sábado, 27 de junho de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - X - FOI QUANDO NENZÃO VESTIU A FARDA DO SOLDADO MORTO!



Fiquei quieto, mudo, sem respirar – um infinito tempo -, enfiado ali dentro da cova, o corpo do Tramela pesando em cima de mim, aquele defunto corpo fazendo as vezes de um protetor escudo, suas carnes e sua armadura de ossos segurando – dentro dele - os balaços que o macaco desferiu para comprovar que todos ali estavam mortos com as almas escapulidas dos corpos, e eu quieto: medo de respirar e os macacos escutarem o som do pulmão, a garganta seca de sede e de medo, as mãos trêmulas e os ouvidos atentos, ligados no lá fora da cova, carecia de saber se os macacos tinham mesmo ido embora, não escutava mais seus passos, seus tossidos secos, suas cusparadas de nojo e nem o barulho -“tracscratch” - de quando armavam suas metralhadoras, balas em pente, finas balas alojadas - enfiadas ao lado do coração dos corpos dos sertanejos de rostos secos, olhos mortos, embaçados olhos, dentes à mostra, a roxa língua cobrindo parte do lábio inferior, mortos. E eu comigo e com meus pensamentos: tenho que, o quanto antes, em antes que seja por demais tarde, sair daqui e ir até o casebre em Canudos: catar no meio da parede de pau a pique, um canudo de bambu e dentro dele, enfiado, um bolo com todos os dinheiros que tinha ganhado na venda dos gados dos meus tempos de vaqueiro, o bolo de dinheiro estava ali, protegido, dinheiros de anos de trabalhos e de negócios e eu resolvi, ali, nos fundos daquela cova, que ia lá catar o que era meu e seguir a vida, cair na estrada, buscar o destino para onde apontasse meu nariz, nariz obediente aos cheiros dos ventos e olhos ao brilhar das estrelas; ia – de novo - buscar a vida mundo afora: uma certeza eu tinha, uma ao menos: não mais ia viver a vida de vaqueiro, isolado do mundo, vida sem escutar vozes e choros, isso não queria mais não e eu também sabia um pouco desiludido – no agora daquelas horas, ali na cova – que os tempos dos milagres haviam se finados: nos mundos de então as balas – desrespeitavam pedidos e rezas e acordos – e se enfiavam corpo adentro dos vivos e tocando lá dos seus fundos a alma, que lépida, fugia à caça de novos corpos, vidas mais duradouras, cansadas almas.

Chegou uma hora em que ouvi demais o silêncio e resolvi que era hora de ir até o casebre de Canudos, buscar o que era meu: devagar, sem fazer barulho, tirei meu corpo debaixo do Tramela, alevantei-me e vi que o sol estava querendo começar a cair pros lados do poente, devia ser coisa de três ou quatro horas da tarde, nas em outubro os dias são longos, tem claridade até as seis e meia, os depois da ave-maria ainda claro, e atirei o corpo fora da cova, lá dentro os mortos defuntos, catei a pá e cobri os corpos com a seca terra e as pedras que serviram de balaustrada, carecia de proteger dos urubus e dos carcarás e dos tatus pegas comedores de carne de defunto; escuto um tiro: as metralhadoras dos macacos, lá longe, bem longe se escuta: brummm! tiro de metralhadora, e corri dali, o estômago roncando de fome, a garganta seca, carecendo de beber água, lá em Canudos bebo, tenho que sair daqui.

Canudos era um amontoado de corpos: um cemitério de corpos jogados, não cobertos: vivo apenas velhos e crianças, chorando de fome, as enormes barrigas cheias de lombrigas, os olhinhos remelentos: cadê minha mãe; deus levou, fique aqui quieto; quero minha mãe; quieto menino de deus, quieto... Na sala do casebre três corpos sertanejos, armas e porrete nas mãos, mosquitos verdes e azuis cobrindo os rostos e comecei a esburacar com a ponta de uma faca a parede para achar o bambu com meus dinheiros e escutei vindo de fora, passos e me deitei junto aos corpos dos defuntos e fiquei ali, mais uma vez morto entre mortos e o macaco chega, abre a cortina de chita da janela para melhor enxergar o lá de dentro, arma na mão, cospe em cima dos corpos, tem nojo daquilo: inda bem que acabou a guerra!; e inspeciona os corpos com a ponta da bota, chuta as costelas e os corpos não respondem, mortos, livres das almas e o soldado resolve ir embora, muita desgraça, deve ter pensado, vira de costas, o pescoço branco descoberto, o chapéu caído e - rápido, sem pensar – enfio a faca certeira abrindo espaço entre os ossos e a jugular: te mato desgraçado, morre filho da puta de macaco e o peso do meu corpo ajudando a faca a buscar a veia da vida, o sangue jorrando em meus braços, vermelho sangue e o urro do soldado macaco caído, a morre urrando igual a um lobo em noite de lua cheia... depois, o silêncio.

Com a faca, suja de sangue, continuei a procurar o toco de bambu enfiado na parede de barro com meus dinheiros: será que o Nenzão sabia e catou meu dinheiro, não é hora de fazer maus pensamentos dos amigos, deus castiga e a faca encontra o duro bambu meio ao seco barro: plec! plec! arranquei o toco de bambu com meus dinheiros, o dia estava se cansando de clarear, a noite chegava com sua escuridão e em Canudos regia o mortal silêncio: o sino da estilhaçada igreja, a torre ao chão não tocou chamando o povo para as ave-marias, cadê o Bentinho? cadê o Conselheiro? por onde será que anda o Pajeú.

No alto do morro da Favela as barracas dos macacos iluminadas pelos lampiões a querosene: tirei minha roupa de vaqueiro, vesti a farda do soldado, me tornei um macaco, e caminhei em direção à claridade das barracas!

