios para a apresentação da ópera no coreto, quando passou a sentir por Cidona uma irresistível atração, sentir o que nunca sentido por mulher nem homem nenhum, algo, segundo ele ancestral, animal, mas me parece feliz aos quarenta e tantos anos o amigo Moacir ao descobrir seu corpo reagindo a um corpo feminino de maneira animal; bem e daí? vão se casar? e nesse caso, em os dois se casando, ela vai morar aqui com vocês? ainda não falamos sobre isso, mas quero com todas as minhas forças contribuir para a felicidade de Moacir e caso seja necessário - se o futuro exigir – consentir com a anulação do nosso casamento, jamais consumado, uma vida de dois irmãos, mas isso ainda não foi conversado e o Moacir está por demais ansioso com o que acontece quando se vê a sós com Cidona nos ensaios para a apresentação da ópera Norma no coreto, agora em novembro, para ele tão importante como se fosse uma apresentação no Scalla de Milão!
E então, naquela noite de quinta feira não se ouviram, no quarto, fortes gemidos, não se viram corpos nus roçando na cama, os lençóis amassados, não se estalaram lábios com longos beijos e os corpos não experimentaram a doce sensação de ficar docemente inerte, em coma, cansado do longo exercício do amor.
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Moacir canta, comovido:
“A tua fogueira, Norma, é a minha;
mais santo
começa nela o eterno amor!”
E Cidona:
“Pai, adeus!”
No alto falante da a vitrola a voz dos druidas, das sacerdotisas, dos guerreiros e dos bardos em coro:
“...e purifique o templo
Maldita sejas na hora da tua morte!”
Quero e preciso te beijar, Cidona, meu amor! e Moacir toma a sua deusa negra nos braços e beija-a, alucinado, sensual, jamais havia pensado em como um beijo transforma uma pessoa, sentiu em todo o corpo sensações nunca antes sequer sonhadas e a sua deusa negra oferecendo a boca, os grandes olhos cerrados, seu frágil e débil corpo entregue aos braços de Moacir ou do Pollione?; ambos sem saber, ela não se sabendo, naquela hora de amor se era Cidona ou Norma: mas sabia que morria, que estava a ir para a fogueira com o amante Pollione,  pai dos seus filhos e Moacir não se sabia se travestido de Pollione ou um novo Moacir que nascia nos fogos da fogueira sacrificial...
Outro longo beijo, os dois se sentindo despudoradamente adolescentes, encantados com o que ocorria em seus corpos, ele com o pênis ereto, firme, avolumando as calças de linho e ela sentindo úmida sua calcinha e seus seios pequenos sendo tomados por concêntricas elétricas ondas, surtos de vertigem, e os dois corpos – juntos, à beira da fogueira do sacrifício – em êxtase a exigir e a oferecer ternura, calor, vida!
Moacir interrompeu o abraço, tomou as mãos de Cidona carinhosamente e ajeitou-a em uma cadeira e se pôs a falar:
Estou fora de mim: quero gritar, me sinto doido, louco, preciso falar senão saio a gritar pelas ruas, berrando para a lua, para as estrelas, isso é felicidade; Cidona, minha deusa negra, urge te contar: semana que vem temos que ir para São Paulo, ver as nossas vestes para a apresentação, já tomei as providências necessárias, o figurinista do Teatro Municipal, Natalino, orientará nossas escolhas, e Fátima irá conosco...; Cidona, sentada na cadeira, silenciosa, ereta, costas coladas ao espaldar, sem saber se o que ocorria era sonho, interrompe: Moacir, pelo amor de Deus, não posso, o que irão falar de mim? viajar para São Paulo, com um homem casado? não, não posso!; Fátima e Didinha irão conosco: falei com Natalino por telefone e resolvemos que Didinha bordará nossas fantasias, nossas vestes para a apresentação; você falou com ela, Moacir?; não, mas Fátima me disse que poderá falar ou você, enfim o que achar melhor, iremos no domingo, te amo, te quero; te amo também Moacir, que loucura a nossa, deus do céu, vida virada aos avessos!
Mas foi mesmo Cidona que falou com Didinha. Vou sim, mas tenho que levar umas toalhas do bispo de Guaxupé para terminar o bordado; leve amiga, eu te ajudo!; nada disso Cidona: enquanto vocês ficam por lá, a passeios e nos bem-bons da cidade enorme, cheia de prédios e arranha-céus eu bordo as toalhas...minha vida tem que continuar! obrigada Didinha, você indo meus pais ficarão mais sossegados, a cidade vai falar menos...deus do céu, tanta coisa; e Didinha falou baixinho, comovida: agradece a deus e reza Cidona: vida é isso e não a que estamos acostumadas a levar.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

AS TRÊS MARIAS - VI - A CIGANA LÊ A MÃO DE DIDINHA, O CANTO DE DULCAMARA E A ÓPERA NO CORETO!

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Em um dia qualquer, de um setembro de poucas chuvas, vindo de onde ninguém sabe, do nada, talvez, uma tribo de ciganos que foi logo montando acampamento no pasto logo abaixo do muro do cemitério: sem a ninguém pedir ordem ou autorização ergueram uma enorme barraca de lona velha, parecendo circo, de onde entravam e saiam as mulheres com saias coloridas, braços repletos de braceletes de lata, pesados brincos nas orelhas, saias de cores fortes: verdes, vermelhas, blusas brancas, cabelos negros repartidos ao meio e algumas com lenços coloridos encobrindo a cabeça e os longos cabelos caindo nas costas, abaixo do lenço, e também saiam e entravam na enorme barraca de lona homens em roupas quase normais, e nas ruas da cidade ficavam oferecendo pequenos e grandes tachos de cobre para fazer doce de cidra ou de leite ou de goiaba; na cidade o que se dizia era que eles eram ladrões de cavalos e de mulas, e que também roubavam crianças e também entravam e saiam da enorme barraca de lona desbotada, surrada, as crianças ciganas: olhos negros ou verdes, enormes, cabelos lisos, caca escorrendo pelo nariz abaixo e a língua vermelha, esperta lambendo a caca e enfiando boca a dentro, pelados, fazendo as necessidades onde tinham vontade e os cachorros comendo as porcarias, limpando o chão, parecendo urubus na carniça.

E a cidade – carente de novidade -: as mães brigavam e ameaçavam os filhos com castigos e varadas de marmelo se teimassem em desobedecer e fossem ver o acampamento: não vai não, já disse e repito: perigosos, roubam crianças; e os homens, quase todos, falavam da esperteza dos ciganos em pegar uma mula velha e manca e, magicamente, transformá-la em uma mula nova de pelos sedosos e marcha picada sem mancar e que semana depois de vendida, por preço que o comprador imaginava ser um achado, retornava ao desajeito mancar com a pata dianteira, a trotear e não mais andar na marcha picada e, pior dos piores, voltava ao maldito costume de empacar, pouco se ligando pela urgência do cavaleiro em chegar logo na venda, ainda antes do escuro do anoitecer, medo de assombrações que apareciam na matinha e da mula sem cabeça que soltava fogo pela boca, que vivia a rondar por perto da serra do baguaçu.

Novidade na cidade, os ciganos!

