segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

AS TRÊS MARIAS–XII–FINAL: MELOPÉIA NO CORETO DA VILA!

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E a vila em todas suas casas e suas ruas e seus quintais respirava ares de novidades, muitas, diminuindo o marasmo e o calor que chegava forte em outubro, se preparando as terras e as pessoas para as chuvas e trovoadas fortes que caem nos meses de novembro e que chegam até março, dia 19, com suas enchentes, as enchentes de são josé, que encharcava, umedece fundo a terra para o plantio do feijão das’água e o milho, para as pamonhas e os curaus de janeiro, janeiro das bandeiras do divino ! Novidades quais? o que que se falava – cochichado ao pé do ouvido – nas casas e nos bares e mesmo na igreja, mas aí só antes da cerimônia da missa ou da reza ter seu início?

Primeiro se falava que Moacir voltou de carro novo, trocou o Ford por uma baratinha Chevrolet, vermelha, veloz, barulhenta, com partida na chave e não na manivela, e esta explicação técnica era do seu Ítalo, mecânico da cidade durante o dia e músico à noite, afamado sanfoneiro e maestro de sua banda que animava os bailes da vila e das vizinhanças; e dona Olinda, sua mulher, italiana gorda, peitos enormes, cozinheira afamada pela massa de seus capeletes e por fazer cabrito ao molho, que falou: ‘cê viu, Ítalo, que na frente da baratinha veio a Cidona e que Didinha e dona Lourdes vieram no banco de trás, junto das malas, aí tem coisa; e ele, sisudo, não tive esta ‘tenção, vi não.

Mas, de fato, na viagem de volta de São Paulo, no carro novo de Moacir, presente do pai, a professora Lourdes e Didinha voltaram no banco traseiro, decisão pensada e conversada e, sendo justo, decisão mais tomada pela professora que sabia estar assumindo, na vida do amigo Moacir, um novo papel. E houve momentos na viagem de volta – quando a estrada tinha enormes retões, onde dava para ver o horizonte lá longe, o fim marcado pelos pés de eucalipto e pela serra pintada de azul claro, e então – nos retões da estrada - era que a enorme e branca mão direita de Moacir, se sentia livre das ocupações de dirigir e então tomava a pequena e negra mão de Cidona e se acariciavam os dedos e os olhares dois se encontravam no espelho retrovisor e se melavam de carinho, sorrisos pequenos de felicidade nos lábios, quão boa estavam achando que era a vida!

E de Didinha, o que falavam? Nada diziam: por mode da respeitosa quietude de Cidona, de Moacir e de dona Lourdes não esparramou pela vila os ocorridos em São Paulo, os passeios na garupa da bicicleta de Natalino, seus encontros, seus amores e Didinha continuava a ir à missa com seu véu negro de viúva, de mulher, não mais moça virgem, que agora era, vestidos coloridos, sorriso nos lábios, rezando e pedindo, no confessionário, perdão pelos seus pecados e o padre: está arrependida?; na maior parte do tempo não, seu Padre; e ele: reze três pai nossos e uma salve rainha e está perdoada minha filha, deus é pai, e Didinha entrava na fila dos que iam comungar o santo corpo de cristo.

E não se pode esquecer, o contador seria injusto, do tanto e tanto que se falava, na cidade, da ópera que seria apresentada no coreto, Cidona fantasiada de rainha, Moacir, loiro, bonito, deixando de lado sua seriedade severa, seu sorriso curto – mostrando pouco os dentes, nada de gargalhadas – fantasiado de amarelo, de conde romano, cantando com toda sua goela, a veia aorta quase saindo fora, grossa, olhos cerrados, sonhando o futuro com seu novo amor, cantando – tenor - os desenganos do amor; e era muito o que se falava da ópera que na noite de dez de outubro seria encenada no coreto da cidade, os moradores levando cada qual a sua cadeira para poder ver e ouvir sentado, no conforto, o jardim cheio de cadeiras, gentes silenciosas, mesmo as crianças: psiu! quieto, vamos escutar a ópera; a vila se fazendo de importante, orgulhosa a vila até mais de quando suas mulheres recolheram ouro para o bem do brasil, isso na revolução de trinta e dois, quando homens da vila foram mortos pelos mineiros; agora não, nada de mortes, revolução constitucionalista, tristezas: ópera com canções em outra língua na voz de Cidona e do Moacir de tão bonita voz, será porque que ainda não cantava no coro com Cidona e frei Elias: salmos, kyries, no coro da igreja!