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - IX - A VIOLENTA LUTA CONTRA OS MACACOS DA REPÚBLICA!


 


 

Canudos vivia – desde as poucas nuvens que vestiam o seu céu, desde o distante Monte Santo, Canudos em seu tudo, mesmo em suas secas margens do Vaza Barris onde as mulheres lavam suas roupas e de seus maridos com seus filhos em volta – peladinhos, enormes barrigas à mostra, nadando meio ao barro e as espumas do sabão –: toda a vila de Canudos e suas infinitas imediações e seus povos viviam um grande medo, um medo misturado com violência, semelhante com o ar que toma conta dos homens e dos animais quando os raios despencam céu abaixo, junto aos raios intermináveis roncos de trovões que fazem tremer os chãos e os cabritos e as galinhas, todos – até o grande e verde juazeiro balança forte, querendo – medroso do temporal - fugir, pousar em calmos lugares e lá produzir sua sombra e, pois até o juazeiro naquelas horas de tormenta se dava por ficar invejoso das humanas pernas fugidias e sonha com suas raízes se transformando em pernas e pés e mãos – tudo a fugir da tempestade, os grossos pingos estalando no chão, fazendo subir nuvenzinhas de poeiras assustando a terra seca com a novidade da chuva –; mas o que havia em Canudos? o céu andava claro, nada de raios, um céu vestido com o claro azul de outubro, não denunciava chuvas nem raios nem tormentas: a secura imperava, o Vaza Barris mais parecendo um fiapinho de barrentas águas; mas então o que havia para fazer os assustados povos se recolher – medrosos – escondidos em suas casas, cerrando as cortinas de chita nas janelas, as calejadas mãos – nervosas - debulhando as contas dos terços gritados em voz alta: ave-marias e salve-rainhas, que o Santo Conselheiro tome conta de nós e nos livre das sujas mãos dos macacos da república, que - deus do céu - a cada dia, a cada madrugada, mais se aproximam daqui da Santa Vila dos Canudos, terra de oração e preces, santa virgem rogai por nós.

Chico Ema tinha medo não: medo não era com ele que - enorme facão e porrete às mãos - se dizia pronto para enfrentar e defender o Conselheiro e os velhos e as crianças de Canudos: mato tudo quanto é macaco que aparecer por aqui buscando a desordem, luto com Deus e o santo Conselheiro não vai permitir a morte de quem briga do seu lado; e foi junto com Chico Ema, mais o Taramela e o Raimundo, foi essa a turma que Estevo ordenou que eu me juntasse e fosse ocupar uma cova, cavada meio da caatinga, antes da entrada da Vila, para de lá – a tiros de espingarda cartucheira – esperar os macacos do governo: três de nós: eu, mais o Chico Ema e Taramela a atirar nos macacos e Raimundo mais o Manuel Quadrado para rebobinar os cartuchos e alimentar de chumbo e pólvora as armas e a gente a defender a entrada da vila; a cova era uma cova funda, coisa de quase um de metro de fundura e a terra e pedras retiradas para fazer o buraco foram ajeitadas nas beiradas para proteger nossas cabeças das balas dos winchesters dos soldados da república que a cada dia se mostravam mais corajosos e desobedientes às pragas e às rezas e novenas dos moradores da vila: será que Conselheiro desistiu da luta? Será, deus nos livre e guarde, eu pensava – que o santo homem tinha entregado os ponteiros tanto é sua magreza por nunca ter fome de comer, a vida só a rezar e a olhar para o céu buscando milagres, e naqueles últimos dias inté mesmo o Bentinho – cara de assustado – deixou de lado as rezas e de suas andanças para saber das novidades e amolou um facão: a hora é de luta, irmãos! viva Nosso Senhor, viva o Conselheiro.

Chegamos, obedecendo as ordens do Estevo, à tardinha na cova, e dormimos agachados esperando o avanço dos macacos na madrugada; se combinou que era proibido conversar alto e de acender cigarro para evitar o brilho da luz da binga clarear nosso esconderijo e sem a catinga do fumo as muriçocas infernando nossa vida, achando o menor furo na manga da camisa para lá meter seu alfinetinho e sugar nosso sangue, e a gente a dar tapas e falar – baixinho, para ninguém escutar - nomes feios – muriçoca dos infernos vai morder a puta de sua mãe, bicho desgraçado – acordava quem sonava fraco, era um dormir acordado, uma estrela caiu e Chico Ema apontou com o dedo a estrela que apontava um caminho, o caminho da fuga, caiu para os lados do oeste: é pecado apontar com o dedo a estrela que cai, cria verruga no dedo que aponta e Chico Ema levantou o corpo forte da cova, carecia de espreguiçar e verter água do corpo, o Estevo alertou que não era para sair da cova, esperar quieto, os macacos podiam estar tocaiando a gente por perto, mas, Chico Ema – apertado para mijar - se apoiou no montinho de pedra da beirada da cova e saltou fora, espreguiçou jogando os braços para o alto, parecia que rezava, tirou o pinto para mijar e um raio e um trovão bateu em seu peito e nas suas costas e o home caiu em cima de nós, na cova, jorrando sangue pelas costas vazadas em um buraco e pelo peito, a cara empalidecida, enorme buraco e cada um catou sua espingarda cartucheira e se colocou em posição de combate: vamos defender a vila dos macacos, viva o Santo Conselheiro, abaixo essa merda de república dos infernos e dos pecados, viva Nosso Senhor e eu rezei forte para Santa Cecília e vi que o recurso era não enfiar a cabeça fora da cova, eram muitos e bem posicionados e armados os macacos, era a conta de meter a cabeça fora da cova e as balas chicoteavam a cova, de vivo ali estava sobrando eu mais o Taramela que endoidou e disse: vou matar estes macacos na paulada, filhos da puta e se levantou e preparou o corpo para sair da cova, ficar à mostra dos macacos para mostrar seu corpo fechado pela fé no Conselheiro e vou matar vocês no pau seus desgraçados dos infernos... e tombou de costas com o corpo parecendo uma peneira de tantos furos de bala, o corpo jorrando sangue por todos os lados, de dentro de sua alma um ronco grosso, era a alma querendo sair do corpo, buscar ares mais leves que o pesado corpo que ficou ali em cima de mim, me fazendo sentir a quentura do sangue vermelho, e então eu soltei as mãos da espingarda e me aconcheguei quieto embaixo do corpo do Chico Ema que virou um escudo e um grande silêncio foi tomando conta da caatinga: nada se ouvia, nem o pio da coruja, nem o rastejar dos calangos: tudo quieto, quieto.