Didinha bordava e bordava as encomendas do bispo: ponto cruz, ponto cheio, ponto atrás: o bastidor de bambu, que esticava o tecido para facilitar o fino trabalho, já brilhava pelo uso, o suor das mãos marcando suas bordas e o dedo indicador da mão direita com um calo da agulha... e o bom é que Didinha de tudo se esquecia nos bordados, não pensava em pecados com o corpo, e até recebeu uns dinheiros do bispo – adiantado – e com ele deu para acertar as compras da caderneta do empório do seu José, e o velho, lápis grosso pendurado na orelha, contente com as notas de dinheiro, mostrou a caixa de bacalhau e Didinha comprou uma peça: dourado, o sal parecendo estrelinhas brilhantes, o rabo escuro: extravagância pura, deus do céu, mas a vontade sobrepujou a razão e Didinha também comprou batata e uma réstia de cebola e um litro do azeite verde de azeitona vendido a granel e foi para casa contente: vou convidar Cidona para almoçar comigo no domingo e ela vem para cá tão logo acabe a missa das nove, depois de cantar no coro da missa dos ricos e eu vou confessar e comungar na missa das seis: preciso de contar para o padre os pecados dos meus maus pensamentos, dos banhos mais demorados e as mãos me desobedecendo, roçando levemente partes intocadas e os arrepios e ondas a tomar conta do corpo, as urgências de sair logo do banho, enfiar rápido as roupas negras, fugir do pecado, das tentações: é assim a vida de viúva, deus do céu, que vida!

Pitoco avançou latindo grave e alto, dentes à mostra e o cotó de rabo fixo, sem tremer feito ventilador, sinal de que estava mesmo bravo e que ia morder as canelas e os calcanhares descalços da ciganinha que ele via do outro lado do portão: cabelos negros, pele morena, lábios vermelhos de batom, sobrancelhas cerradas, grossas, margeando os olhos negros, brilhantes, dentes brancos com uma cárie negra parecendo uma pinta no dentão da frente, sorriso aberto, peitinhos duros querendo sair da blusa de renda amarela, a saia de cima com a mesma cor dos tachos de bronze, e de que cor seriam as saias que usava por baixo daquela, porque o que as mulheres da cidade diziam era que as ciganas usavam um monte de saias, três ou quatro, uma em cima da outra e que tinham o costume de não usar calcinha e quando tinham necessidades simplesmente se abaixavam, protegidas pelo rodado das saias e faziam xixi à vista de todos, mas ninguém via nada a não ser a pocinha d’água que ali ficava depois que erguiam o corpo e ajeitavam as saias, alisando o tecido na bunda, puxando as pontas na frente, e continuavam seu caminho; as mulheres da cidade se enciumavam muito, medo dos maridos se enrabicharem com elas, cheias de doenças nas partes; e a ciganinha , sem medo do pitoco, batia palma com as mãozinhas tão pequenas, e Didinha largou o bordado e os pensamentos: pra dentro pitoco, sai! chutou pitoco que esganiçou caimmmmm! caimmmmm! e fugiu para seu caixote, pensando com ele mesmo que na próxima vez que chegasse inimigos na casa que iria deixar entrar e pronto, que andava a apanhar atoa, feito escravo negro e o nego - pássaro preto - que não tinha sido castigado com chute nem com ameaça, calou seu bico quieto na gaiola: melhor calar, pensou e fechou os olhinhos e dormiu.

Fala menina, o que quer? e a ciganinha com voz de soprano: leio a mão, adivinho o futuro nas linhas; quero não, sou católica; não é pecado, não: só leio as verdades do futuro, a senhora oferece o que quiser, não cobro nada; e Didinha sentiu o coração amolecer: os olhinhos espertos da ciganinha, o desvendar o futuro que não conhecia, será que não é mesmo pecado? entre, disse e a cigana – Armenita - ajeitou os cabelos e com passinhos firmes entrou e tomou a mão direita de Didinha, olhou, reolhou e com uma voz doce leu o que via: a linha da vida é longa, saúde muita, a senhora vai viver muito; e Didinha pensava se aquilo seria bom ou ruim, pois se aquilo que vivia era a vida não concluía se queria viver muito ou pouco; e a cigana Armenita leu que a linha do dinheiro estava a fechar, faltaria talvez, mas sobrava um fiozinho de linha, perto da linha do amor, o suficiente para as compras e para uma ou outra esmola; e Didinha: e tem alguma coisa de amor? e a cigana, cerrou os olhos, atenta e correu o dedinho fino em uma linha e disse que era a linha do amor e que uma névoa escura dificultava a leitura e para ganhar tempo e desanuviar a névoa que encobria a linha do amor : ponha na outra mão uma moedinha e continua baixinho: a senhora madame está interessada em alguém ou tem visto algum olhar de homem mais brilhante? e Didinha: não, não tenho; e a ciganinha resolveu mudar de tema e disse: vamos esperar para ver se a névoa desanuvia e leu a linha das amizades, dos medos...mas Didinha queria saber dos amores: veja ai se a névoa já se foi, se está claro, já pus uma moedinha de réis em sua mão; está clareando e vejo um senhor com bengalas em sua vida; e Didinha entendeu que só podia ser o Doutor Olímpio, o agrimensor que mediu as divisas da fazenda do seu pai para realizar o inventário e dos conselhos de seu irmão: o velho está interessado em você Didinha, o homem está bem de vida, viúvo e Didinha não se interessou pelo agrimensor que não fazia percorrer em seu corpo ondas mesmo quando ele, mais ousado, na frente do irmão beijou sua mão ao cumprimentar; e falou para a ciganinha: pule adiante na linha: fora o velho tem mais alguém?; e a ciganinha, viu a ansiedade de Didinha por um amor, e pensou em falsear a leitura da mão, em dizer que via um homem moreno, forte, bonito e com dinheiro a cortejar Didinha, mas que para ler mais precisava de mais uma moeda para limpar as névoas e Didinha se enervou com a falta de amor e de moedas e com o pecado de em vez de pedir a Deus e a Santo Antônio um amor estava ali, meio abobalhada, com a mão estendida a uma cigana pecadora, tão nova e não mais virgem e resolvida retirou sua mão catou no cofrinho de lata a menor moeda de réis, que não dava nem para sorvete, e mandou embora de sua casa a cigana Armenita, ameaçando chamar o soldado Dorival e estumar o pitoco: vai embora cigana dos infernos!

E a cigana se foi e ficou Didinha a olhar sua mão direita: o grande M da vida e da morte em linhas bem traçadas, vida longa, com saúde, e a linha pequena do amor, que saia da linha do meio que formava o M da vida e da morte, pequena, sem conseguir se juntar a outra linha da vida: desamor, sem amor vale a vida ser vivida? e olhava a mão e chorava e o pitoco chegou aos seus pés e ela primeiro chutou – cachorro do inferno – e pitoco latiu caimmmm e fugiu par seu caixote e Didinha foi atrás e catou o cachorrinho no colo, afagou e o nego cantou na gaiola e pitoco, com os olhinhos fechados, agradecia aos carinhos que sua dona distribuía em seu corpinho, não podia ver os olhos chorosos de Didinha, suas lágrimas...