Afazeres! Muitos: a vila parecendo um carreirão de formiga cabeçuda, andando, cortando, correndo. A música, tal como as esperadas e temidas chuvas de dezembro, inundando a cidade, os raios ciscando o céu azul, iluminando – de noite – os caminhos, o branco das casas, soando forte: são gerônimo, santa bárbara a virgem, proteja-nos, nada de pegar em faca, garfo e espelho, isso chama raio, deus livre e guarde, quatro montinhos de palma benta – secas, benzidas não domingo de páscoa – acesas nos quatro cantos das casas, tomara que no dia da ópera não chova, ainda é outubro, as chuvas veem mesmo, para valer, em novembro, do dia de finados pra frente. Seu Alfredo, dono da A Elétrica, que vendia lâmpadas e rádios, passava os fios para os alto-falantes reverberarem os sons e as vozes, a vitrola ligada, testando os discos e resolveram chamar o Nenê do seu João que era mestre em por a agulha no lugar certinho da música, adivinhava a ranhura do disco elepê, sem fazer crequi! crequi! só ele mesmo, capaz de tirar e por a agulha com tanta precisão, e ele dizia que era por gostar muito de ouvir música e Natalino, que veio de São Paulo, responsabilizou-se por desenhar os panos para cobrir o fundo do coreto, formar um palco, e desenhou, no pano de colher café uma floresta negra e verde, escura, floresta dos druidas, diferente da floresta que margeava o rio Grande, que tinha onça parda e pintada, na floresta dos druidas, Natalino disse que havia gnomos que são parecidos com o saci Pererê, só que tem duas pernas, será que tem mula sem cabeça na floresta dos druidas, mas não tinha coragem de perguntar, isso podia desviar a atenção do Natalino no seu desenho bonito e Didinha trouxe, hora do almoço, marmita com angu e frango e na vila todos diziam que os dois se amavam, que iriam se casar, Didinha indo morar longe, e quem cuidaria do Pitoco e do Nego, e quem é que iria bordar as toalhas, os panos e toalhas das igrejas e as batinas dos padres do bispado de Guaxupé?

E Cidona disse para o Moacir que os enjoos continuavam, que não era culpa da viagem, das curvas da estrada, da velocidade do carro e que a boca salivava salgada o tempo todo, que o sangramento não veio; será? acho que sim; contou para sua mãe?; não, inda não; melhor assim, espere que eu te levo amanha no médico da Santa Casa e se ele confirmar acho que o correto é no domingo, hora do almoço, a gente falar; será que é menino?; quero menina, disse ele ao mesmo tempo em que acariciava a barriguinha de Cidona e dizia: filho meu!

No dia mesmo da ópera no coreto, o jardim cheio de gentes da cidade e até mesmo, tal qual na história de Manuelzão que veio para sua festa o João Urugem, que vivia nos baixios, na gruta da serra, se assemelhando um bicho do ato, para a ópera da vila, apareceu - quem convidou? como é que ficou sabendo? - quieto, roupas sujas, Diquinho, o que mais sabia contar histórias e vivia, molambento, de adjutórios, e Diquinho sentou-se na grama, cabelos negros, olhinhos miúdos, fedia um pouco por falta de banho e então ficou um pequeno vazio perto dele, ninguém gosta de fedor, embora todos gostassem das histórias contadas por Diquinho, magro, feio e foi Moacir que iniciou os cantares: “Fala mais baixo. Outra, sim, Adalgisa. Tens de vê-la...” a voz enchendo a praça, todos atentos, o céu estrelado, lua quarto crescente, não é lua de chuva e o povo não sabendo direito a hora de aplaudir ficava no aguardo das ordens de Natalino, que segurava a mão de Didinha, os dois sentados em duas cadeiras coladas uma na outra, na outra fila de cadeiras tinha a professora Lourdes, sozinha agora, mas de onde sentava se via que ela podia ver meio de esgueio o seu amado Vicente que estava com a família, e se olhavam e, escondidos, se viam e então chegou a hora de Cidona cantar: “Vozes sediciosas, vozes de guerra, quem ousa elevá-las perante o altar do deus?...” e o povo da vila, emocionado com tanta beleza, não esperou as ordens de Natalino e aplaudiu, muito e Natalino seguiu o coro das palmas, feliz e soltou a mão de Didinha e bateu palmas, bem forte, plac plac plac.., e Didinha sorria e aplaudia a voz da amiga e pensava no segredo: era ela e Natalino que seriam os padrinhos de batismo da criança que Cidona tinha ali na barriga pequena, vai ser uma bela criança: negra e branca, com certeza será alta, os dois são grandões e a minha criança quando um dia eu tiver como será, o Natalino baixinho, eu fortona, bunda grande e redonda e ele magrinho, acho que será uma bela criança, branquinha, e vai ser amigo do filho de Cidona, com certeza.