Logo depois, ouvi o rastejar dos macacos que se aproximavam da cova: me aquietei mais ainda, medo até mesmo de rezar e os safados escuitarem minha reza, fiquei ali quieto com minha fraqueza e o meu medo da morte, do sacrifício da dor da morte, do que antecedia a escuridão porque o depois da morte era um mistério grande demais para minha pouca inteligência entender e um macaco falou com um palavreado musicado diferente do nosso jeito de cantar as palavras e as frases: estão todos mortos, não sobrou nenhum para semente; meta mais um ou dois tiros que é para acabar de matar: pum! pum! pra! pra!

E, a passos lentos, os macacos caminharam em direção a Canudos: uma incendiada vila de Canudos, a torre da igreja ferida pelas pesadas e gordas bolas dos canhões e teve um dia, comigo já velho, quando – embriagado de saudades e memórias – contava essa história vem um neto meu, letrado, escolado, e catou na prateleira um grosso livro e leu: “projetis de toda a espécie, sibilos finos de Mannlicher e Mauser, zunidos cheios e sonoros de Comblaim, rechinos duros de trabucos, rijos como os de canhões- revólveres, transvoando a todos os pontos... sobre o álveo longo e tortuoso rio e sobre as depressões mais escondidas; resvalando com o estrondo pela tolda de couro da alpendrada do hospital de sangue e despertando os enfermos retransidos de espanto... varando, sem que se explicasse tal abatimento de trajetória, as choupanas de folhagens, a um palmo das redes, de onde pulavam, surpreendidos, combatentes exaustos” e esse meu neto assim que parou de ler aquelas difíceis palavras, me abraçou forte e disse que o livro se chamava Os Sertões e que era um livro que contava toda a história de Canudos...

 

segunda-feira, 11 de maio de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - VIII - E SE CONTA DOS DIAS EM QUE NENZÃO VIVEU EM CANUDOS!


 


 

Muito barulho em Canudos: os ganidos dos cachorros, os berros da criança pedindo as tetas da mãe ocupada em lavar roupas sujas nas sujas águas do Vaza Barris, os resmungos sofridos e lamentosos dos velhos com seus reumatismos e o cantar esperançoso da mocinha de peitos duros, empinados: uma mistura de sons nos ouvidos acostumados ao silêncio da vida de vaqueiro, orelhas mergulhadas no sertão a escutar um berro aqui outro acolá da vaca mojando, um distante mééééémé! do cabrito trepado nas pedras do morro e ali, na vila dos Canudos, era aquela musical barulheira, posso dizer, e aquilo encantava: me fazia sentir mais vivo e acendeu dentro do peito uma esperança que – minha pouca inteligência – eu não sabia qual era, mas era uma boa esperança de gentes, de barulhos e de cheiros; era como se eu tivesse, agora, vivendo nas festanças uma feira de gado ou em uma embriagada vaquejada. Gostava daquilo.

Quando estava no segundo dia em Canudos, Estevo reuniu cinco cabras fortes e ordenou que era para eles, mais eu, construir uma tapera para eu morar enquanto estivesse por ali e fui ainda cedinho, o sol escondido no vermelho horizonte, conhecer a data que tinha escolhido: era uma tripa de terreno, dava de fundos para o Vaza Barris, de vizinhança com outras infinitas taperas cobertas com sapé, com escuras paredes de pau a pique desenhando tortas ruelas; e ali levantou-se a minha tapera: quarto e cozinha misturados, duas janelas e o vão para a porta de entrada fechada nos inícios por um cobertor mode vedar a claridade da lua durante a noite e a do sol - e dos curiosos olhares do Bentinho, este sempre a andar pela vila na busca de novidades e dar os recados das novidades ao Conselheiro - para os quentes dias de calor em Canudos: ficava pouco por lá dentro: gostava mais das ruas e do vazio de construção que sobrou frente à branca igreja, acocorar perto da enorme cruz de madeira, imaginando lá dentro da igreja o Conselheiro e as beatas e o Bentinho que era o diácono do Conselheiro para as liturgias religiosas e seu ajudante de ordens, tão poucas ordens, dizia Bentinho: o homem pouco come, banho poucos e quase nunca troca a sua muda de roupa, uma bata azul comprida, de tosco algodão, encardida, sebenta nas alturas do pescoço e nas mangas, santo homem. Santo homem? seria o velho e magro Conselheiro, rosto vincado e tingido de uma cor de amarelo que fazia lembrar rosto de defunto, que deus me livre e guarde de pensar aquilo; mas criei coragem e enquanto ajudava a subir as paredes da tapera para perguntar – voz baixa – para o Anor do Quinquim, um curandeiro que conhecia os segredos das drogarias das raízes e das folhas e das frutas das matas, e como dizia antes perguntei baixinho para o Anor se ele achava que o Santo Homem Conselheiro seria mesmo capaz de vaquejar as nuvens do céu, ajuntando as pequenas brancas nuvens e encurralando todas elas em um curral de tábuas construído pela força da fé de sua imaginação, realizando com seu pensar um enorme curral de negras nuvens, aquosas, líquidas nuvens e fazer despencar águas para molhar o sertão e inundar as margens brejentas do Vaza Barris? seria, você acredita mesmo Anor, o Conselheiro tão fortemente assim milagroso?; e Anor, que diziam na vila ser por demais afeminado respondeu sem pestanejar: duvido não, tenho certeza: vi com estes olhos que um dia a terra vai comer o milagre que o homem fez quando as tropas do mal quiseram arrebentar com Canudos e sua igreja e seus crentes: o homem orou aos céus e nossos homens avançaram e entocaiaram os macacos do governo, meteram fortes medos nos macacos assobiando que nem coruja nas madrugadas escuras, imitando o trinar do guizo da venenosa cascavel e saindo dos buracos feitos a enxadão no meio das espinhosas caatingas, berrando e gritando o nome de Jesus – Viva Nosso Senhor Jesus Cristo e a Santa Igreja Católica Apostólica Romana - e amaldiçoando feias palavras contra república, e avançaram e mataram os covardes macacos que não tinham em seus corações a fé e o Conselheiro salvou Canudos e se deu uma grande festa frente da igreja: Bentinho tocou forte o sino, foguetes comprados em Bendengó de Baixo foram ao ar aguardando a chegada da coluna dos homens comandados pelo negro Pajeú – armados de bacamartes, espingardas, pistolas e facões e cacetes de berimba – que chegaram vitoriosos na vila, cansados mas alegres em suas feições e foram festejados por todos e abençoado pelo Conselheiro, por isso nunca duvide dos poderes de quem está a serviço do bem; e daí já se tinha formado uma roda em volta do Anor, todos largaram o que estavam a construir em minha tapera, deixaram de lado, por um pouco de tempo, suas obrigações, tiraram os chapéu da cabeça e ficaram a escutar: todos, ali, silenciosamente quietos: o Manoel Quadrado, o Chico Ema, o Macambiras, parecendo até que toda a vila se silenciou para escutar a flautosa voz do Anor.