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Sabe Fátima, penso que estes bolinhos de chuva devem ser muito melhor que as “madalenas” do Proust: doces, o açúcar caindo no colo, a massa derretendo no céu da boca, o quente da canela combinando com o chá de erva-cidreira: acho bom demais, não acha?; Gosto muito também; e o melhor do bolinho de chuva junto com o chá de erva-cidreira é fazer voar o pensamento - em mim automático – : à primeira mordida, a boca incha com a massa doce, o calor do chá e o pensamento flui livre, para domínios desejados, alcança a felicidade, foge dos reais do mundo, das obrigações de ser professora, das chatices e teimosias dos alunos, dos ciúmes das colegas...viajo! E Moacir: engraçado, querida amiga, para mim é a música que tem este poder de me carregar para oníricos mundos...Fátima interrompe sorridente: oníricos já é demais querido Moacir, sonhe voando mais rente ao chão, urge sentir quentes carnes se embrenhando, bafos com sabor de erva-cidreira, açúcares nos lábios sendo trocados de boca; e Moacir: invejo sua disposição; sua sede de amor é infinita, amiga!

A conversa corria solta na sala de jantar! O bico do bule com chá esfumaceante inundava a sala com o perfume doce da erva cidreira e na travessa de porcelana o amontoado de bolinhos de chuva – morenos salpicados de açúcar refinado – ia encolhendo de tamanho, mas ainda forrava o chão da travessa os bolinhos deliciosos, doces, sensuais!

Fátima falava de seu amor, dos encontros as quintas, de sua ânsia pela espera e da felicidade do semanal encontro em seu quarto, em sua casa e do duplo fascínio que havia entre ela e Vicente: perdemo-nos um no outro, o mundo foge e nasce uma comunhão ancestral, bárbara e humana em nossos encontros; e Moacir: os médicos, como Vicente, diriam que são os seus feromônios que enlouquecem o amante e os poetas diriam que é o amor que os une tão carnalmente, querida; e já vem você: feromônio? que que é isso? mata? e Moacir: não, não mata mas aleija: é um cheiro hormonal que as mulheres possuem e que atraem os homens, quer eles queiram ou não; sabe Moacir que vejo isso quando Didinha passa: os olhos dos homens brilham, os mais ousados metem a mão no bolso e alisam as partes sonhando com aquele corpo grande e forte; já notei isso também Fátima: impossível aos homens não pecarem, pelo menos em pensamento, à passagem de Didinha; e eu tenho esse perfume que enlouquece os homens? penso que o seu é leve, flutua docemente sobre toda a cidade, como se você sobrevoasse em um aviãozinho teco-teco barulhento e deixasse seu perfume feromônio esparramar-se sobre a cidade, caindo junto com a fumaça do aviãozinho barulhento, envolvendo toda a vila em uma névoa de sensualidade; ficando doido você Moacir?; não, minha querida: esta vila nunca foi mais a mesma depois que você chegou, quer queiram ou não os seus homens e as suas mulheres!

Está escrito, ouça.

Moacir levantou-se e foi até a prateleira com os LPs de suas óperas e ficou - cuidadoso, olhar atento, dedos ágeis – a folhear a coleção de LPs como se folheasse páginas de um livro encontrou o que urgia ler, reler.

Vou colocar o canto do médico Dulcamara, da ópera L’elisir d’Amore de Donizetti. Fez-se um enorme silêncio na sala, se ouviu o barulho do LP saindo da capa com a foto do baixo Cesare Valletti no papel de Dulcamara oferecendo, aos camponeses, o seu elixir:

“.....graças a este específico

simpático, prolífico,

um septuagenário

valetudinário

ainda se converteu em avô de doze crianças....

Comprai-me o meu específico,

Que vo-lo dou barato.

O elixir move os paralíticos,

cura os apopléticos,

os asmáticos, os asfixiados,

os histéricos e os diabéticos;

cura os que sofrem do tímpano,

escrofulosos e raquíticos,

e até dor no fígado

que ultimamente está na moda...”

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No domingo Didinha chegou á igreja quando os sinos ainda badalavam conclamando os fiéis para a missa das seis e foi a primeira da fila no confessionário onde, cabeça coberta pelo negro véu de viúva, confessou seus pecados e rezou – contrita – os dois pais-nossos e as cinco ave-marias, penitências exigidas pelo bondoso Frei João e se sentiu livre e leve para comungar a hóstia santa, receber o corpo de Cristo na esperança de reconfortar sua alma triste e desacorçoada.

Terminada a missa ajoelhou e rezou um pouco mais junto à imagem de São José e pediu paz e o santo advertiu que não via guerra em sua vida e ela mudou o pedido e clamou inteligência para entender a vida sem sentido que andava a levar; o santo calou quieto, sem nada prometer e então Didinha fez o sinal da cruz, benzeu-se e tirou o véu que cobria a cabeça, dobrando-o cuidadosamente enquanto caminhava em direção a sua casa.

O sol brilhava iluminando a praça frente à igreja e Didinha sorriu: lembrou-se de que ia almoçar naquele domingo com a amiga Cidona, que iriam comer bacalhau, e melhor que isso, iriam poder, ela e a amiga, falar e ouvir coisas da vida, dos bordados, dos sonhos: Cidona, a negra cantora de voz doce, tinha se tornado sua melhor amiga.

Cidona saiu da missa das nove, onde cantou o Te Deun no coro, direto para a casa da amiga Didinha: chegou e foi agradando o cachorro Pitoco e ainda sem entrar assobiou forte e limpou a gaiola do nego pássaro preto que se arrepiou todo quando teve sua cabecinha acariciada por Cidona que o imitava em seu trinado alto, melódico. Fechou a gaiola e entrou na sala da casa, abraçou Didinha - dando um sonoro Bom Dia e – bacia no colo - ficaram as duas a descascar batatas e a tagarelar.

Então agora me conte, Cidona, me fale desta história de você cantar uma ópera no coreto da praça? Que é isso? Bem, Didinha, é coisa do Moacir, se bem que agora estou também entusiasmada; mas foi o Moacir, com apoio do Frei João e do Seu Joel, que teve a ideia e estão a planejar uma apresentação da ópera Norma no coreto da praça...Ópera? e o que é uma ópera, Cidona? E Cidona: ópera se parece com uma novela do rádio, é uma história cantada, toda feita com muita música, e os cantores cantam a história; parece uma novela como a que a gente escuta na Rádio Nacional, à noite, – O direito de nascer – só que curta, dura pouco mais de uma hora, e é tudo muito bonito; E Didinha, curiosa por demais: e é você que vai cantar? se for você irei a essa ópera, com certeza, já te disse que sua voz me emociona; sim, irei cantar junto com o Moacir e o Seu Joel irá recitar os outros cantos para facilitar a compreensão dos ouvintes; e é para quando isso tudo? será na primeira quinzena de novembro, em um sábado de lua cheia.