A ópera chegando ao fim! Moacir cantou: “A tua fogueira, Norma, é a minha; mais santo - começa nela o eterno amor” e Cidona : “Pai, adeus” e o povo aplaude, todos querendo cumprimentar, ver de perto a Norma e o Pollione, Cidona e Moacir, tocar no vestido brocado de Norma, na camisa de seda de Pollione; chegou a ter certo empurra empurra, cada qual querendo tocar, cumprimentar, dizer parabéns! bravo! e Lourdes com os olhos marejados abre caminho e abraça os dois, Natalino se junta ao seu Ítalo para tirar os fios do som, Nenê tira o elepê da vitrola, encapa o disco e as pessoas vão se dispersando, o céu continua estrelado, a vila vai dormir.

A praça do coreto fica vazia, sobra apenas Diquinho que procura um banco para dormir, já é tarde, na torre da igreja o sino badala dez vezes, e no banco Diquinho murmura baixinho, entre os dentes: findou a história das três Marias! E já com os olhos fechados, tanto sono, teve tempo de pensar: pois então, acabou-se a história, morreu a vitória!

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

AS TRÊS MARIAS–XI–AMORES EM SÃO PAULO!

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Na volta do Teatro Municipal Moacir dirigia devagar e apontava os importantes: olha ali o Edifício Martilnelli; ali é o Mosteiro de São Bento e seu famoso relógio; na rua o menino gritava: olha o jornal, olha o Estadão, olha o jornal! o relógio badalou doze vezes: um badalado gravemente sonoro e os homens engravatados, na rua, conferiam se seus patacões, corrente de prata ou de ouro, marcavam a hora certa? Será? e Moacir encurtou o caminho de volta pelo viaduto Santa Efigênia, o Anhangabaú lá embaixo, os homens vistos tão pequenos andando, fumando seus cigarros.

Chegaram para o almoço. Dona Amélia, sempre prestativa e útil, encaminha as duas Marias para seus quartos – se arrumem logo que o almoço está quase pronto - , e foi para a cozinha provar o sabor do frango assado, do molho do macarrão, enfiou o dedo na jarra do refresco de tamarindo para sentir o gelo e achou que estava tudo bom, sorriu contente e voltou para a sala. Na sala Moacir e Fátima bebericavam licor de jabuticaba, se falavam, narravam as novidades: Cidona e Didinha ficaram surpresas com a beleza do municipal; imagino: é tudo muito bonito, mesmo e você retirou os ingressos?; sim, estão comigo, bem guardados e você continua mesmo teimando em não ir? vai perder uma belíssima apresentação, a orquestra está afiada, o maestro, ainda há tempo...; vou não, Moacir, a festa deve ser sua e de Cidona, penso assim; obrigado amiga, mas você, em nada atrapalharia a nossa festa; vocês, homens, não conhecem mesmo as mulheres: atrapalharia sim, amigo, agora você é da Cidona e não imagina o tanto que estou feliz por sua felicidade. Dona Amélia chega, passinhos rápidos, tec tec tec no assoalho, avisando de sua chegada, sorri e se serve de licor, quero bebericar também, estou feliz por demais com os acontecimentos que ando a adivinhar, novidades, felicidades.

Na mesa, para o almoço, toalha de linho branco cobrindo, talheres ao lado dos pratos, copos para o suco de tamarindo, sobe pela sala o perfume do frango assado, do arroz, do feijão, fumega a travessa de macarrão coberta do vermelho dos tomates, uma folhinha aqui e outra acolá de manjericão, a fome atiçada por tantos perfumes e cheiros, a vontade de encher o prato, mas vamos ser educadas, não vamos fazer feio aqui, cortar o frango com a faca segura pela mão esquerda, é assim que se faz na casa dos ricos, mas está bom demais o macarrão e todos comem e falam e lá fora o sol bate forte, a sombra do buriti desenha seu retrato em cima da grama do jardim, e o pássaro preto e os curiós e o pintassilgo e o canário da terra – cabecinha vermelha - , presos na gaiola, cantam e cantam, orquestradamente, sem maestro.