 

terça-feira, 5 de maio de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - VII - FOI QUANDO JOÃO DA MATA CONTOU DA COBRA BUIUNA


 


 

Foi naquela primeira tarde, quase noitinha, na vila do Canudos, adespois de ter visto com estes olhos que deus me deu e que um dia vai virar pó, que o Estevo que me apresentou João da Mata: João da Mata, pernambucano forte, cara amarrada de poucos risos e era o que comandava os piquetes dos jagunços que vigiavam as entradas de Cocorobó e Uauá que é por adonde as forças do mal chegavam armadas com estrangeiras espingardas e canhões, cumpriam ordens da ateia república para invadir, matar e solapar a vila de Canudos do santo Conselheiro. João da Mata morava sozinho, não tinha muito gosto por mulher, em uma tapera nos fundos da vila, na beira do Vaza Barris e aceitou de dividir, até eu construir, a tapera que ele ocupava sozinho. Suja a tapera, faltava ali mão de mulher para ordenar os pratos e as panelas e as cabaças esparramadas tapera adentro misturadas com a espingarda e o facão de brilhante lâmina e com o revólver de cabo de madrepérola com mais de dez riscos - marcas de quantas vidas já tinha dado fim; achei que era melhor armar a rede no canto do fogão, perto da janela, mas João da Mata ordenou: aqui não, a janela é o meu ponto de fuga em caso de necessidade, arme sua rede junto à porta e não me restou senão acatar a grossa voz de João que puxou conversa: e foi em onde que Estevo te encontrou?; sertão da Bahia, pros lados de Feria de Santana, era lá que eu vaquejava; sei, e se cansou da miséria da vida de vaqueiro?; mais ou menos isso que assucedeu comigo e com vosmecê? em antes de viver aqui neste santo lugar, ocupando posto de importância e de confiança do Conselheiro, em antes o que fazia o amigo?; amigos até podemos ser um dia, por enquanto conhecidos e respondo sua arguição: era capanga de um coronel nos sertões de Pernambuco.