Os olhos das duas brilhavam, excitadas: uma falando e outra ouvindo, comungadas as duas, em êxtase, a sonhar com a inusitada ópera no coreto da cidade. Me conte a história da ópera que vai cantar. E Cidona, radiante: É uma história de amor, Didinha; Norma é uma sacerdotisa de um povo chamado druida, que estava sob o jugo dos romanos. Isso se foi há muitos e muitos anos atrás, penso que pouco depois que Jesus morreu. E Norma se apaixona por um cônsul romano que dominava suas terras e com ele teve filhos. E então chega um dia em que fica sabendo que o cônsul, cujo nome é Pollione, havia sido convocado para voltar para Roma e, pior ainda, descobriu que Pollione – seu amor - iria levar em sua companhia Adalgisa, uma sacerdotisa de seu templo e o novo amor de Pollione que em nossa apresentação será apresentado pelo Moacir; sabe Didinha, Moacir tem uma bela voz e sempre sonhou em ser cantor de ópera, mas onde morava, em São Paulo, tentou várias vezes e não conseguiu e não sei por quê: voz bonita, afinado, bom homem. Mas continuando a história: Norma pensa em matar seus filhos – por ciúme e ódio – chega a se armar com uma enorme faca mas ao ver os filhos deitados, dormindo, não tem coragem o suficiente. E a história termina quando Norma, em uma cerimônia religiosa, resolve sacrificar-se , imolando seu corpo na fogueira e Pollione acompanha-a em seu sacrifício, morrendo os dois; acho melhor não contar tudo em detalhes para, no dia da apresentação, você não se chatear; vai ser uma bonita apresentação: vestiremos roupas vistosas – Moacir e eu – o Seu Joel vai controlar a música na rádio vitrola do Moacir, e instalar alto-falantes no coreto, de modo que toda a cidade possa ouvir.

Que coisa mais maluca de doida, Cidona: nunca pensei em coisa parecida por aqui, mas sabe que é por isso é que gosto de morar na cidade: tem novidades, sorvetes gelados, luz elétrica e agora ópera. Sabe que na roça meu pai fazia grandes festas – fogueiras, fogos, bandeiras – no dia de São João e muitas vezes ia para a festa o cego Beraldo que gostava de cantar as histórias da Donzela Deodora e da Imperatriz Porcina, que eu gostava mais, era a história da mulher de um rei de Roma que mandou mata-la por falso testemunho que lhe levantou um irmão, mas que apesar das ameaças, torturas e sofrimentos, salvou-se da morte e recobrou seu papel de imperatriz com mais honras que antes tinha e eu sempre chorava quando o cego Beraldo cantava, dedilhando sua viola, esta história musical.

Sabe Didinha que eu gosto por demais de cantar...e eu de te ouvir, interrompeu a amiga; e sempre cantei na Igreja: os Te deuns, Kyries, sou a Madalena na sexta-feira santa e quando canto obras sagradas minha alma se eleva, a realidade me escapa e penso que se o céu for o que sinto quero ir para o céu; mas, agora, cantando histórias humanas de amor, tenho outro tipo de sentimento, me sinto mulher e meu corpo é invadido por ondas nunca antes sentidas, meus olhos fecham sem minha ordem, vou a outro tipo de céu: ardente, humano e chego a desejar Moacir.

Didinha ouvia, atenta, as confissões da amiga: estava surpresa, emocionada com o que sentia a amiga. Cidona continuou: nunca fui tocada por um homem Didinha, jamais e até hoje não sentia falta: quando menina, brinquei de casinha com um priminho meu e imitamos o que nossos pais faziam: tirei minha calcinha e ele abaixou a calça curta que usava e brincamos de amor; agora, depois que passei a ensaiar esta ópera quando vejo o anjinho, na igreja, com o pintinho de fora meu pensamento voa para minha infância e desejo reviver – agora adulta – aquela manhã de inocente amor e continuando, Didinha: acho que o mesmo ocorre com Moacir: sinto, quando ensaiamos nosso canto de ida à fogueira, morrer por amor, que Moacir se torna homem, cresce o volume entre suas pernas, seus olhos brilham diferentes, seu hálito é perfumadamente quente...Pare Cidona: vai acabar traindo a professora; e Cidona: nada ocorre entre os dois amiga Didinha: são como irmãos e Moacir nunca teve mulher.

Mundo mais doido, pensou Didinha!

O perfume do bacalhau inundou a casa atiçando a fome das amigas, acordando-as, conclamando-as à realidade dos estômagos vazios e as duas levantaram, fizeram, cada uma o seu prato com bacalhau, batatas e cebolas, regaram com o verde azeite de oliva e deixaram a conversa para outra hora: era hora de matar outro tipo de fome que as incendiava e exigia satisfação.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

AS TRÊS MARIAS–V–NEGO E PITOCO, AMOR À QUINTAS-FEIRAS E O SARAU DE MOACIR E CIDONA!

2009 Caminho da fé 003 

Foi um presente do seu Justo, pai de Cidona, para Didinha: Nego, um elegante e teimoso pássaro preto, veio preso em gaiola - caprichosamente feita por ele - de delicadas varetas de bambu, com três poleiros, no alto uma janelinha para meter comida sem risco do passarinho fugir e mais embaixo a porta maior que dava para tirar e pegar o Nego com as mãos, acariciar a sua cabeça, passear com ele nos ombros – cabeça arrepiada, longos trinados - pelo quintal, sentir seu cheirinho, sentir-se sua mãe. Agora o Pitoco, um vira lata pequeno, marrom claro, meio vinagre, focinho delicado, olhinhos negros, pernas compridas, corpo elegante, latidos finos com os dentes à mostra, bravo com estranhos e com os gatos, dócil e lambedor com Didinha e seus amigos e portanto carinhoso também com o pássaro preto Nego; Pitoco, rabinho cortado tão logo nasceu e que por isso não vai conseguir, por toda a vida, atravessar as pinguelas de madeira, mas isso nunca se sabe se é lenda, imaginação ou se o rabo dos cachorros funciona mesmo como ponto de equilíbrio necessário para atravessar pinguelas escorregadias, mas como ia dizendo Pitoco foi presente do irmão Irineu, que trouxe lá da fazenda onde Nicota teve uma ninhada de oito filhotes, dos quais cinco foram metidos no saco de linhagem – juntos com duas pedras pesada para afundar logo - e jogados ao rio e os três restantes, todos machinhos espertos – e sortudos - assim que desmamaram dos peitos rosados de Nicota foram distribuídos para amigos e parentes.

A gaiola com o Nego dentro ficava pendurada em um grosso prego, protegida do sol do meio dia pela cumeeira do telhado, ao lado da porta que dava para a rua, e assim Nego via e vigiava de sua fortaleza a rua, as carroças que passavam, os cavalos e as charretes, os vira-latas da cidade - em fila - atrás de cadelas no cio, via o carteiro Getúlio que diariamente descia a rua entregando as poucas cartas e o jornal O Estado de São Paulo que vinha pelo trem da Mogiana e como tinha que passar por baldeações em Campinas e Ribeirão Preto chegava sempre dois dias depois, com as notícias atrasadas, já conhecidas e comentadas nos bancos da praça frente à igreja, trazidas pelo ar, sem baldeação, mas com alguns chiados causados pelo vento ou fortes chuvas , pelas ondas da Rádio Nacional, porque os que podiam comprar jornal tinham também potentes rádios de válvulas ; já o local de moradia e repouso do Pitoco era um caixote de madeira, forrado com um cobertor xadrez velho, colocado junto da porta da cozinha, nos fundos da casa: era dali, de seu caixote-casa, que ele via e vigiava o fundo do quintal cercado por um grosso muro de adobe, via os canteiros de alface de couve e o de cebolinha, o pé de limão galego, um pé de pinha e, mais ao fundo, a casinha – fedida - onde tinha o fosso da privada.

