quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O SOLDADO JUGURTA

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“ A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu”; “in” Jorge Luis Borges, Pierre menard, autor do Quixote, Ficções, pag. 43.
“Até que enfim chegou um ouvido e uma mente para escutar o que eu quero contar”, alegra o velho contador de histórias com a chegada do amigo.
- “Conta.”, disse o amigo.
- “Vou contar a história de Jugurta, o soldado que queria ser rei.
E o velho começou a contar:
Jugurta, um celta, era um homem forte, alto, loiro, olhos infinitamente azuis e possuidor de uma coragem ímpar e um de inconfessável amor à guerra, à luta. Já tinha, aos dezesseis anos de idade, mais de um metro e noventa de altura, os peitos largos, os braços fortes e o corpo imberbe: pequenas penugens fantasiavam o futuro bigode e mesmo a na região pubiana os pentelhos teimavam em não nascer deixando mais visível e desprotegido o sexo. E foi graças a esta sua situação, digamos biológica, que sua fama começou a se estender por toda a região dos dácios.
Quando, ainda adolescente, Jugurta, obedecendo a tradição de sua tribo, saiu de sua aldeia para matar um não celta e trazer sua cabeça para apresentá-la aos anciões e guerreiros da sua tribo e com isso receber a tatuagem de guerreiro, Jugurta ficou sete dias e sete noites fora, apresentou-se apenas no oitavo dia ao entardecer, com sete cabeças cortadas, presas entre si pelos cabelos. Apresentou-as aos anciões e guerreiros de sua tribo, orou, massacrou-as para liberar suas almas e as levou para a floresta, oferecendo-as a Aracha, que sob a forma de gralhas, se alimentam da cabeça dos guerreiros mortos. Tatuado como guerreiro, ainda adolescente Jugurta, também pelo seu tamanho, força, coragem e amor à guerra foi recrutado para formar, junto aos homens de sua tribo, um destacamento guerreiro que planejava realizar incursões e saques ao acampamento dos invasores romanos.
E as repetidas e inusitadas vitórias nessas incursões, encheram os bárbaros celtas de orgulho, e fez com que, animadíssimos, estas incursões se tornassem cada vez mais frequentes e ao destacamento da tribo de Jugurta, liderados por Decébalo, juntaram-se desertores e assaltantes que a cada vitória e saque, se fortalecia frente a fragilidade encontrada nos acampamentos inimigos.
E Decébalo e seu exército guerreavam, saqueavam, faziam reféns, extorquiam.
Uma noite, após fácil vitória e total destruição de uma pequena cidade cercada por um alto muro de pedra, na região da Gália, Decébalo reuniu seus homens fortes para falar do futuro. Todos oraram a Badba, deusa da guerra em forma de corvo, para que continuasse a protegê-los e, agradecidos, ofereceram vinte e sete cabeças inimigas. E depois da cerimônia falou aos seus homens: o que pensava, e queria, disse era “reunir todas as tribos das montanhas, superar suas rusgas e, unidas, fortalecerem-se para uma luta permanente completa expulsão dos invasores.” E Decébalo, com a autoridade de guerreiro vencedor, continuou:“ vamos agora, dar uma trégua aos inimigos, e buscar os chefes de todas as nossas tribos e reuni-los para com a união buscar a vitória definitiva até que os altiplanos sejam acrescentados às montanhas tornando-se tudo, altiplano e montanhas, um novo reino, o reino dos celtas”.
Jugurta foi escalado para encontrar os chefes das tribos das montanhas, perto do mar e trazê-los para a grande reunião, que aconteceria no próximo solstício de inverno. E Jugurta montado em seu cavalo e tendo Sencha como companheiro, cavalgou durante mais de três meses pelas montanhas e pelas praias na busca de tribos celtas. E a todas que encontrou procurou o chefe , os anciões, orou e com Sencha, iniciou a composição de uma nova história do povo celta.
E o solstício de inverno chegou, com a noite mais longa do ano, o céu estrelado e a neve cobrindo as montanhas e as árvores. E naquela noite mais longa do ano, trinta e três chefes de trinta e três tribos celtas da Gália, pedindo a proteção de Badba, oraram, cada tribo oferecendo a trinta e três cabeças trazidas de inimigos de sua região. E aqueles chefes guerreiros palestraram, oraram e unidos por Badba, a deusa da guerra, se uniram.