Foram estas as primeiras palavras com João da Mata, cada um desconfiando do outro: ele com sua cara amarrada, nunca mostrando os dentes em sorriso, o peito riscados com marcas de punhal nas alturas do coração: se eu não tivesse escorregado de lado o cabra tinha enfiado um pouco mais eu não estava agora aqui vivo para contar o assucedido e foi quando o estômago roncou, dando sinais de fome e resolvemos que era hora de alimentar os buchos e comemos farinha com rapadura e bebemos água na cabaça com a lua chegando ao céu: um vento fraco vindo do norte aliviava o calor, e cada um procurou sua rede – um lá e outro cá: um perto da janela pronto para a qualquer momento fugir, cair no Vaza Barris e o outro – eu neste caso – perto da porta: e, se fosse necessário, para onde iria fugir? atravessar o Vaza Barris, sair na outra margem e lá molhado da barrenta água para que lado correr? sei não, deus do céu, melhor esquecer os perigos do viver. E foi, mais uma vez, João da Mata que teve a iniciativa de palestrar: sabe que vi hoje uma cobra buiuna?, voismecê já viu alguma, lá pelos lados onde vaquejava tinha a buiuna?; conheço não, nunca vi, com esse nome pelo menos nunca vi; buiuna é uma cobra preta, lisa de brilhante, grande e dizem os mais velhos que mansa de veneno, mas aprecia leite de mulher e mode isso assim sempre procede a buiuna: sente de longe, de seu buraco, o cheiro de leite de mulher e se esconde por perto esperando a hora em que todos os dois, a mãe parida de novo o nenê dormem de cansados e então prepara sua arte: em antes molha seu rabo com mel e avança pela cama e lá primeiro põe o seu rabo lambuzado de mel na boca do nenê e chupa o seio da mulher, mama seu leite e o bebê quieto por causa do sabor adocicado do mel, não chora, não geme e assim a buiuna se satisfaz, enche a barriga de leite da mãe; verdade, isso João? nunca em antes ouvi isso, pros meus lados tem esse tipo de cobra não, que deus me livre, nojo puro; pois por aqui tem e até posso te contar do Manoel, vaqueiro e jagunço, que chegou a sua tapera, ao entardecer e viu a mulher e a filhinha de duas semanas dormindo na rede e no alto da tapera a enorme buiuna preta, lisa, enrolada no balaio de estocar milho e Manoel chamou pela mulher e disse que ela se levantasse da rede e fosse até a cacimba para buscar água e que levasse junto a menina bebezinha para ela não chorar e foi só as duas saírem da porta para fora ele meteu a foice no meio da buiuna e dividiu a danada em duas e ele contou que da barriga saia um leite azedo, parecendo coalhada e era leite da sua mulher que a buiuna tinha mamado, acredita não?; acredito sim, não costumo duvidar das palavras de homens sérios e você já viu por aqui a capitão do mato?; que isso, cobra também?; sim, cobra que aparece nos cerrados, cabeça amarela, triangular, corpo manchado de preto e alaranjado e quando enfeza fica toda em pé, só o rabo na terra e em vez de serpentear o corpo para correr, corre demais de veloz com o corpo esticado a cabeça olhando por cima das moitas e se diz que vence inté seriema e cachorro na corrida, mas de verdade, eu nunca vi, só de contar é que eu conheço; e ficamos dos dois, João da Mata e eu, cada um em sua rede cada um com seus pensares, imaginações sem saber o que era de verdade, o que tinha mesmo acontecido nos reais e o que era sonho sonhado de dia, acordado, olhos abertos, uma misturança de coloridas realizações acontecidas ou nascidas nos profundos de nossas almas... dormimos!

domingo, 12 de abril de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - VI - FOI QUANDO NENZÃO CHEGOU EM CANUDOS E VIU O CONSELHEIRO!


 

 


Foi um dia - tardezinha, quase noite - que chegamos – Estevo, na frente, montado em seu cavalo selado, com o corpo tão ereto de elegância que parecia mesmo que tinha engolido uma madeira berimba, depois vinham as quatorze cabeças de novilhos e os cabritos e lá mais atrás eu, montado em pelo no cinza jegue - a Canudos: e como era Canudos?; nos imediatos enxerguei a vila como um amontoado de casebres e marrons taperas que escreviam desenhos de tortas ruelas, nas janelas vincados rostos espiando e nas sinuosas e estreitas ruelas amontoados de gentes: de início o que mais enxergava ali eram velhos e velhas de rostos enrugados, magros, as mulheres com os cabelos presos em tranças no alto da cabeça e os velhos homens com cabelos e barbas compridos, maltrapilhos, pés desnudos – um ou outro de calçado com alpercatas de couro - dedos e unhas sujos e os calcanhares calejados, grossos de caminhar descalço pelas caatingas da vida. A chegada à vila de Canudos aboiando as novilhas e os cabritos – mistura para almoços e jantares – alegrou aqueles todos rostos enrugados e os mais corajosos atreviam perguntas: a vontade de uma lasca de carne no prato fazendo perder a paciência de esperar as repostas que sempre chegam – boas ou nãos -: e quando é que se vai matar estas gordas novilhas?; apreciaria muito ajudar no desossamento, tenho prática nisso, tanto em matar quanto em desossar; outro velho, desdentado, manquitolando: pois eu garanto que tenho ciência em esticar o couro, salgar e deixar no sol para curtir inté ficar bom mode fabricar coletes; e Estevo: quem vai dar as ordens de dia e hora de matar é o Conselheiro, é ele que via isso resolver; e Estevo abria caminho nas estreitas ruelas de Canudos e eu seguia cuidando das quatorze novilhas e dos cabritos que – assustados, tanta gente – obravam o tempo todo, sujando a rua com suas bostas pretas e as crianças – poucas – faziam estripulias querendo puxar as novilhas pelos rabos e tentando montar a cabalo nos cabritos: fora daqui moleque do capeta, berrava bravo Estevo espantando com tapas – dados no ar - iguais aos que se usa para espantar muriçoca e os moleques fugiam e voltavam – curiosos – e os mais velhos seguiam aquela procissão de novilhas e cabritos até a porta da branca igreja, cruz no alto, janelas pintadas de azul, coberta de marrons telhas de barro, linda igreja, imponente meio aos casebres e as taperas da vila e Estevo grita para Bentinho, que orava – rosário comprido nas mãos - na porta da igreja: boas tardes, Bentinho!, podia fazer o obséquio de chamar o Conselheiro?; Conselheiro está a rezar pelo bem de nossas almas, já vou até ele e volto com notícias amigo Estevo; e percebi, naquela hora, que Estevo era muito respeitado por todos, enxerguei isso no olhar do Bentinho que era o grande ajudante do Conselheiro.