Apertada estava a vida de Didinha: a divisão da fazenda entre os irmãos herdeiros resultou em pequenas e improdutivas propriedades, a crise do café com o governo dando ordem de queimar as sacas estocadas no porto de Santos, a seca prejudicando a safra de arroz...Deus do céu, o que será de mim?

Neste meio tempo foi quando Dom Bento, bispo da arquidiocese, veio até a cidade para a cerimônia da crisma: veio com sua mitra, reafirmar o batismo, jogar mais água benta no corpo das crianças e pedir a Deus e a Virgem Maria que ajudasse seus filhos a não cair na tentação e fugir da santa proteção da Igreja; e para que a crisma fosse o sucesso que o bispo almejava, afinal o santo bispo, com sua vida tão ocupada, vinha de longe para a pequena paróquia por não querer nenhum cordeiro desgarrado do rebanho, Frei João trabalhou duro e firme: discursou no alto falante explicando o significado do sacramento e pedindo atenção para o dia e a hora e mandou esparramar pelas vilas, distritos e fazendas centenas de folhetins que mandou imprimir na gráfica e até as porteiras foram usadas e com letras grandes – escritas com brocha e cal - com a data e a hora do crisma, apagando a anterior propaganda feita com tinta das casas pernambucanas; fogos, foguetes e rojões foram comprados, trazidos de longe e preparados para o grande dia, o bispo com a casula vermelha e roxa, o anel enorme, que todos deveriam beijar com os olhos fechados, e sua mitra, um chapéu enorme parecendo uma torre e suas alvas brancas, estolas bordadas a ouro.

Flores – hortênsias azuis, vermelhos antúrios, brancos copos de leite e margaridas de todas as cores – decoravam a igreja e a forrando a grade de madeira que separava a nave da igreja do santo altar, uma toalha de linho, tão ricamente bordada que chamou a atenção do bispo: quem bordou? e Frei João, se enervou, preocupado em levar pito do bispo – famoso pelo temperamento de italiano, o rosto se avermelhando até ficar roxo por qualquer contrariedade, berrando palavrões em latim e em português: quem bordou foi Didinha uma fiel aqui de minha paróquia e pelo trabalho nada cobrou; e o bispo: mas que coisa mais bela, que delicadeza, veja se ela não borda, com tanto esmero, as alvas, as casulas e as estolas dos padres de minha diocese; e frei João, aliviado percebendo que o bispo havia gostado: acho que borda sim, ela anda carecendo de trocados, ficou viúva, o pai morreu e anda em dificuldades; a diocese pode pagar pelo trabalho, disse o bispo; e frei João: logo depois da cerimônia procuro por ela; e assim ficou combinado.

Finda a cerimônia, dezenas de crianças, de mãos dadas com seus padrinhos e madrinhas de crisma, foram saindo da igreja em fila, ordeiramente, e lá fora uma bateria de foguetes, rojões estalavam no ar, assustando as rolinhas da praça e as duas corujas brancas que moravam na torre da igreja. Tão logo cessou a barulheira nos céus Frei João assuntou Didinha a respeito do trabalho dos bordados para o bispo e ela prontamente aceitou necessitada que estava de trabalho para enfrentar a solidão que se juntava à dificuldade de ordem mais prática de acertar as contas da caderneta do empório do Seu Juca.

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E semanas se passaram, meses se foram e mais um aniversário anual da mudança da capital para a pequena cidade se aproxima. Maria de Lourdes combinou com Moacir que fariam, no domingo, um almoço para celebrar aquela passagem e como já dominava o dia a dia da cidade contratou os serviços de dona Ernestina, cozinheira e doceira famosa: frango com orapronobis, leitão pururuca, angu de fubá mimoso, queijo curado, doce de goiaba cascão com queijo fresco de sobremesa; era a comida do almoço confirmando a aceitação da nova vida que estavam levando e Moacir todo contente: leitão pururuca? então vou querer limão galego para pingar em cima da gordurinha e da pele torrada, vou me empanturrar; e quem a gente convida? perguntou Maria de Lourdes; e Moacir: convida a Dona Jacira, mulher do Juiz e seu marido, convida também o seu Abílio, diretor do grupo e vou dar um palpite: convide a Cidona; e ela: Cidona, a passadeira? e ele: Sim, Cidona a Diva, a Norma de Belline em sua versão negra; vou pensar, disse ela; mas Moacir a conhecia e sabia que Cidona seria convidada.

Na cidade, agora, todos já sabiam o motivo da vinda de Maria de Lourdes para dar aulas, ensinar as crianças ali naqueles chapadões e brejões perdidos e ninguém mais tinha dúvidas, tanto em pensamentos como em palavras, quando a viam passar vaidosa - com seus coloridos vestidos, seu elegante chapéu, de braços dados com Moacir - para assistir a missa das nove; todos sabiam o que tinha trazido a professora de pele clara, olhos negros, óculos de tartaruga: foi o amor. Todos – até mesmo os mais velhos, despreocupados com o dia a dia e se preparando para as vidas futuras – sabiam o que trouxe para aquelas bandas Lourdes, a professora Lurdinha: veio atrás de homem casado, diziam as amargas e roxas línguas; veio atrás de seu amor, afirmavam as línguas doces e rosas: cada um pensa o que quer, é assim no mundo de deus.

E Lourdes vivia sua vida! Os encontros semanais, as quintas, às oito horas da noite, com seu amor aconteciam em um segredo compartilhado por toda a cidade e Sebastião, o vizinho de frente, deixava de ouvir no rádio o final da Hora do Brasil, apagava a luz da sala para, escondido, ficar espiando pelas frestas da veneziana o arrastar dos passos de Vicente ao se aproximar da janela do quarto de dormir de Lourdes, a janela aberta, escancarada, sinalizado que sim, que ela o esperava ansiosa para o amor, e ainda pela fresta da veneziana via a guinada de Vicente da calçada para o corredor da casa, o corredor escuro tudo escondia, mas ele continuava com os olhos nas frestas da veneziana e ouvia o barulho da porta de duas folhas se abrirem e ai nada mais ouvia, e via mas Sebastião ficava ali, rosto colado na veneziana, pálido a imaginar os beijos, os abraços, o desnudamento dos dois, os peitos de Lourdes sendo sugado pelo afoito Vicente, e vislumbrava Lourdes com os olhos fechados, desmaiada, se entregando e então as ondas circulares do prazer saiam do quarto, atrasavam a rua e chegavam, elétricas, até corpo de Sebastião que deixava a janela e buscava o quarto onde sua mulher Terezinha fingia dormir, e as ondas do amor se esparramavam pelo seu quarto, os corpos se livrando do pijama listrado e da camisola de renda, os dois se vendo nus, um sobre o outro e os gemidos e palavras de amor se misturavam nas duas casas, enchendo aquele canto de rua de uma sinfonia de calorosos ais e uis que varavam quarteirões, contagiando a cidade de amor.

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Avixialzariatenta

Preçoalaradeldio

Foi assim que Cidona – atendendo a solicitação de Moacir – escreveu com sua letra redonda, meio caída para a direita, em um caderno brochura enquanto ouvia a ária da Diva Norma e isso aconteceu quando - depois de vários pedidos e de uma falsa relutância – a negra passadeira resolveu acatar o pedido de Moacir para ensaiarem, ambos, os papéis de Norma e Pollione da ópera Norma. E a partir de seu sim, as tardes de terça e quinta feira, tão logo as roupas eram passadas a ferro de brasa, a sala de estar se inebriava de música, a rádio vitrola em alto volume com os dois concentrados ouvindo o LP da ópera e, Cidona, enquanto cantava ia anotando – para melhor gravar a letra - os trechos de Norma que cantaria com Moacir fazendo o mesmo, com sua afinada voz de tenor, nos cantos de Pollione, o pro cônsul romano.