Todos concordaram em que Decébalo se tornaria o rei do novo reino. E Decébalo, falando como rei, chamou Jugurta para o seu lado direito e disse:
- “Quando, vencedores formos, quando um só reino celta nascer, este ao meu lado, Jugurta , que a todos mostra sua beleza e coragem, será meu fiel praepositus.”
Um silêncio sepulcral seguiu-se à fala de Decébalo. Todos os chefes olhavam ao corpo imberbe de Jugurta. A lua, no céu claro, sem nuvens, iluminavam o corpo forte e Jugurta se assemelhava a Oenghus, deus da juventude.
E Decébalo, olhando lascivamente para Jugurta, exigiu sua aproximação e tocou-o nas nádegas.
Com um único golpe de sua espada Jugurta decepou o pescoço de Decébalo, tomou-a pelos cabelos e, ainda jorrando sangue, ofereceu-a a Aracha. Depois, massacrou-a para liberar a alma, e disse:
- “O rei serei eu. Cuidado, eu aviso: Aracha, a gralha que se alimenta da cabeça dos guerreiros está faminta, melhor alimentá-la com cabeças de inimigos. À luta.”
E chefiados por Jugurta, que, encantado com a possibilidade de uma guerra permanente, os celtas iniciaram, depois de sete dias de preces, orações e sacrifícios, ataques e incursões aos mais fortes acampamentos inimigos. E a todos venciam. E pilhavam, e decepavam cabeças, e cobravam pertences, ouros e alimentos pela liberdade e fuga dos inimigos. Dois outros solstícios de inverno foram comemorados.
E as incursões iniciadas nas montanhas cantábricas e altiplanos gálicos chegaram aos Alpes. Jugurta, ainda jovem, era querido e procurava ser justo. Dividia os saques entre as tribos, negociava com os comandantes inimigos e sonhava chegar ao reino dos romanos. Já nos Alpes, cercaram e saquearam um fortificado acampamento e cidade inimiga, Jugurta se deu conta que estava cercado de inimigos.
Reuniu seus chefes guerreiros e ordenou:
- “Vamos fugir todos. Vamos, antes, cortar nossos longos cabelos, pintar nossos corpos com tinta escura, até parecermos com os inimigos e vamos, cada um por si, acompanhados por Bardo e sua música, caminhar até a cidade onde mora o rei dos reis dos inimigos. Lá nos encontraremos para a grande batalha.
E todos fugiram. Bardo os acompanhava e com sua música enaltecia os feitos e a bravura dos celtas. E os bravos guerreiros se encontraram em Roma em um solstício de verão.
O sol ardia durante todo o longo dia! A noite demorava chegar. Quando chegou, protegidos pelos escombros de muralhas os guerreiros se reuniram. Jugurta falou:
- “Chegamos, finalmente, à casa do inimigo maior. Amanhã, ao longo de tão grande dia, assaltaremos o palácio e serei eu, Jugurta, tão belo como Oenghus, o rei de todos: dos amigos e dos inimigos. De Roma à Gália, dos Alpes ao mar Cantábrico: um único rei. À luta.”
A amanhecer o dia Jugurta e os seus bravos guerreiros estavam cercados. Centenas, milhares de soldados romanos, alguns a cavalo, outros a pé, acompanhados por enormes e negros cães Mastim, cercavam a muralha e os escombros onde os celtas se escondiam. Um emissário exigiu a presença de Jugurta ao Palácio, onde o soberano romano o aguardava. Os bravos guerreiros celtas queriam a luta; crentes que suas almas integrariam outros corpos, assim que liberadas do corpo, não temiam a morte. Jugurta, no entanto, preferiu ir ter com o soberano.
E no suntuoso palácio, frente ao trono, recebeu a ordem:
- “Ajoelha!”
E Jugurta ajoelhou-se.
E o soberano:
-“Agora, dispa-se!”
E Jugurta despiu-se.
-“Mata!”, ordenou o rei.
E o corpo nu de Jugurta, transportado por dois nobres, foi solenemente devolvido aos guerreiros celtas que o levou até o alto de uma montanha, onde teve sua cabeça cortada e esmigalhada para liberar sua alma e a ofereceram a Badba.
Duas gralhas surgiram na árvore alta e observaram a cabeça esmigalhada.
Os guerreiros voltaram para as suas montanhas.