E, depois de longa, silenciosa e calma espera, se aproxima, guiado pelo Bentinho o Conselheiro: alto demais em sua magreza, cabelos compridos, barba caindo nos queixos, olhar dirigido ao infinito, seguros passos largos definindo seu andar, roupas esgarçadas, no peito uma cruz de madeira e o rosto marcado por rugas, profundas rugas, rugas desenhadas pela sua alma, alma presa dentro do corpo e aquele rosto enrugado, marcado de feroz serenidade lembrou o rosto de minha mãe que uma noite, à luz da lamparina, disse: sabe, filho meu, que uma ofensa, uma maldade com a alma da gente é igual quando se bate – com martelo de ferro - um prego em uma taboa: fura e mesmo que adespois se retire o prego da taboa ele deixa ali um sinal que fica, escurece o furo, marcando a magoa para os sempres; e Estevo – depois de pedir benção - contou ao Conselheiro do presente do Major Santana: as quatorze novilhas e dos cinco cabritos e não enxerguei sorriso na boca do santo homem ali na nossa frente, quieto, parecia desgrudado deste mundo e me afligiu: será que emudeceu, perdeu a fala, por castigo de deus? será, mesmo, que até um santo como o Conselheiro tem lá suas rusgas com o grande senhor que desconfia de tratos dele com o Belzebu?; quando finalmente falou saiu uma voz rouca, seca, dos fundos do peito: agradeço em deus o adjutório do Major Santana; acerte Estevo, você mais o Bentinho e o Pajeú e mais o Chiquinho e mais o Norberto a hora e o dia da morte e a distribuição das carnes das vacas para o pobre povo de minha cidade, cidade de deus, e de antemão aviso: desse alimento não careço, minha fome é outra; e o Conselheiro virou de costas e caminhou para dentro da igreja para terminar suas orações e preparar suas prédicas, e os velhos e as velhas e mais o Lalau e o João da Mata que acabavam de chegar se juntaram para um cantar:

“D. Sebastião já chegou

E traz muito regimento

Acabando com o civil

E fazendo o casamento!

 

O anti-Christo nasceu

Para o Brasil governar

Mas ah! Está o Conselheiro

Para dele nos livrar.

 

Visita nos vem fazer

Nosso rei D. Sebastião.

Coitado daquele pobre

Que estiver na lei do cão” (1)

(1)  In OS SERTÕES, Euclides da Cunha.

 

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO - V - CONTA DA IDA DO VAQUEIRO PARA CANUDOS


 

 

Pois o que aconteceu foi isso mesmo que o senhor desconfiou; o senhor está certo: andei dias e mais dias sem vontade alguma de rememorar minha história, meio que enjoado da vida, vivendo tempos de querer não pensar no amanhã, remoendo uma desilusão um tanto besta, sem sentido: minha mãe ficava brava com o pai quando ele dizia que estava desiludido: e posso saber por quê? qual o motivo? não tem comida na despensa? o fogão está sem lenha, sem gravetos, com o fogo apagado, as panelas vazias, sem nada mode cozinhar? tá com alguma doença dolorida, brava? desiludido com o que, posso eu saber? vai pra caatinga, homem de deus, vai cuidar dos bichos que é isso que cura essa besteira de desilusão; sempre me lembro dessa fala da mãe, mãos na cintura, os cabelos negros separados ao meio em duas tranças grossas presas formando um coque no alto, um filho - quase sempre – dependurado no quadril, o menor – raspa do tacho, como ela dizia - com três anos, boca cheia de dentes e teimando em mamar seus peitos secos e é disso que me lembro quando me despedi dela, tinha que cuidar da vida, sair de casa e senti, naquele dia de despedida o áspero de suas mãos calejadas - de socar milho no pilão e plantar aipim e cortar mandacaru para os cabritos - me acarinhando e depois, quando cheguei na porteira de arame que separava o terreiro do pasto de bois, ela na porta da tapera de adobe com a mesma mão me acenando, balançando na altura de seu rosto para lá e para cá, se despedindo lentamente e seus olhos foram se umedecendo, se molharam e soltaram lágrimas que caíram rosto vincado abaixo tanta era a certeza de que a gente não se veria mais, e como será que adivinhou?; mas, como dizia antes, andei, de fato, acabrunhado, vontade pouca de rememorar a vida: esta mesma vida que continua com seus perigos e suas felicidades, suas desavenças e amarguras; acho, no entanto, que é melhor parar de gastar os miolos com isso: minha cabeça nunca foi boa para pensar o dia de amanhã, mais acostumada ao dia a dia das caatingas, os miolos cozidos pelo sol quente querendo sempre escapulir de qualquer pensamento que não fosse as lidas da realidade diária, me fazendo conformar com o que sou, com o destino que deus me enfiou goela abaixo aqui na terra que ele criou e tem hora que penso – deve ser pecado – que criou mas não cuida bem, um deus igual aos seus filhos daqui da terra que por preguiça deixam de varrer caprichosamente o quintal, de catar as sujeiras espalhadas pelos porcos e cachorros e galinhas e não cumpre as tarefas de cuidar da horta, por preguiça de até a cacimba e encher latas d’água para molhar os secos canteiros e não junta, na peneira, os estercos de galinha para adubar e fazer tudo verdejar e crescer: jiló, alho, quiabo, aipim, abóbora...

Relembrando para não perder o sentido do que ando a contar: saí, de jegue, mais o Estevo – ele garboso, montado em cavalo selado – da roça em que trabalhava como vaqueiro, tocando em junto dele as doze cabeças de gado que iriam virar mistura de comida para os acampados de Canudos, e era grande a vontade de encontrar o Conselheiro de frente, ver os crentes e as beatas e mais gentes e mudar a vida sofrida de vaqueiro; a viagem durou dias e dias, mais de semana em lenta viagem: em assim que o sol apontava, mesmo um pouco antes, era quando a gente iniciava a jornada que durava de quatro a cinco horas, pois o gado, fraco pela seca, magro, não conseguia andar mais que isso e então carecia de descansar assim que encontrasse um pé de umbu - o verde meio ao cinza da caatinga –, o umbuzeiro formando boa e escura sombra e ali, debaixo da copa, gozando o frescor de sua sombra, o cavalo, o jegue, os gados e mais eu e o Estevo todos quietos, gastando o tempo até que o sol, caindo no oeste, perdia um pouco sua quentura e era, então, hora de seguir viagem até o dia escurecer de vez e descansar sob o céu enfeitado de estrelas, nenhuma nuvem prometendo chuvas e no outro dia era a mesma coisa: Estevo, eu, o cavalo selado, o jegue e as doze cabeças de gado – solitários, juntos – devagar andando e cansados disputando lugar na sombra de um umbuzeiro.