Mas tem-se que falar da inicial relutância de Cidona, relutância não por birra – era uma boa alma não afeita a enjoamentos e birras – mas fruto do que vou contar, narrando os motivos da relutância.

Foi assim. Cidona andava a ajudar Didinha no trabalho de bordar os paramentos do Bispo e uma tarde, pouco depois do acontecido na casa de Moacir, quando estimulada por ele se viu cantando a ária da ópera e foi efusivamente saudada pelo Moacir: bravo, bravíssimo e o ferro de passar roupa caindo de suas mãos, e as brasas se espalhando pela mesa e pelo assoalho, mas o que que tem isso a ver com a relutância? Pois tem! Estavam - Cidona e Didinha - centradas no trabalho de bordar os finos e delicados paramentos quando o Nego trinou seu canto avisando da chegada de gente no portão e Pitoco, nervoso, dentes à mostra, correu rápido de seu posto no fundo da casa e avançou até o portão, latindo, dentes à mostra e o carteiro berrando: xô cachorro de merda, sai vira lata do inferno e Didinha gritando Pitoco! já pra dentro, Pitoco, vamos; e recebeu do assustado carteiro um outro caderno com modelos dos bordados mandado pelo bispo; e Didinha contou para Cidona que o Pitoco adivinhava o canto do Nego: se não é amigo ou conhecido que o Nego vê chegar ao portão ele canta de um jeito que o Pitoco vem feito uma bala, querendo morder, mas quando o Nego vê chegar pessoa conhecida – você, Luzia, Assunção – ele canta lá de um jeito diferente e Pitoco sai do seu caixote, vem correndo latindo mas com o seu toco de rabo balançando feito ventilador, querendo dizer com isso que não vai morder que a visita é bem-vinda; só que Cidona, para mim, o trinado do canto é o mesmo, só mesmo Pitoco sabe diferenciar. E Cidona combinou que iria prestar atenção no que Didinha lhe contou e as duas ficaram a torcer para que chegasse gente no portão para o Nego cantar para atentarem para o latido bravo ou amigo do Pitoco; e como nas histórias as coisas sempre acontecem, logo, logo chega Assunção para um café com as amigas, bate palmas e Cidona toda atenta ao canto do Nego, enfia as notas do canto dentro de seu miolo para guardar assim como fazia com os introitos e com os kyries. Tomaram café, comeram bolinho de chuva e conversaram da vida delas, dos outros e da falta de chuva e dos ventos de agosto. Logo depois de sair para ir embora Assunção, toda gorda, balançando a bunda rumo a sua casa, chega ao portão o louco manso Diquinho, pedinte usual, mesmo sabendo que na casa em que ia pedir pouco se tinha, ou tinha apenas o que era para o sustento de uma viúva virgem. Nem bem bateu palma, fracas palmas de mãos magras e Nego, vendo a chegada de Diquinho trinou seu alerta e Pitoco, como um foguete, sai do caixote e avança: agora um Pitoco do rabo erguido, o cuzinho à mostra, os dentes ferozes querendo atacar as pernas de Diquinho e Didinha gritou: xou Pitoco, pra dentro e atirou um pedaço de pedra e Cidona guardou as notas do trinado em seu miolo e disse: eu sei a diferença dos cantos e brincaram de apostar seguinte: Didinha iria cobrir os olhos de Cidona e ela teria que adivinhar, pelo canto do Nego, se era amigo ou estranho quem batia palmas no portão da casa. E não é que Cidona realmente reconhecia a diferença dos cantos, talvez por uns míseros tons uns décimos oitavos a menos ou a mais nas notas trinadas, a mesma estrutura musical ancestral do Nego afetada pela emoção para avisar ao cachorro Pitoco de quem se aproximava da casa dos dois: amigo ou desconhecido.

E então de um lado a Didinha admirada da competência de Cidona e esta achando aquilo tudo muito simples, bastava ouvir com atenção e foi quando que – absorta na música do Nego - errou os pontos cheios que bordava, enchendo de azul claro uma cruz no paramento, tendo que tudo refazer porque era para fazer o ponto cruz e Didinha dizendo: não foi nada, acontece! e ela: venho para ajudar a apressar o trabalho e acabo atrasando! E naquela noite Cidona sonhou que enquanto estava a passar uma blusa de linho da professora Lourdes, bordada com ponto cruz e ponto cheio quando Moacir ligou a rádio vitrola, colocou o elepê, aumentou o volume e a música tomou conta dela e ela, de tudo se esquecendo, queimou a blusa com o ferro de passar e chorou porque para pagar blusa tão cara teria que passar roupa por anos e anos... e assim na semana seguinte ao bravo, bravíssimo Cidona pediu a Didinha que fosse ela passar as roupas de linho e Didinha explicou ao Moacir que Cidona estava adoentada e que aquele dia não poderia vir passar roupa, por causa do calor do ferro de brasa, da força que tinha que fazer com os braços e Moacir: mas o que ela tem? doença mais séria ou doença de mulher? e Didinha se envergonhou com a doença de mulher e disse: acho que é gripe forte e passou a roupa com a rádio vitrola desligada, o LP de Norma descansando – a capa negra para cima – e Moacir em seu escritório, quieto, colocando em ordem a pasta com recortes do diário oficial. Na semana seguinte, outra vez, Didinha veio passar roupa encompridando a doença de Cidona. Moacir, educado, esperto e desconfiado pergunta aqui, cutuca ali e Didinha, com medo de queimar uma blusa de linho, assentou o ferro de passar no rabo do fogão e contou a história do canto do Nego e das avançadas do Pitoco, do sonho de Cidona e do seu medo de – distraída pela beleza da música – queimar as roupas de linho e que estava decidida em não mais passar roupa e Moacir: fala para ela vir, a vitrola vai ficar desligada.

E na semana seguinte Cidona chegou envergonhada e sem o batom vermelho na boca, parecia mais negra e mais magra, as costas mais curvadas pelo peso da altura do corpo, a voz baixa: boa tarde, o senhor e a professora me desculpem! e Moacir: desculpar do que Cidona? doença não escolhe corpo; veja o monte de roupa que sobrou para você passar... e não ligou a rádio vitrola mas ficou ali ao lado, escutando o chiii! do ferro ao encontrar o tecido gomado, conversando com Cidona e ela no inicio retraída, desconfiada, não acostumada com homem tão rico a falar com tanto respeito com mulher pobre, negra, mas foi se soltando e falou da diferença do canto do Nego para avisar Pitoco de quem chegava ao portão e Moacir entusiasmado: sabe o que você tem Cidona? e ela preocupada com alguma doença: não, não sei, não senhor; e ele: ouvido absoluto Cidona, um fenômeno, poucos têm, um ouvido como o seu: muito, mas muito mais sensível aos sons!