E Didinha lembrou do Nêgo, seu pássaro preto e do vira-lata Pitoco que ficaram na sua casa por conta do pai de Cidona e se entristeceu, bateu saudade de seus companheiros de vida, e seu eu vier morar aqui será que posso trazer os bichinhos, largue de pensar besteira, pode ser que o italiano faça o que fez comigo com todas as mulheres que encontra naquela sala cheia de vestidos brocados, e será que com as outras a névoa esconde as poucas vergonhas do anjo da guarda e do espírito santo, e comeu um pedaço do peito do frango e se lembrou que em sua casa, se tira os ossos do peito e põe para secar no varal para jogar: aposta-se e cada um segura em uma ponta e puxa e quem segurar o lado que quebra, que frissura, perde a aposta, e no varal de casa tem mais de cinco ossos do “jogo” secando, esperando, quero apostar com Natalino, quem perder paga e o que você aposta? quero um beijo...pare de pensar besteira na mesa, os outros podem desconfiar. Cidona aceitou a sobrecoxa do frango que dona Amélia serviu, segurou a faca com a mão esquerda cortou pequenos pedaços e delicada comia com prazer, estava faminta e Moacir olhando carinhosamente, melado para ela, faça assim não, me envergonho, mas Moacir, orgulhoso, feliz, teimava em desobedecer e continuava a olhar umidamente, penetrava em seus olhos e em seu corpo, ia até o fundo de seu ser e enxergava no fundão um brilho de felicidade que arrodeava a alma, o coração, parecia as auras dos santos da igreja – nossa Senhora, pecado pensar assim, será? e ela resolveu, também, olhar dentro dos olhos do Moacir e enxergar lá dentro, ver se aquela luz aquecia seu corpo de amor, felicidade deve ser isso, pensou e na mesa, todos, em silêncio, talheres postos sobre a toalha, reverenciaram aquele momento de celebração de amor.

Natalino, cumpriu o prometido. Chegou cantarolando a estrofe do coro dos homens da Cavalaria Rusticana, era sempre assim, ficava com a ópera na qual estava trabalhando na cabeça e por onde ia ficava a cantarolar ou assobiar coros, árias - era assim que seu coração dizia ao mundo de suas alegrias – e também, outro costume, era de, em cima da bicicleta, ficar tocando a sua campainha – trim, trim, trim ... buscando o ritmo da música; chegou e estacionou frente ao portão sua Monark Sueca, nova, freio de mão, amarela, frisos platinados, pneus balões. Toca a campainha da casa de Moacir e enquanto espera Didinha cantarola:

“...noi stanchi riposando dal lavoro

a voi pensiano,

o belle, ochi-di-sole

o belle, ochi-di-sole,

a voi corriamo...”

E Didinha chegou ao portão: saia godê, preta, blusa com mangas compridas, um elegante bolsinho com suas iniciais bordadas em azul, rosto brilhante, sem pó, batom vermelho desenhando os contornos da boca e ele: vamos passear, suba aqui, apontando a garupa da bicicleta e ela se constrangeu: será que posso? será que se usa mulher andar na garupa de bicicleta aqui na cidade grande, na vila só se vê menina mulher na bicicleta, na garupa dos pais ou dos irmãos, será que vou cair...Natalino percebeu sua indecisão e orientou: senta aqui, de lado, segure no selim e em minhas costas, não tem perigo, ajuste bem a saia para não pegar nas correntes, vamos; e lá se foram: ziguezagueando rua afora, a trim! trim! trim!, os pneus balão amaciando os paralelepídos negros, e a canção “o belle ochi-di-sole” no ar e as buzinas dos carros e na São João um Ford preto, limpo, bonito, atravessa a rua e freia em cima da bicicleta, buzina alto e o motorista aponta o dedo e xinga: merda de italiano; e Natalino responde: fare in culo! e Didinha, amedrontada com tudo aquilo, cruzou as suas duas mãos pelas costas de Natalino, que sentiu o calor de seu rosto, e, esperto, freava subitamente a bicicleta com força e o rosto de Didinha colava em suas costas quentes, os dois: suas costas e o rosto branco e liso de Didinha; para onde estamos indo?; e ele: para minha casa, quer ir?; sim, quero.

E Didinha passou a pensar e a pedir que a névoa que encobre os pecados pousasse forte sobre ela, encobrisse seu corpo forte, suas pernas redondas, seus seios fartos e firmes que ansiavam por amor, e amor deve ser isso, esse desejo forte, encoberto pela névoa, escondido do olhar do anjo da guarda e do espírito santo, e será que depois o anjo da guarda volta a tomar conta de mim e canta baixinho, rosto colado nas costas de Natalino:

“...Que beijinho doce

Foi ele quem trouxe

De longe prá mim

Se me abraça apertado

Suspiro dobrado

Que amor sem fim...”

A bicicleta sai da Avenida Nove de Julho e entra a esquerda em uma ruazinha estreita, as casas enfileiradas – parede-meia – as crianças da vizinhança abanando a mão e pedindo a Natalino que desse uma voltinha com elas em sua bicicleta e ele hoje não, amanhã, e parou a bicicleta frente ao número 671 e lá deixou a bicicleta, tomou a mão de Didinha e convidou-a para entrar: entre a casa é sua...