Uns dois dias em antes de alcançarmos Canudos, a gente percorria as caatingas e os sertões ali pelos lados de Queimadas, beirando o rio Itapicuru, e era um início de tarde quando o Estevo ordenou que eu permanecesse embaixo da sombra do juazeiro cuidando do gado, porque era melhor que ele chegasse sozinho até aquela casa grande, branca, janelas azuis, coberta por telhas de barro, que se enxergava bem lá longe, no pé da serra do Aracati e que ali era a sede da fazenda do Major Santana, homem de muitas posses, fazendas tantas, uma se juntando com a outra, passando as linhas dos horizontes, pulando e atravessando serras e rios e desobedecendo divisas de municípios, lestes e oestes, total grandeza, brancos e chifrudos gados marcados nas ancas com o MS juntos, marca de ferro queimado nas ancas, capangas e jagunços fazendo segurança, armados, bravos, vestidos com roupas de couro: pelo Major Santana, matamos e morremos, foi o que me disse – adespois - o Jesuíno, falando grosso do alto de sua magreza, desdentado, cabelos lisos caindo no pescoço, o rosto e o peito marcados com grossos mandarovás de facadas recebidas e os outros colegas capangas, menos chefe que Jesuíno, falavam que ele tinha o corpo fechado: mas peço silêncio, que o que falo aqui fique só entre nós, conto mais em respeito a sua amizade que quero possuir, pois se o homem desconfia que te contei é capaz de querer castigar, exigir que eu prove, e como é que se pode provar que alguém fez contrato com o belzebu? para poder provar só, mesmo, enfiando uma faca para ver se o homem tem – de verdade - o corpo fechado, e para isso me falta coragem e não vejo necessidade, então que fique o dito só entre nós dois, melhor assim o dito pelo não dito, o contado e não escutado; mas foi mais de um que segredou que Jesuíno tinha o corpo fechado, que não morria de arma branca, tinha trato com o demo, deus me livre; e por volta de duas horas passadas, sol ainda no alto do céu, foi que voltou o Estevo e mais dois outros cavaleiros, o Estevo falando firme e grosso: tudo na paz de deus, é aqui que vamos pernoitar, Major permitiu que a gente amarre nossas redes em seu curral e ordenou que se fizesse comida para a gente se fartar, cobrir o estômago vazio e chegamos na casa branca da fazenda do Major Santana: ele paramentado em terno completo de cor caqui, chapéu de couro, corrente de ouro no peito prendendo relógio roskofpatente que vez ou outra ele consultava, acho que era mais para ter consciência do tempo que lhe sobrava para tanto poder; na manhã seguinte boas novidades: o Major chamou Estevo e contou que tinha resolvido que para a gente deixar em sua fazenda as magras doze cabeças de gado e que em troca, deferência ao seu respeito e à sua amizade com o Conselheiro, a gente ia poder levar quatorze cabeças de novilhas e ainda de sobra cinco cabritos que era para presentear e alegrar e ver se , assim, dar mais força ao Conselheiro, que andava preocupado, triste, colocando toda a fé em suas rezas e nas ladainhas e nos terços e nos rosários declamados em procissões com as beatas e o mundão de gente que tinha se juntado na vila de Canudos, todos ajoelhados, mãos nos peitos, os olhos fechados, a fé clamando pela vitória contra as forças da república, mendigando garantias aos santos da igreja na luta contra os macacos armados de rifles e de canhões, que vinham para destruir e fazer sucumbir Canudos abaixo de um dilúvio de balas e tiros o reino do senhor que Conselheiro construía nas misérias do sertão de Canudos: viva deus nosso senhor, viva a santa igreja!

sábado, 21 de fevereiro de 2015

A LONGA HISTÓRIA DO VAQUEIRO NENZÃO – IV – FOI QUANDO NENZÃO RESOLVEU DEIXAR A VIDA DE VAQUEIRO E FOI JUNTO A ESTEVO PARA CANUDOS!

2009 Bahia 153ret

E foi passada aquela manhã com a gente – Estevo e eu - comendo a carne da onça suçuarana com farinha e rapadura e bebendo cachaça: quando se findou uma garrafa, Estevo catou nas mãos a verde garrafa vazia, olhou para o céu e atirou com força para onde estava a morta cabeça e os fedidos intestinos da onça, um urubu já rondando em baixo voo o que restava de comida, a cabeça morta da onça agora negra, preta de vespas, marimbondos assustando os calangos com tanto zunir, e Estevo atirou forte a garrafa vazia para junto da cabeça da onça – Oxenti, vida mais dura de boa – e catou no bornal outra garrafa verde, cachaça, arrancou a tampa com os dentes e o cheiro da pinga invadiu o sertão, enfiou miolos adentro, inundou o corpo, a língua inchou, ficou molengona para falar, contar histórias, cresceu dentro da boca: mais um gole?; só mais um, estou tonto de bêbado; as pernas bambeando, o sol queimava os olhos, um torpor de preguiça tomou conta do corpo, melhor deitar, esticar o corpo no girau, barriga cheia... Dormi e acordei quase no fim do dia: a boca ressecada, uma sede dos infernos, o Estevo – esticado - roncava no outro girau, perto da janela da tapera, e o que me deu, quando acordei, foi vergonha de mim mesmo, onde já se viu homem com minha idade ficar bebendo cachaça em dia que não é dia de feira, de vaquejada nem de domingo, isso é coisa de vagabundos e sou vaqueiro, honrado vaqueiro, mas vou deixar a vida, já decidi e não é por causa da força da pinga na minha cabeça, não é por causa da tontura da cachaça, em antes de ficar bêbado já havia decidido e continuo firme: deixo, e logo, a vida de vaqueiro, vida com tanto isolamento que a língua acaba se esquecendo de como é que se fala, tanto desuso, ninguém com quem parlamentar e reclamar do sol quente, das vacas que estão a morrer de sede e de fome, contar os de bom e os de ruim e ter alguém para assistir – junto, dividindo a tristeza - no pasto as vacas e bois e borregos carregando suas peles em riba dos ossos da cacunda caatinga afora, bichos, filhos de deus, sem força para viver, quero isso mais não, decidi.