E a rádio vitrola voltou a funcionar, o LP de trinta e três rotações girando calmo, devagar e Moacir se emocionando ao ouvir Cidona: a perfeição da pronúncia da letra – em italiano – com a métrica e a doçura de sua voz lhe causando pequenas e doces taquicardias, iguais às que tinha quando, no Municipal, ouvia belas árias: a voz humana o encantava sobremaneira.

E os dois – Norma e Pollione – cantavam e anotavam ao som da rádio vitrola e enquanto descansavam dos cantos, Moacir, delicado e sensível, direcionava a interpretação de Cidona , contando-lhe a trama do libreto, traduzindo do italiano para o português e passaram a ensaiar para um sarau musical!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

AS TRÊS MARIAS -IV - A SOLIDÃO DE DIDINHA, A ENCARNAÇÃO DA VULGÍVAGA E A VINGANÇA DE NORMA.

2009 Caminho da fé 074retoc

E mortes, enterros e lutos se acumularam, deus me livre e guarde! Em seis meses de mulher casada - vestida com seu branco e comprido vestido de organdi - saias e blusas e vestidos tiveram que ser costurados, às pressas, em negros tecidos comprados na loja do Mansur: Dona Hercília tirando as medidas e costurando entre choros, lágrimas e suspiros.

Primeiro o pai: morreu, não se sabe se de tristeza, o governo mandando queimar sacas e sacas de café no porto de Santos, dívidas com bancos, a saúde da esposa piorando a cada dia e assim, sem mais, em uma tarde quando voltava da fazenda, caiu morto do alto do arreio do cavalo Tiziu, um manso cavalo, batizado com este nome de tiziu pela cor negra o e não pelos acrobáticos saltos que o passarinho dá, se mostrando todo o exibido nas moitas de capim, assobiando fino tiziu! tiziu! tiziu! Morreu, sem nenhum aviso, o pai. Já Eduardo, o marido, precavidos avisos foram fornecidos: o primeiro veio da ordem de ir para Campos de Jordão, viagem apressada em ambulância, acompanhado apenas do médico da cidade, o doutor Vicente, que comentou: uma esperança para o grave estado do Eduardo; quinze dias depois, chegou mensagem no telégrafo da estação da Mogiana: “Sr. Eduardo nas últimas pto. Avisar família pto.buscar urgte pto. Dr. Cabral Sanatório CJ” e lá foi de volta a ambulância, obediente ao telegrama, trazendo de volta Eduardo vestido em um corpo quase sem vida, febril, pulmões ocados pela tuberculose: morreu uma semana depois, em casa.

E no guarda-roupa de Didinha os cabides com vestidos e saias e blusas pretas foram empurrando para o canto os outros coloridos, brancos, rendados: luto de seis meses pela morte do pai que se juntou a mais seis meses pela morte do marido. Pena de se ver o guarda-roupas, agora sem as roupas de Eduardo – queimadas, medo de a doença passar -: o negro apertando para um canto o colorido, espremendo e amassando o branco vestido de filha de maria e sua fita azul, o véu branco de virgem, que ainda era.

O sinal da solidão foi dado depois da missa de sétimo dia da morte de Eduardo: na missa, todos de negro, reviu as primas que tinham vindo para o enterro, Didinha foi tocada pela concretude da morte em si como um evento, a não volta, meio a tantos abraços e confortos: meus pêsames, mas você é forte e vai vencer; meus pêsames: estou ao seu lado; pêsames Didinha: a vida continua, fé em deus...e os abraços e as lágrimas umedeciam sua blusa negra – escorridas de seus olhos e misturadas às lágrimas reconfortantes de primas, tias, da Cidona – e a saída da igreja, o silêncio da praça e as impossíveis esperanças de retorno, de que tudo era um sonho foram se esmaecendo, a vida continua, e Didinha achando que sua vida não continuava, que estava parada como a de um relógio quebrado, querendo conserto e se viu só, imensamente só e triste.

A prima que havia ficado com ela até aquele dia da missa de sétimo dia se despediu – qualquer coisa que precisar, me chame, a vida continua – e Didinha retornou para sua pequena casa: sala, cozinha, quarto com cama de casal, os presentes de casamento ainda sem uso, embrulhados em cima do guarda roupa com as roupas negras invadindo o espaço, sufocando os colorido, os rendados brancos.

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Sobre a mesa da cozinha, grande toalha branca de linho, jarra com água, panelas e pratos! Moacir e Lourdes jantam, os dois, um quente angu de fubá mimoso com frango e quiabo e vão beber, após o jantar, café coado por Moacir: tempo demais para prosas e olhares amigos com os corpos aquecidos do frio e do vento que entrava zunindo, assobiando, pelas frestas da porta de duas folhas da sala de entrada da casa, agora reformada com confortos rememorados da casa dos Campos Elísios, na Alameda Nothman.

Gosto do sabor do frango caipira, dizia Lourdes e ele: tem um pouco o cheiro de quintal, de cocô, assim como o leite gorduroso daqui: cheiro de fezes, de curral; seu paladar é muito apurado e sensível, Moacir, ou é uma forma de resistência; resistência a que?; à que? oras à falta de óperas, de concertos, de ilustrados saraus; é pode ser, talvez seja, responde em voz baixa, pensativo; e ela: tenho claro o que me trouxe para cá e sempre, você sabe disso mais que eu, que sem você eu não teria vindo, mas tenho dificuldade de entender o porquê de você ter concordado com mudança tão radical em sua vida; me sentia um pouco preso e asfixiado pelos saraus e querelas intelectuais e além disso, aceitei por admirar e querer saber até onde ia sua coragem e disposição para permanecer, contra tudo e todos, ao lado, ou pelo menos mais perto do seu amado; o mais difícil foi deixar meu filho com meus pais: no mais, a capital, para mim, sem Vicente, não tinha o menor sentido, ou melhor, a vida para mim, só tem sentido com a possibilidade de Vicente por perto, não juntos, mas acessível; é o que me faz te respeitar e admirar; não me envergonhe com suas palavras amigo, apenas corro atrás do que me é importante; você, Lourdes, abre buracos e frestas tornando as paredes do inconsciente tules perfurados; e lá vem você e suas análises: procuro apenas viver, Moacir, meu caro amigo; sem sentir nenhuma culpa, sem nenhum arrependimento?; penso que arrependimento e culpa todos temos: pecadoras como eu e santos como o Agostinho: a diferença é que me arrependo por reais e concretos atos e Agostinho por pensamentos; deixa o Freud saber disso, amiga; sei que você respeita por demais Freud, de quem só sei o que você – nas horas dos nossos jantares – e o Vicente – após longas e extasiantes horas de carnal amor, cansado – me falam: e ele, o Vicente, penso, mais para justificar a si mesmo a imensurável força animal que nos une; não te falo, Lourdes: Freud é um dos pilares da compreensão da alma humana, quer café? ; sim, vamos ao café porque a noite promete.

A casa em que moravam tinha, a partir da reforma, uma serpentina que passava pelo forno do fogão a lenha, e aquecia água para banhos quentes de chuveiro: agora não mais os fios d’água caindo do chuveiro elétrico, que diminuía a força das lâmpadas, queimava fusíveis e obrigava o corpo a ginásticos e cansativos contorceres para esparramar o fiozinho de água quente pelas costas, pelas coxas e pelo pescoço, e enquanto esquentava uma parte esfriava a outra: agora não, com fartura de água quente se derramando pelo corpo, dando adeus aos contorcimentos que geravam câimbras no pescoço e pior ainda, quando o fusível queimava, o término do banho em bacia e canequinha, um horror, mais ainda nos frios meses de inverno.

Saboreado o café quente, cooperativamente os dois recolheram os pratos e as comidas, amontoando as panelas e pratos cima do fogão e dobraram a tolha branca, desnudando a mesa de jacarandá!

Ao banho quente! falou Lourdes enquanto, ainda na sala, se desnudava sensualmente. Banhou-se, inundando o banheiro com uma nuvem de quentes e perfumados vapores: amigo Moacir, meu querido, declame Vulgígava para mim! cantarolou Lourdes, rosronenta como uma gata, saindo do banho, o corpo quente, gotas d’água escorrendo dos ombros para as pernas, para as nádegas redondas, da cabeça para o pescoço fino e delgado e para os peitos empinados.

Moacir enrolou a toalha sobre os ombros nus e molhados da mulher e declamou:

“Não posso crer que se conceba

Do amor senão o gozo físico!

O meu amante morreu bêbado,

E meu marido morreu tísico!

Não sei entre que astutos dedos

Deixei a rosa da inocência.

Antes da minha pubescência

Sabia todos os segredos...”

Tá bom, chega Moacir, estes dois versos são suficientes; se quiser declamo o resto, não gosto de cantar o Manoel Bandeira pelas metades; e ela: não está bom, e sabe Moacir, que se eu fosse espírita teria certeza absoluta que eu sou uma encarnação dessa poesia; e ele: mas você sabe quais foram os astutos dedos, minha linda; sim, sei e hoje eu os terei novamente.

Moacir deixou Lourdes enrolada na toalha no quarto de banho: o corpo redondo, ancas largas, coxas curtas, grossas, torneadas, os pelos negros do ventre sobressaindo no corpo branco; os seios redondos - sujeitos à flacidez da idade e da amamentação – com os bicos rosados e o pescoço delicado davam a Lourdes um ar qualquer da Vênus.

Atravessou a rua e viu sua casa de frente. Olhando para a direita era a terceira casa até chegar na esquina, casas separadas uma das outras por pequenos corredores de metro e pouco, sem jardim de frente, sem alpendres, com amplos e compridos quintais nos fundos: a frente da casa com três janelas venezianas, duas do quarto de dormir de Lourdes e outra do pequeno escritório de Moacir; a entrada da casa era pelo corredor onde havia a porta principal, azul, de duas folhas, pé direito de mais de três metros.

Quando as duas venezianas do quarto de dormir de Lourdes se abriram, Moacir, na calçada frente sua casa, caminhou a passos lentos para o lado direito; na calçada da esquerda viu Vicente, que caminhava a passos de gato para evitar barulho e sorriu ao ver as duas venezianas abertas e então, respondeu ao sinal das venezianas abertas: pigarreou baixinho, limpando a garganta enquanto deixava a calçada e entrou pelo corredor a dentro à busca de Lourdes.

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Cidona passava as camisas e os ternos e os vestidos de linho na sala de visitas; a mesa de jantar transmutada em mesa de passar: sai a toalha rendada branca, o vaso com rosas e o jacarandá se vê coberto por um grosso cobertor de lã e sobre ele um lençol branco que evita que os fiapos da lã se enredem pelos delicados tecidos de linho das roupas que serão passadas. Cidona gira, como o turíbulo para liberar incensos , o pesado ferro de passar a brasa: pelos buraquinhos se vê os carvões avermelhados , pequenas faíscas caem sobre o lençol e têm que ser, rapidamente, retiradas com as mãos ou com fortes sopros e o calorento e pesado ferro de passar roupa passa a soltar pelo seu pelo bico, invejoso da locomotiva de trem, um suor fumacento, cinzento tão logo seu fundo – agora quente - toca o tecido das roupas úmidos de goma, truque usado por Cidona para deixar ainda mais liso os vestidos, as camisas e os ternos de linho.

Cidona trabalhava o seu ofício de exímia passadeira cabisbaixa, quieta, aspirando a fumaça quente exalada pelo ferro de brasa.

Moacir colocou na vitrola o que ele costumava chamar o seu LP “do momento”: importado de Portugal, a ópera Norma, tendo Joan Sutherland no papel de Norma e John Alexnder no papel de Pollione. Ligou a vitrola, ajeito o LP, colocou cuidadosamente a agulha no início das arranhaduras do disco e aumentou o volume o suficiente para o som cobrir a fumaça espalhada pelo ferro de passar roupa e, voltou para sua cadeira no escritório, onde – quieto, ficou menos a ouvir – conhecia aquela ópera como a palma de sua mão, fez testes no Municipal no papel de Pollione e não foi aprovado - e mais para ver como Cidona reagiria à voz doce da cantora e à bela melodia de Belline. Tinha, Moacir, seus pressentimentos, suas premonições: vamos ver!

A música inundou a sala! Oroverso e os druidas aguardando a chegada de Noma...

Fingindo despreocupação como se nada tivesse na sala a não ser a música, no exato momento em que findou a ária da Casta diva, Moacir foi até a vitrola e, cuidadosamente, ergueu o braço colocando a agulha exatamente no ponto onde a ária se iniciava, reiniciando o canto da ária. Agora, de pé ao lado da vitrola, repetiu esta operação por duas vezes, bisando e rebisando a ária: na segunda repetição , fingindo estar só na sala, acompanhou a ária assoviando afinado, imaginando que, com este gesto, estimularia Cidona a cantarolar a melodia. Ao final da terceira repetição, colocou a agulha no início da ópera, voltou para sua cadeira e aguardou!

Cidona, absorta no trabalho, mergulhada na névoa de vapores do ferro, ajeitava uma camisa de linho: dobrava as mangas e desdobrava os colarinhos; as longas mãos negras ora ocupada em alisar o tecido já passado, ora em umedecer com o pano úmido de goma o restante do tecido e continuando o trabalho de alisar, forçando o ferro quente sobre o tecidos em movimentos de vai e vem: a fumaça subia pela sala e quando menos esperava se ouviu cantando e a voz de Cidona se uniu à de Joan Sutherland cantarolando a melodia:

“Sedizioze voci, voci di guerra

avvi chi alzarsi attenta

presso all’ ara del dio...?”(*)

Finda a ária Moacir aplaudiu: Bravo! e Cidona, assustada, sem entender o que ocorria, assustou-se, o ferro caiu de suas mãos – brasas se esparramaram pela sala a dentro, corre até a cozinha e pega uma vassoura para juntar as brasas antes que queimassem as tábuas do assoalho e Moacir ajudando e Cidona pálida, o rosto perdendo a negritude, esbranquiçando, mãos trêmulas e o LP continuava rodando na vitrola, o som alto, as vozes, o coro!

Agachados no chão à cata das últimas brasas que teimavam em permanecer acesos, Moacir e Cidona, os corpos pertos, os rostos a pouco mais de meio metro um do outro, a vitrola ainda inundando a sala de música: Linda demais sua voz Cidona, disse Moacir e Cidona disfarçava a timidez procurando no chão as últimas brasas, pedindo a deus que o mundo acabasse ali, naquela hora, envergonhada; obrigada, bondade do senhor.

(*) vozes deliciosas, vozes de guerra,

quem ousa elevá-las

perante o altar do deus?”