E a noite chegou com o céu estrelava devagar, nuvem alguma para agradar a esperança de chuva; nada de chuva, pura secura: uma semana em antes tinha feito – a noitinha, logo ao fim do dia - a simpatia e a reza das sete pedras de sal; conhece, não?; explico a simpatia das pedras de sal, é assim tal como procedi: tão logo o sol se escondeu no horizonte, fiz o nome do pai e escolhi sete pedras de sal grosso para esparramar no quintal, a alma com esperança, fé e muito cuidado com a simpatia, que eu queria por demais que desse certo, e orando, olhos no céu estrelado, esparramei as sete pedrinhas de sal, porque era sete o número de meses que faltavam para chegar a dezembro, deixei as pedras rodeando em volta da imagem de Santa Luzia no quintal e fui dormir esperançoso da resposta da santa e mesmo depois de deitado no girau, dormindo, continuei – toda vez que acordava de noite - pedindo a Santa que encharcasse – com suas lágrimas - as pedras de sal para eu descobrir – vendo as pedras molhadas, derretidas com as lágrimas da santa - os meses em que o sertão teria chuvas e a Santa atendeu a meu chamado, apareceu no meu quintal e chorou um choro triste, mas um choro sem lágrimas, incapaz de encharcar nem mesmo uma pedra de sal, o mês que seria de chuva, nada, todas as pedras de sal secas, secas, esturricadas, vai ter chuva este ano não, nenhuma esperança, e se iniciou ali minha decisão: vou m'imbora!

Deitei no girau pensando naquela falta de esperança, esmiolando as misérias da seca e da fome e da impossibilidade de sonhar melhor futuro, e acho que dormi assim, um sono de muita tristeza até me acordar com o Estevo que, madrugada escura, se levantou estalando os paus do girau, fazendo barulho, abrindo a boca com dois enormes dentes de ouro: AIIIIIIIIHHHIIAA e UHHHHHHHS, sentou na beira do girau, se benzeu com o sinal da cruz, levantou de vez e saiu tapera afora para desaguar; levantei-me e ficamos os dois – no terreiro da tapera – amigos, desaguando mijo de urina em cima da esturricada terra, o céu negro cheio de estrelas, uma estrela caiu, fiz figa com os dedos da mão direita: ‘dia, Nenzão!; ‘dia Estevo, pensa em ir hoje mesmo embora?; ah, sim, careço, e o compadre tá igual a eu com a cabeça doendo tanta pinga?; não gostei de ser recordado da bebedeira, queria esquecer aquilo, me envergonhava e Estevo: voum'bora hoje ou amanhã meu compadre, fico no aguardo do sal e do sol curtir o couro da suçuarana para mode fazer um colete; e Estevo continuou a parlamentar, mais sozinho do que comigo, não conferindo pedidos, consultas mas contando de decisão já tomada: levo daqui, das rezes que o compadre toma conta, o tanto que a gente achar que consegue andar viva por mais uns dez dias, vou devagar, em marcha lenta do cavalo, aproveitando as madrugadas e as tardinhas, senão o gado não aguenta e morre antes de chegar para matar a fome do pessoal de Canudos, careço de chegar o quanto antes; pensei, memoriei um pouco e disse: assim, nessas condições, do jeito que o amigo quer, acho que vai encontrar umas doze ou treze, melhor doze porque treze dá azar; e o resto?; o que sobra por aqui?, pura espelunca, vai morrer tudo, sozinhas...

No quintal da tapera, esticado com firmes troncos de berimba, banhado de sal, o couro da suçuarana secava, sem feder carniça, esticado, lembrando uma bandeira do divino colorida de amarelo com olhos negros, aqueles olhos tudo olhando, vigiando, nenhum vento, o sol dominando o mundo, abrasador, um ou outro calango com coragem de caçar suas comidas e a sombra do umbuzeiro servindo de descanso para tanto desconforto de calor; Estevo quebrou o silêncio, com sua voz grossa: carece de a gente acertar a viagem de ida para Canudos; respondi mais com pensamentos, tantas palavras necessárias: por causa de mim, tem que se mudar o roteiro, necessito de escrever e deixar bilhete no papel, escrito, para o patrão informando minha decisão de deixar a vida de vaqueiro, contar no bilhete de quantas vacas e quantos bois tinham ficado sozinhos aqui neste fim de mundo, que estava indo embora levando as vacas marcadas com o FJ e as que aqui ficaram logo morreriam, seca nunca vista igual, acabou o mandacaru, não sobrou palma, pura secura amarelada, e que eu agradecia sua confiança e que não queria mais viver a vida de vaqueiro e terminava o bilhete com bonitas palavras, tipo assim cordialmente vaqueiro Nenzão; e partimos, com doze rezes, Estevo em cavalo selado com arreio ornado de douradas estrelas, garrucha de dois canos no ombro, bornal de couro de cabrito e eu montado em uma jumenta, a pelo, nas costas – pendurado – trouxa de duas camisas, uma alpercata comprada na feira de Mocambo, as pernas apertando a barriga da jumenta, enormes orelhas: s’imbora conhecer novas gentes, religiosas pessoas, rezadeiras, enxergar o Conselheiro com estes olhos que um dia a terra irá comer... dentro de mim: esperança!